quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Naufrágios | Capítulo 6


[…]
Um silêncio estranho reinava sobre a aldeia. Naquela época do ano havia muito a ser recolhido na praia, mas não havia ninguém à vista na areia. Mesmo as crianças sentiam o humor dos adultos e não estavam brincando e correndo pela trilha. Depois de esconder todo o arroz e as outras coisas nas montanhas, os habitantes da aldeia passaram os dias enfurnados em casa, contendo a respiração. A mãe de Isaku cuidou dos ferimentos enquanto secava grãos vindos da outra aldeia ou tecia panos no tear.
Isaku passou o tempo reparando seu material de pesca, e ocasionalmente olhava pela porta dos fundos para a trilha que seguia até a aldeia vizinha, ou para o mar. Se os homens da agência de transporte viessem, seria ou pelo passo nas montanhas ou de barco pela costa. Tinham falado em colocar vigias perto do passo e nos promontórios, mas desistiram da ideia porque, como alguém observara, se eles percebessem os vigias, isso iria levantar suspeitas.
Isaku ouviu os homens da aldeia discutindo como seria a punição. Ficou aterrorizado. Falaram sobre pessoas sendo chicoteadas, depois arrastadas e puxadas por uma corda e então crucificadas de cabeça para baixo e espetadas com lanças até as entranhas caírem. Falaram sobre pessoas sendo cortadas com uma serra antes de ser crucificadas. Se descobrissem que tinham roubado a carga de um navio e espancado o capitão até matá-lo, sem dúvida o destino de todos seria similar a isso.
Apenas uma trilha levava para fora da aldeia, e para chegar à aldeia vizinha era preciso seguir as trilhas mais estreitas cortadas no coração das montanhas, passando por um vale e picos pelo caminho. Isaku havia ido até a aldeia vizinha pela primeira vez quando seu pai partira para a servidão, e a sensação de poder que lhe causara fora suficiente para deixá-lo zonzo. Fileiras de casas e lojas vendendo todo tipo de coisa, assim como construções de dois andares para acomodar viajantes. As ruas eram cheias de gente, e ele vira coisas das quais tinha apenas ouvido falar mas nunca vira antes, tais como um boi, que passara diante dele com carga amarrada nas costas. No porto ele vira navios de carga e de barcos de pesca. Não parara de se mover por um segundo, olhando tudo de forma incansável, até ficar exausto.
Tinham passado apenas uma noite no chão de terra da casa do intermediário, mas Isaku nunca iria se esquecer da sublime tranquilidade que experimentara quando atravessara novamente o passo nas montanhas e avistara as casas de sua aldeia lá embaixo. Estava certo de que nunca poderia viver em outro lugar que não fosse aquele.
No momento em que ouviu dizer que os agentes da transportadora estavam procurando um navio desaparecido, a aldeia vizinha passou a representar para Isaku tudo que era misterioso e assustador. A vila vizinha ficava localizada na mesma ilha e pertencia à vasta extensão de terra do outro lado do mar. Cada aldeia tinha seu próprio código de leis, passado adiante através das eras.
Raro como era, via-se o aparecimento de O-fune-sama sob a mesma luz dos inesperados cardumes de peixes que às vezes apareciam perto da costa, ou quantidades especialmente grandes de cogumelos ou legumes da montanha encontrados na floresta. O-fune-sama era parte dos presentes oferecidos pelo mar, e seu aparecimento acabara de salvar as pessoas da aldeia da fome. Para a aldeia de Isaku, o naufrágio de O-fune-sama era a coisa mais alegre possível, mas para outras pessoas, em outros lugares, tais como a aldeia vizinha, era algo ruim e que merecia a punição máxima. Mas se O-fune-sama não abençoasse sua praia, a aldeia havia muito teria deixado de existir, e a baía não seria mais que uma área de mar rodeada por pedras. Seus ancestrais haviam vivido ali, e eles, por sua vez, só podiam sobreviver graças a O-fune-sama.
Diziam que as almas dos mortos da aldeia iam para longe pelo mar e que, com o tempo, voltariam para encontrar abrigo no útero de uma mulher grávida. Não havia nenhum lugar para onde elas poderiam retornar além da aldeia. Se retornassem para um lugar onde as regras fossem diferentes, onde eventos festivos fossem considerados crimes, o resultado não seria bom. Se Isaku viesse a constituir sua própria família, sabia que teria de ir até a aldeia vizinha vender sal e outras coisas, mas estava determinado a evitar tais viagens. Queria permanecer na segurança da aldeia onde seguiam princípios fixos de como viver.
Às vezes ele pensava sobre sua própria morte. Seu corpo sendo queimado e os ossos enterrados no chão, sua alma deixando a aldeia e seguindo por cima da água, realizando uma longa jornada antes de alcançar o lugar longínquo no mar onde as almas dos outros mortos da aldeia estariam esperando. Os espíritos tinham uma moradia no fundo do mar onde tudo era claro e brilhante. Densos campos de algas marinhas balançavam como bosques de árvores, e todo tipo de mariscos e outras conchas coloridas se agarravam às pedras, brilhando como madrepérola.
