[…]
Um
silêncio estranho reinava sobre a aldeia. Naquela época do ano
havia muito a ser recolhido na praia, mas não havia ninguém à
vista na areia. Mesmo as crianças sentiam o humor dos adultos e não
estavam brincando e correndo pela trilha. Depois de esconder todo o
arroz e as outras coisas nas montanhas, os habitantes da aldeia
passaram os dias enfurnados em casa, contendo a respiração. A mãe
de Isaku cuidou dos ferimentos enquanto secava grãos vindos da outra
aldeia ou tecia panos no tear.
Isaku
passou o tempo reparando seu material de pesca, e ocasionalmente
olhava pela porta dos fundos para a trilha que seguia até a aldeia
vizinha, ou para o mar. Se os homens da agência de transporte
viessem, seria ou pelo passo nas montanhas ou de barco pela costa.
Tinham falado em colocar vigias perto do passo e nos promontórios,
mas desistiram da ideia porque, como alguém observara, se eles
percebessem os vigias, isso iria levantar suspeitas.
Isaku
ouviu os homens da aldeia discutindo como seria a punição. Ficou
aterrorizado. Falaram sobre pessoas sendo chicoteadas, depois
arrastadas e puxadas por uma corda e então crucificadas de cabeça
para baixo e espetadas com lanças até as entranhas caírem. Falaram
sobre pessoas sendo cortadas com uma serra antes de ser crucificadas.
Se descobrissem que tinham roubado a carga de um navio e espancado o
capitão até matá-lo, sem dúvida o destino de todos seria similar
a isso.
Apenas
uma trilha levava para fora da aldeia, e para chegar à aldeia
vizinha era preciso seguir as trilhas mais estreitas cortadas no
coração das montanhas, passando por um vale e picos pelo caminho.
Isaku havia ido até a aldeia vizinha pela primeira vez quando seu
pai partira para a servidão, e a sensação de poder que lhe causara
fora suficiente para deixá-lo zonzo. Fileiras de casas e lojas
vendendo todo tipo de coisa, assim como construções de dois andares
para acomodar viajantes. As ruas eram cheias de gente, e ele vira
coisas das quais tinha apenas ouvido falar mas nunca vira antes, tais
como um boi, que passara diante dele com carga amarrada nas costas.
No porto ele vira navios de carga e de barcos de pesca. Não parara
de se mover por um segundo, olhando tudo de forma incansável, até
ficar exausto.
Tinham
passado apenas uma noite no chão de terra da casa do intermediário,
mas Isaku nunca iria se esquecer da sublime tranquilidade que
experimentara quando atravessara novamente o passo nas montanhas e
avistara as casas de sua aldeia lá embaixo. Estava certo de que
nunca poderia viver em outro lugar que não fosse aquele.
No
momento em que ouviu dizer que os agentes da transportadora estavam
procurando um navio desaparecido, a aldeia vizinha passou a
representar para Isaku tudo que era misterioso e assustador. A vila
vizinha ficava localizada na mesma ilha e pertencia à vasta extensão
de terra do outro lado do mar. Cada aldeia tinha seu próprio código
de leis, passado adiante através das eras.
Raro
como era, via-se o aparecimento de O-fune-sama sob a mesma luz
dos inesperados cardumes de peixes que às vezes apareciam perto da
costa, ou quantidades especialmente grandes de cogumelos ou legumes
da montanha encontrados na floresta. O-fune-sama era parte dos
presentes oferecidos pelo mar, e seu aparecimento acabara de salvar
as pessoas da aldeia da fome. Para a aldeia de Isaku, o naufrágio de
O-fune-sama era a coisa mais alegre possível, mas para outras
pessoas, em outros lugares, tais como a aldeia vizinha, era algo ruim
e que merecia a punição máxima. Mas se O-fune-sama não
abençoasse sua praia, a aldeia havia muito teria deixado de existir,
e a baía não seria mais que uma área de mar rodeada por pedras.
