quarta-feira, 16 de agosto de 2023

O Azarão | 2


Como o incidente do dentista acabou com o dinheiro que eu tinha, saí e fui implorar pelo antigo emprego de volta. O cara da banca de jornal não ficou impressionado.
Falou: — Lamento, Sr. Wolfe. Você é um tremendo risco. Você é perigoso.
Quem ouve esse sujeito falando pensa que eu estava andando por aí com uma escopeta de cano curto ou coisa parecida. Que merda, eu era só o entregador de jornais.
Poxa, Max. — Insisti com ele. — Estou mais velho agora. Mais responsável.
Por falar nisso, quantos anos você tem?
Quinze.
Bem... — Ele se concentrou e pensou. E fez uma pausa. Tomou a decisão. — Não. — Balançou a cabeça. — Não. Não. — Mas ele estava na minha mão, com certeza. Havia muita hesitação. Estava pensando demais. — De qualquer forma, quinze é velho demais agora.
Velho demais! Cara, não era nada bom ser um entregador medíocre e desempregado, pode ter certeza.
Por favor — falei, sem saber o que dizer. Era nojento. Tudo isso por causa de uma droga de entrega de jornais, enquanto outros caras da minha idade estavam ganhando dinheiro no McDonald's e na droga do Kentucky Fried Chicken. Era uma tragédia. — Caramba, Max. — Tive uma ideia. — Se você não me der o emprego de novo, volto aqui com as mesmas roupas que estou vestindo agora (estava usando calça de moletom, sapatos velhos e um agasalho velho e sujo) e vou trazer meu irmão e os amigos dele junto, e a gente vai se comportar como se estivesse numa biblioteca. Não vamos criar confusão, pode acreditar. Só andar por aí. Talvez alguns acabem roubando, mas duvido. Talvez, só um ou dois…
Max se aproximou de mim.
Você está me ameaçando, seu lixo? — Sim, senhor, estou. — Sorri. Pensei que as coisas iam se resolver.
Estava errado.
Estava errado porque meu antigo patrão, Max, me pegou pela gola do agasalho e me tirou da banca dele.
E não volte aqui de novo — ordenou.
Fico parado.
Balanço a cabeça.
Para mim mesmo.
Lixo. Lixo! Era verdade.
Minha estratégia para obter o emprego de volta tinha dado terrivelmente errado. No meu pescoço, a pulsação estava bastante forte, e era como se eu pudesse sentir o gosto do sangue da noite passada no fundo da garganta.
Seu lixo — xinguei. Me olhei na vitrine da padaria ao lado e imaginei que estava com um terno azul-claro que tinha acabado de comprar, com uma gravata preta, sapatos pretos, cabelo bonito. A realidade, no entanto, era que eu estava vestindo roupas de pobre, e meu cabelo estava arrepiado, pior que nunca. Olhei para mim mesmo na vitrine, sem me importar com todas as pessoas a meu redor, e sorri aquele sorriso especial. Sabe, aquele sorriso que parece atingi-lo e dizer como você é patético.
É o sorriso que eu estava sorrindo.
Isso aí — falei para mim mesmo. — Isso aí. Procurei outro emprego no jornal local (tive que pedir ao Rube para ir até a banca de jornal e comprar um para mim), mas não tinha nada. As coisas estavam complicadas. Empregos. Pessoas. Dinheiro. Ninguém estava procurando por alguém, nem alguma coisa nova. Cheguei ao ponto de pensar em fazer algo inimaginável: perguntar ao meu pai se podia trabalhar com ele aos sábados.
De jeito nenhum — respondeu, quando falei com ele. — Sou encanador; não palhaço de circo, nem tratador de animais. — Ele estava comendo o jantar. Ergueu a faca.
Mas se eu fosse...
Ah, poxa, pai. Eu posso ajudar. Mamãe também deu a opinião dela.
Ora, Cliff, dê uma chance ao garoto. Ele suspirou, quase resmungou. Uma decisão: — Está bem — embora balançasse o garfo debaixo do meu nariz. — Mas basta quebrar alguma coisa, falar uma gracinha ou fazer uma besteira, e você está fora.
Está bem. Sorri.
Dei um sorriso para mamãe, mas ela estava comendo o jantar.
Dei um sorriso para mamãe, o Rube e a Sarah, e até para o Steve, mas todos eles estavam comendo o jantar porque o problema estava resolvido, e ninguém ficava animado com aquela história toda. Só eu.
Mesmo no trabalho, no sábado, meu pai não parecia muito entusiasmado com o fato de eu estar lá.