Cardumes de peixes pequenos, as escamas prateadas brilhando enquanto nadavam., viravam ao mesmo tempo quando o líder mudava de direção, da mesma forma que um grupo de flocos de neve dançando no ar.
O fundo do mar era sempre calmo e a temperatura da água não mudava. As almas mortas pareciam águas-vivas em suas vestes transparentes, e tinham um brilho saudável nos cabelos. Sempre sorriam e nunca eram admoestados. Estavam no estado de profunda serenidade induzido pela morte. Ali ele viu a avó, de quem tinha apenas uma vaga lembrança, e Teru, sua irmãzinha que morrera dois anos antes. As pessoas mais atrás deviam ser seus ancestrais.
Ele se moveu até eles e parou junto de Teru. Antes que se desse conta, ele também foi envolto em vestes transparentes, e sua face tinha sempre um sorriso gentil. Ele se sentiu agradavelmente aquecido dentro daquela roupa.
Às vezes, alguns espíritos se afastavam, levados por aqueles que tinham ficado para trás. Eram as almas voltando para a aldeia para reencarnar no útero através da união sexual de um homem e uma mulher. E quando a reencarnação ocorreria? Muito provavelmente, um longo tempo depois da morte.
Ele não tinha dúvidas de que ele, também, era um espírito reencarnado no útero de sua mãe. Acreditava que a moradia das almas mortas lá longe no mar não era apenas imaginação, mas algo que podia visualizar tão claramente porque se tratava de um lugar do qual ele uma vez fizera parte.
Não tinha medo de morrer, especialmente porque acreditava que havia um lugar onde se vivia em paz depois da morte. Mas, se fosse levado para longe e morresse em um lugar distante, achava que seria difícil para seu espírito conseguir alcançar o santuário das almas mortas de sua aldeia. Sem dúvida, seu espírito seria condenado a um inferno cheio de almas de estranhos com expressões tristes.
Se os homens da agência de transporte viessem até a aldeia e descobrissem que os habitantes tinham roubado a carga de um navio naufragado, eles seriam presos e mortos, não poderiam saborear a tranquilidade depois da morte. Isaku orou para que os homens da agência de transporte nunca aparecessem.

A neve havia começado a derreter nas montanhas, e as casas tremiam cada vez que as avalanches reverberavam pela aldeia. O fluxo de água que corria entre as casas cresceu e virou uma torrente.
Em março, a neve tinha desaparecido das montanhas; restavam apenas alguns filetes brilhando nas montanhas distantes. Ninguém tinha sido visto na trilha da montanha, nem nenhum barco na água.
O chefe chamou os membros mais idosos da comunidade; ficou decidido que dois homens seriam enviados até a aldeia vizinha. A missão deles era descobrir o que os agentes da companhia de transporte estavam fazendo, e se a aldeia deles estava ou não sob suspeita.
Na manhã seguinte, como se estivessem indo apenas fazer comércio, os homens carregaram fardos de peixe seco pela trilha da montanha. Todos eles possuíam pernas fortes, e em um instante desapareceram floresta adentro.
Cinco dias mais tarde, perto do pôr-do-sol, os homens reapareceram e correram até a casa do chefe da aldeia. Isaku juntou-se aos outros na frente da casa.
As notícias trazidas pelos homens deixaram os moradores da aldeia mais tranquilos. Ao passar pela casa do mercador de sal onde negociavam o peixe seco e compravam grãos, fizeram perguntas sobre os agentes da companhia de transporte que se haviam hospedado ali. Esses homens, segundo lhes contaram, já tinham voltado para o escritório da companhia de transporte em um porto na parte sul da ilha. Tinham feito perguntas aos capitães de navios que aportaram na cidade e aos visitantes das aldeias ao longo da costa sobre o barco desaparecido, mas não conseguiram obter nenhuma pista sobre o que havia acontecido.
O navio deve ter sido atingido por uma tempestade em alto-mar e afundou. Os agentes desistiram e foram embora — dissera o mercante, com ar indiferente.
Os habitantes da aldeia trocaram olhares aliviados. O perigo tinha passado. No entanto, o chefe não deu permissão para que trouxessem o arroz de volta da floresta. Deviam continuar atentos, decidiu ele, só por segurança.
Em meados de março, o ritual de orar por uma boa pesca foi realizado na praia, e naquele dia o chefe da aldeia deu permissão para que pegassem o arroz nas montanhas. Naquela noite, todos na aldeia cozinharam arroz para o jantar, e também na casa de Isaku, onde ferveram a água para fazer uma boa sopa. Isaku também tomou um pouco de vinho com a mãe.