Seus ancestrais haviam vivido ali, e eles, por sua vez, só podiam
sobreviver graças a O-fune-sama.
Diziam
que as almas dos mortos da aldeia iam para longe pelo mar e que, com
o tempo, voltariam para encontrar abrigo no útero de uma mulher
grávida. Não havia nenhum lugar para onde elas poderiam retornar
além da aldeia. Se retornassem para um lugar onde as regras fossem
diferentes, onde eventos festivos fossem considerados crimes, o
resultado não seria bom. Se Isaku viesse a constituir sua própria
família, sabia que teria de ir até a aldeia vizinha vender sal e
outras coisas, mas estava determinado a evitar tais viagens. Queria
permanecer na segurança da aldeia onde seguiam princípios fixos de
como viver.
Às
vezes ele pensava sobre sua própria morte. Seu corpo sendo queimado
e os ossos enterrados no chão, sua alma deixando a aldeia e seguindo
por cima da água, realizando uma longa jornada antes de alcançar o
lugar longínquo no mar onde as almas dos outros mortos da aldeia
estariam esperando. Os espíritos tinham uma moradia no fundo do mar
onde tudo era claro e brilhante. Densos campos de algas marinhas
balançavam como bosques de árvores, e todo tipo de mariscos e
outras conchas coloridas se agarravam às pedras, brilhando como
madrepérola.
Cardumes
de peixes pequenos, as escamas prateadas brilhando enquanto nadavam.,
viravam ao mesmo tempo quando o líder mudava de direção, da mesma
forma que um grupo de flocos de neve dançando no ar.
O
fundo do mar era sempre calmo e a temperatura da água não mudava.
As almas mortas pareciam águas-vivas em suas vestes transparentes, e
tinham um brilho saudável nos cabelos. Sempre sorriam e nunca eram
admoestados. Estavam no estado de profunda serenidade induzido pela
morte. Ali ele viu a avó, de quem tinha apenas uma vaga lembrança,
e Teru, sua irmãzinha que morrera dois anos antes. As pessoas mais
atrás deviam ser seus ancestrais.
Ele
se moveu até eles e parou junto de Teru. Antes que se desse conta,
ele também foi envolto em vestes transparentes, e sua face tinha
sempre um sorriso gentil. Ele se sentiu agradavelmente aquecido
dentro daquela roupa.
Às
vezes, alguns espíritos se afastavam, levados por aqueles que tinham
ficado para trás. Eram as almas voltando para a aldeia para
reencarnar no útero através da união sexual de um homem e uma
mulher. E quando a reencarnação ocorreria? Muito provavelmente, um
longo tempo depois da morte.
Ele
não tinha dúvidas de que ele, também, era um espírito reencarnado
no útero de sua mãe. Acreditava que a moradia das almas mortas lá
longe no mar não era apenas imaginação, mas algo que podia
visualizar tão claramente porque se tratava de um lugar do qual ele
uma vez fizera parte.
Não
tinha medo de morrer, especialmente porque acreditava que havia um
lugar onde se vivia em paz depois da morte. Mas, se fosse levado para
longe e morresse em um lugar distante, achava que seria difícil para
seu espírito conseguir alcançar o santuário das almas mortas de
sua aldeia. Sem dúvida, seu espírito seria condenado a um inferno
cheio de almas de estranhos com expressões tristes.
Se
os homens da agência de transporte viessem até a aldeia e
descobrissem que os habitantes tinham roubado a carga de um navio
naufragado, eles seriam presos e mortos, não poderiam saborear a
tranquilidade depois da morte. Isaku orou para que os homens da
agência de transporte nunca aparecessem.
A
neve havia começado a derreter nas montanhas, e as casas tremiam
cada vez que as avalanches reverberavam pela aldeia. O fluxo de água
que corria entre as casas cresceu e virou uma torrente.