A primeira coisa que me obrigou a fazer foi meter a mão na privada de uma velha e retirar tudo que estava entupindo o cano. Sério, quase vomitei na privada na mesma hora.
Ah, que merda! — gritei, sem fôlego, e meu pai apenas sorriu.
Falou: — Bem-vindo ao meu mundo, filho. — E foi a última vez que sorriu durante todo o dia. No restante do tempo, me obrigou a fazer todo o trabalho sujo, como pegar canos no teto da van, cavar uma fossa debaixo da casa, ligar e desligar a energia elétrica, e recolher e arrumar as ferramentas dele. No fim do dia, me deu vinte contos e, na verdade, me agradeceu.
Falou: — Obrigado pela ajuda, garoto. Fiquei chocado.
Feliz.
Embora você seja meio lento. — Ele me interrompeu bem nessa hora. — E não deixe de tomar banho quando chegar em casa.
A hora do almoço foi engraçada porque sentamos em dois baldes na van do papai e ele me fez ler o jornal. Tirou a parte do "Guia do Fim de Semana" e jogou o resto em cima de mim.
Leia — falou.
Por quê?
Porque você não aprende nada, se não tiver paciência pra ler. A tevê tira isso de você. Deixa você burro.
Não preciso dizer que colei a cara no jornal e li. Ele podia me dispensar facilmente por não ler o jornal quando ele me mandava fazer isso.
O mais importante é que sobrevivi ao dia e tinha mais vinte dólares para mim.
Sábado que vem? — perguntei a ele quando voltamos para casa.
Ele fez que sim com a cabeça.
A questão é que eu não fazia ideia de que trabalhar aos sábados ia me deixar aos pés de uma garota ainda melhor que a auxiliar de dentista. Foi dali a umas semanas, mas, quando aconteceu, senti uma coisa mexer dentro de mim.
No entanto, naquela primeira noite de sábado, fui até a porta da frente, sentindo orgulho de mim mesmo. Desci até o porão, porque é lá que fica o quarto de Steve, e Steve sempre sai nas noites de sábado; liguei o aparelho de som antigo e comecei a dançar um pouco. Cantei como todos os pobres-diabos fazem quando estão sozinhos e dancei como um perfeito idiota. Você não se importa, quando não tem ninguém por perto.
Então, o Rube entrou, sem que eu soubesse.
E viu.
Lamentável. — A voz dele me assustou.
Parei.
Lamentável — repetiu, fechando a porta e dando passos lentos e hesitantes nos degraus velhos e gastos.
Depois dele, ouvimos a voz de papai.
Tenho quatro coisas pra dizer a vocês. Primeira, o jantar está pronto. Segunda, vão tomar banho. Terceira — olhou diretamente para o Rube dessa vez —, você, faça a barba.
Lancei um olhar rápido ao Rube e vi tufos de barba crescendo no rosto dele. Já estavam ficando espessos.
E, quarta, vamos assistir a Três homens em conflito hoje à noite, e, se um de vocês quiser ver outra coisa, azar. A tevê já está reservada.
A gente não liga — garantiu Rube.
Então ninguém não vai reclamar.
Então ninguém vai reclamar — corrigi o cara. Grande erro.
Você está a fim de arrumar confusão? — perguntou papai, se aproximando ainda mais.
De jeito nenhum. Deu as costas.
Então, está bem. De qualquer forma, venham jantar. — Quando nos aproximamos dele, comentou: — Não esqueçam que o coroa aqui ainda pode dar um belo pontapé na bunda de vocês por bancarem os engraçadinhos. — Estava rindo, porém.
Fiquei feliz. Na porta, falei: — Talvez eu economize pra comprar um aparelho de som como o do Steve. Talvez, um melhor.
Papai fez que sim com a cabeça.
Não é má ideia. — Por mais durão que ele pudesse ser, eu achava que ele gostava que eu nunca ficasse só pedindo as coisas. Percebeu que eu queria economizar para comprá-las.
Foi o que fiz.
Não queria nada de graça.
De qualquer forma, nada vinha de graça para a nossa casa.
Rube falou. Perguntou: — E pra que você ia querer um aparelho de som, garoto? Pra dançar no seu quarto desse jeito lamentável? Papai apenas parou, virou os olhos para ele, puxando-lhe a orelha. Falou: — Pelo menos, o garoto quer trabalhar, o que é mais do que posso dizer de você. — Virou as costas de novo e continuou: — Agora, venham jantar.
Seguimos papai, e tive que tirar Sarah do quarto dela para comer. Ela estava lá levando uns amassos do namorado, apoiada no guarda-roupa.