No dia seguinte, ele saiu em seu barco com Isokichi. A princípio não conseguiram pegar nada exceto peixes pequenos. Mas quando abril chegou, no entanto, eles começaram a pegar sardinhas graúdas em grande quantidade. Não podiam pescar juntos pois as linhas se enroscariam, então Isaku determinou que Isokichi cuidaria da condução do barco enquanto ele se concentrava em pegar as sardinhas. Claro, como Isokichi ainda não tinha experiência, sempre que chegavam perto do recife Isaku pegava o remo e afastava o barco das pedras. A pele da mão de Isokichi rachou e sangrou bastante.
A pesca de sardinha parecia mais produtiva que o normal, e mesmo do barco eles podiam ver uma massa ondulante de escamas prateadas passando velozmente sob a superfície. A cor do mar mudava nas áreas onde havia mais peixes, e às vezes grandes porções de água pareciam estar fervendo. Se ele colocasse vários anzóis na linha e a jogasse na água, sentia a linha ser puxada no mesmo instante. Com sardinhas em quase todos os anzóis, era um trabalho e tanto removê-las da água.
De tarde, quando voltavam para a praia, eles transferiam as sardinhas para tinas e as carregavam para casa, onde a mãe as limpava e grelhava ao fogo. O peixe estava muito suculento, e cada vez que pingava gordura no fogo as chamas aumentavam. Para Isaku, o gosto das sardinhas quentes era uma delícia sem comparação.
A mãe cortou parte dos peixes no meio e fez a irmãzinha Kane passá-los para ela para serem pendurados em um pedaço de corda para secar.
A temperatura subiu e as montanhas encontravam-se cobertas de verde.
Todos os homens da aldeia levaram seus barcos para a água ao mesmo tempo, mas de um modo um pouco diferente do ano anterior. Normalmente eles saíam ao alvorecer, mas alguns barcos podiam ser vistos deixando a costa bem depois de o mar estar ensolarado. Eles também encerravam mais cedo, apressando-se de volta mais ou menos quando o sol começava a se pôr. Alguns homens alegavam problemas físicos ou de saúde como desculpa para não sair para o mar.
Ficar preguiçosa é a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa — murmurava a mãe de Isaku, enquanto colocava mais lenha no fogo.
Os homens que não estavam levando a pescaria a sério tinham ficado mal-acostumados pela fartura de comida trazida por O-fune-sama. Eles usavam tudo que pegavam para alimentar as famílias e não viam necessidade de pegar mais peixes ou negociar em troca de grãos. Felizmente, naquele ano as sardinhas tinham vindo em quantidade, e era possível pescar bastante sem ter de passar muito tempo na água. Eles podiam até tirar um ou outro dia de folga.
Isaku queria ir mais devagar também, mas, quando pensou no que a mãe lhe dissera, mudou de ideia.
O mar ficou calmo durante vários dias e às vezes garoava desde manhã até a noite. Mesmo nesses dias Isaku levava Isokichi para pescar. A mãe arou o pequeno campo deles e plantou sementes de legumes. Lá de fora do mar ele podia ver os terraços cavados na encosta, e costumava ficar olhando os chapéus de junco movendo-se no campo onde a família de Tami plantava.
Um dia, em meados de abril, um homem que estava em um barco perto de Isaku chamou-o e apontou para a trilha na montanha. Isaku sentiu um arrepio na espinha. Dois homens caminhavam lentamente em direção à aldeia. Estavam a uma distância razoável e não era possível distinguir quem eram, mas parecia que estavam olhando para Isaku. Ele imaginou que deviam ser os homens da companhia de transporte. Tinha ouvido dizer que haviam interrompido a busca pelo navio perdido e voltado para casa, mas talvez eles não houvessem desistido, afinal, e tivessem simplesmente ido até outra aldeia antes de vir até ali. Fardos de arroz e outros produtos exóticos de O-fune-sama se encontravam por toda a aldeia; se os agentes os vissem, saberiam no mesmo instante que haviam sido tirados de um navio.
Isaku começou a tremer.
Ele olhou para o barco a seu lado. O homem estava olhando para Isaku. Ele voltou os olhos para a montanha a tempo de ver os dois homens desaparecer por trás das árvores que ladeavam a trilha.
Isaku seguiu os outros barcos que voltavam para a praia, pegando o remo das mãos de Isokichi e remando com toda a força. Não havia tempo de remover os fardos para a floresta, mas ele achava que poderiam ao menos tentar escondê-los jogando esteiras de palha por cima.
Os barcos estavam chegando à praia um atrás do outro quando Isaku puxou o seu para fora da água antes de correr para casa. As mulheres e crianças, que normalmente estariam perto da água, já haviam desaparecido.
Isaku correu para casa e encontrou a mãe cobrindo os fardos de arroz com esteiras e colocando lenha por cima. Ele a ajudou a carregar os jarros com vinho, açúcar e molho de soja pela porta dos fundos e os escondeu no meio dos bambus.
Da parte de trás da casa, Isaku ficou olhando para a trilha. O topo das árvores balançava ao vento enquanto o sol se punha. Apenas o marulho das ondas quebrava o profundo silêncio que envolvia a aldeia. Cada um dos habitantes da aldeia estava escondido dentro de casa.
[…]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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