Em
março, a neve tinha desaparecido das montanhas; restavam apenas
alguns filetes brilhando nas montanhas distantes. Ninguém tinha sido
visto na trilha da montanha, nem nenhum barco na água.
O
chefe chamou os membros mais idosos da comunidade; ficou decidido que
dois homens seriam enviados até a aldeia vizinha. A missão deles
era descobrir o que os agentes da companhia de transporte estavam
fazendo, e se a aldeia deles estava ou não sob suspeita.
Na
manhã seguinte, como se estivessem indo apenas fazer comércio, os
homens carregaram fardos de peixe seco pela trilha da montanha. Todos
eles possuíam pernas fortes, e em um instante desapareceram floresta
adentro.
Cinco
dias mais tarde, perto do pôr-do-sol, os homens reapareceram e
correram até a casa do chefe da aldeia. Isaku juntou-se aos outros
na frente da casa.
As
notícias trazidas pelos homens deixaram os moradores da aldeia mais
tranquilos. Ao passar pela casa do mercador de sal onde negociavam o
peixe seco e compravam grãos, fizeram perguntas sobre os agentes da
companhia de transporte que se haviam hospedado ali. Esses homens,
segundo lhes contaram, já tinham voltado para o escritório da
companhia de transporte em um porto na parte sul da ilha. Tinham
feito perguntas aos capitães de navios que aportaram na cidade e aos
visitantes das aldeias ao longo da costa sobre o barco desaparecido,
mas não conseguiram obter nenhuma pista sobre o que havia
acontecido.
— O
navio deve ter sido atingido por uma tempestade em alto-mar e
afundou. Os agentes desistiram e foram embora — dissera o mercante,
com ar indiferente.
Os
habitantes da aldeia trocaram olhares aliviados. O perigo tinha
passado. No entanto, o chefe não deu permissão para que trouxessem
o arroz de volta da floresta. Deviam continuar atentos, decidiu ele,
só por segurança.
Em
meados de março, o ritual de orar por uma boa pesca foi realizado na
praia, e naquele dia o chefe da aldeia deu permissão para que
pegassem o arroz nas montanhas. Naquela noite, todos na aldeia
cozinharam arroz para o jantar, e também na casa de Isaku, onde
ferveram a água para fazer uma boa sopa. Isaku também tomou um
pouco de vinho com a mãe.
No
dia seguinte, ele saiu em seu barco com Isokichi. A princípio não
conseguiram pegar nada exceto peixes pequenos. Mas quando abril
chegou, no entanto, eles começaram a pegar sardinhas graúdas em
grande quantidade. Não podiam pescar juntos pois as linhas se
enroscariam, então Isaku determinou que Isokichi cuidaria da
condução do barco enquanto ele se concentrava em pegar as
sardinhas. Claro, como Isokichi ainda não tinha experiência, sempre
que chegavam perto do recife Isaku pegava o remo e afastava o barco
das pedras. A pele da mão de Isokichi rachou e sangrou bastante.
A
pesca de sardinha parecia mais produtiva que o normal, e mesmo do
barco eles podiam ver uma massa ondulante de escamas prateadas
passando velozmente sob a superfície. A cor do mar mudava nas áreas
onde havia mais peixes, e às vezes grandes porções de água
pareciam estar fervendo. Se ele colocasse vários anzóis na linha e
a jogasse na água, sentia a linha ser puxada no mesmo instante. Com
sardinhas em quase todos os anzóis, era um trabalho e tanto
removê-las da água.
De
tarde, quando voltavam para a praia, eles transferiam as sardinhas
para tinas e as carregavam para casa, onde a mãe as limpava e
grelhava ao fogo. O peixe estava muito suculento, e cada vez que
pingava gordura no fogo as chamas aumentavam. Para Isaku, o gosto das
sardinhas quentes era uma delícia sem comparação.
A
mãe cortou parte dos peixes no meio e fez a irmãzinha Kane
passá-los para ela para serem pendurados em um pedaço de corda para
secar.