É uma cena de filme, na qual estou com uma corda em volta do pescoço, esperando para ser enforcado. Estou montado em um cavalo. A corda está amarrada a um galho de árvore pesado. Meu pai está montado em um cavalo a distância, esperando com uma arma.
Sei que há algum tempo minha cabeça está a prêmio, e meu pai e eu temos um plano no qual ele me entrega, recebe a recompensa, então atira na corda quando eu estiver pronto para ser enforcado. De alguma forma, vou fugir, e repetiremos o procedimento em cidades por todo o país.
Estou sentado lá com a corda no pescoço, vestido com todo o aparato ultrajante dos caubóis. O xerife ou homem da lei ou coisa que o valha está lendo a sentença de morte, e toda essa gente caipira, mascando tabaco, está vibrando, pois sabe que vou morrer.
Quais são as suas últimas palavras? — pergunta, mas, no início, só dou uma risada.
Então diz, rindo também: — Boa sorte. — E de modo irônico: — Que Deus te abençoe.
O tiro deve ser ouvido a qualquer momento.
Não é.
Fico nervoso.
Olho ao redor, e eu o vejo.
Dão uma palmada para o cavalo partir e em seguida, estou pendurado ali, engasgando até morrer.
Minhas mãos estão amarradas na frente do corpo, e eu as estico para afrouxar a corda em volta do pescoço. Não está funcionando. Tento respirar, com dificuldade, dizendo: — Vamos! Vamos. Finalmente.
O tiro. Nada.
Ainda estou engasgando! — murmuro, mas meu pai vai cavalgando na direção da multidão. Atira mais uma vez; agora a corda se rompe, e eu caio.
Bato no chão.
Respiro fundo.
Ar.
Ótimo.
Balas voam à minha volta.
Pego a mão do meu pai, e ele me ergue até o cavalo que continua galopando.
Plano geral (plano da câmera).
Nova cena.
Tudo está tranquilo agora, e papai segura, mais ou menos, uma dúzia de notas de cem dólares. Me dá uma.
Uma! — Isso.
Sabe — argumento —, eu realmente acho que devia ganhar mais que isso. Afinal, era o meu pescoço enforcado lá.
Papai sorri e joga fora um cigarro mascado. E fala.
É, mas fui eu que atirei pra você cair.
Com o deserto ao meu redor, percebo que minhas costas estão doendo por causa da queda.
Papai se foi e, sozinho, beijo a nota e digo: — Dane-se, cara. — Começo a caminhar para algum lugar, esperando aproxima vez, torcendo para viver até lá.

Markus Zusak, in O Azarão

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