A
temperatura subiu e as montanhas encontravam-se cobertas de verde.
Todos
os homens da aldeia levaram seus barcos para a água ao mesmo tempo,
mas de um modo um pouco diferente do ano anterior. Normalmente eles
saíam ao alvorecer, mas alguns barcos podiam ser vistos deixando a
costa bem depois de o mar estar ensolarado. Eles também encerravam
mais cedo, apressando-se de volta mais ou menos quando o sol começava
a se pôr. Alguns homens alegavam problemas físicos ou de saúde
como desculpa para não sair para o mar.
— Ficar
preguiçosa é a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa —
murmurava a mãe de Isaku, enquanto colocava mais lenha no fogo.
Os
homens que não estavam levando a pescaria a sério tinham ficado
mal-acostumados pela fartura de comida trazida por O-fune-sama.
Eles usavam tudo que pegavam para alimentar as famílias e não viam
necessidade de pegar mais peixes ou negociar em troca de grãos.
Felizmente, naquele ano as sardinhas tinham vindo em quantidade, e
era possível pescar bastante sem ter de passar muito tempo na água.
Eles podiam até tirar um ou outro dia de folga.
Isaku
queria ir mais devagar também, mas, quando pensou no que a mãe lhe
dissera, mudou de ideia.
O
mar ficou calmo durante vários dias e às vezes garoava desde manhã
até a noite. Mesmo nesses dias Isaku levava Isokichi para pescar. A
mãe arou o pequeno campo deles e plantou sementes de legumes. Lá de
fora do mar ele podia ver os terraços cavados na encosta, e
costumava ficar olhando os chapéus de junco movendo-se no campo onde
a família de Tami plantava.
Um
dia, em meados de abril, um homem que estava em um barco perto de
Isaku chamou-o e apontou para a trilha na montanha. Isaku sentiu um
arrepio na espinha. Dois homens caminhavam lentamente em direção à
aldeia. Estavam a uma distância razoável e não era possível
distinguir quem eram, mas parecia que estavam olhando para Isaku. Ele
imaginou que deviam ser os homens da companhia de transporte. Tinha
ouvido dizer que haviam interrompido a busca pelo navio perdido e
voltado para casa, mas talvez eles não houvessem desistido, afinal,
e tivessem simplesmente ido até outra aldeia antes de vir até ali.
Fardos de arroz e outros produtos exóticos de O-fune-sama se
encontravam por toda a aldeia; se os agentes os vissem, saberiam no
mesmo instante que haviam sido tirados de um navio.
Isaku
começou a tremer.
Ele
olhou para o barco a seu lado. O homem estava olhando para Isaku. Ele
voltou os olhos para a montanha a tempo de ver os dois homens
desaparecer por trás das árvores que ladeavam a trilha.
Isaku
seguiu os outros barcos que voltavam para a praia, pegando o remo das
mãos de Isokichi e remando com toda a força. Não havia tempo de
remover os fardos para a floresta, mas ele achava que poderiam ao
menos tentar escondê-los jogando esteiras de palha por cima.
Os
barcos estavam chegando à praia um atrás do outro quando Isaku
puxou o seu para fora da água antes de correr para casa. As mulheres
e crianças, que normalmente estariam perto da água, já haviam
desaparecido.
Isaku
correu para casa e encontrou a mãe cobrindo os fardos de arroz com
esteiras e colocando lenha por cima. Ele a ajudou a carregar os
jarros com vinho, açúcar e molho de soja pela porta dos fundos e os
escondeu no meio dos bambus.
Da
parte de trás da casa, Isaku ficou olhando para a trilha. O topo das
árvores balançava ao vento enquanto o sol se punha. Apenas o
marulho das ondas quebrava o profundo silêncio que envolvia a
aldeia. Cada um dos habitantes da aldeia estava escondido dentro de
casa.
[…]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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