quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Escola Clay de aquecimento


Do outro lado da cidade, enquanto o Assassino encontrava a mula, havia Clay, e Clay estava se aquecendo. Verdade seja dita, Clay estava sempre se aquecendo. Naquele momento, fazia isso em um velho prédio residencial; degraus sob os pés, um menino nas costas e uma nuvem de chuva dentro do peito. O cabelo preto curto grudava na cabeça e havia uma chama em cada olho.
À direita corria outro menino — louro, um ano mais velho —, acompanhando-o com muita dificuldade, mas mesmo assim o instigando. À esquerda, uma border collie disparava, o que significava que Henry e Clay, Tommy e Aurora estavam fazendo o mesmo de sempre:
Um falava.
Um treinava.
Um se dedicava com unhas e dentes.
Até a cachorra dava tudo de si.
Para esse método de treinamento, contavam com uma chave, que compraram de um amigo; assim garantiram o acesso ao prédio. Dez dólares por um pedaço de concreto. Nada mau. Eles corriam.
Seu desgraçado — disse Henry (o mais amigável, o cara do dinheiro) ao lado de Clay.
Ele penava em seu trote, mas não deixava de gargalhar. O sorriso escorregou do rosto; ele o segurou. Naquelas ocasiões, ele se comunicava com Clay por meio de insultos de eficácia comprovada.
Você é um zero à esquerda — dizia ele. — Um molenga. — Ele sofria, mas tinha que continuar falando. — Você é mole que nem gelatina, moleque. Me dá nojo ver você correndo desse jeito.
Também não tardou até que outra tradição fosse honrada.
Tommy, o mais jovem, o acumulador de bichos de estimação, perdeu um tênis.
Mas que merda, Tommy, eu não mandei você amarrar bem esse cadarço? Vamos, Clay, seu fraco, seu ridículo. Para de fazer corpo mole.
Chegaram ao sexto andar, e Clay jogou Tommy para um lado e o linguarudo para outro. Caídos no chão sujo, Clay abriu um meio sorriso, os outros dois gargalharam, todos limparam o suor da testa. No meio da briga, Clay conseguiu dar uma chave de braço em Henry. Ergueu o irmão e saiu carregando-o no colo.
Você está precisando de um banho, cara – disse Henry. Isso era a cara do Henry. Sempre dizíamos que sua maior arma era a lábia. — Que fedor horroroso.
Henry sentia no pescoço os músculos rijos de Clay, que tentava a todo custo calar sua boca.
Do alto de seus treze anos, Tommy resolveu interromper: correu e pulou em cima deles, derrubando os três: braços e pernas, meninos e chão. Aurora também se meteu; o rabo empinado, jogando o corpo para a frente. Pernas pretas. Patas brancas. Ela latia, e eles continuavam brigando.
Quando acabou, passaram um tempo deitados; o ambiente era todo uma janela no último lance da escada, luz bolorenta e peitos arfantes. O ar estava pesado. Lufadas expelidas dos pulmões. Henry respirava com dificuldade, mas a língua continuava afiada.
Tommy, seu pestinha. — Ele olhou para o irmão e sorriu. — Acho que você acabou de salvar minha vida, garoto.
Obrigado.
Não, não. Eu é que agradeço — disse, então apontou para Clay, que já se levantava e levava a mão ao bolso. — Não sei por que a gente atura esse maluco.
Nem eu.
Mas eles sabiam, sim.
Em primeiro lugar, ele era um Dunbar; em segundo, quando se tratava do Clay, as pessoas queriam saber.

***

Mas saber o quê?
O que havia para se saber a respeito de Clayton, nosso irmão?
Fazia anos que as perguntas o perseguiam; por exemplo, por que ele sorria, mas nunca gargalhava?
Por que brigava, se nunca era para ganhar?
Por que gostava tanto de ficar sentado no telhado de casa?
Por que corria, não pelo prazer, mas pelo desconforto — uma espécie de atalho para a dor e o sofrimento —, sempre suportando ao máximo a situação, sem nunca reclamar?
Nenhuma dessas, no entanto, era a pergunta preferida dele.
Essas eram apenas o aquecimento.
E ponto final.

***

Após passarem um tempo deitados, repetiram o treino mais três vezes, e Aurora catou o tênis perdido no caminho.
Ei, Tommy.
Oi.
Da próxima vez, vê se amarra esse cadarço direito, ouviu?
Pode deixar, Henry.
Dá um nó duplo, senão eu vou quebrar sua cara.
Tá, Henry.
No térreo, ele deu um tapinha no ombro do irmão — sinal para que se pendurasse nas costas de Clay outra vez —, e eles subiram correndo a escada, depois desciam pelo elevador. (Algumas pessoas diriam que era trapaça, mas, na verdade, acabava sendo muito mais difícil assim, porque reduzia o tempo de recuperação.) Depois da última subida, Henry, Tommy e Aurora pegaram o elevador, mas Clay foi de escada. Do lado de fora, foram até o carro de Henry, uma lata-velha caindo aos pedaços com um adesivo de habilitação provisória, e seguiram a boa e velha rotina:
Aurora, sai daí. — Ela havia se sentado no banco do motorista, as orelhas erguidas formando dois triângulos. Parecia prestes a mudar a estação do rádio. — Vamos, Tommy, tira ela, fazendo o favor.
Vem logo, garota.
Henry enfiou a mão no bolso.
Um punhado de moedas.
Toma aqui, Clay. A gente se vê lá.
Dois iam de carro, e o outro, correndo.
Com a cabeça para fora da janela, Henry gritou:
Ei, Clay!
Ele continuou correndo. Não se virou, mas estava ouvindo bem. Era sempre assim.
Se conseguir, arruma umas margaridas. Eram as preferidas dela, lembra?
Como se ele fosse esquecer.
O carro deu partida com a seta ligada.
E vê se não dá bobeira na hora de pagar, hein!
Clay correu mais rápido.
Subiu a colina.

***

No início, quem o treinava era eu, depois foi Rory; enquanto eu adotava uma conduta conservadora e ingênua, Rory tirava o couro, mas deixava o garoto vivo. Já Henry encarava como trabalho: fazia pelo dinheiro, mas também porque amava aquilo, o que vamos testemunhar muito em breve.
Desde o começo, era um processo bem simples, ainda que espantoso:
Dizíamos a ele o que fazer.
Ele fazia.
Podíamos torturá-lo.
Ele suportava.
Henry era capaz de chutá-lo do carro se visse amigos andando na chuva; Clay sairia e começaria a correr na mesma hora. Então, quando o carro passava por ele, os irmãos gritavam “Nada de moleza!” pela janela, e ele corria ainda mais rápido. Tommy, com o sangue-frio de um sádico, ficava olhando pelo para-brisa traseiro, e Clay observava até perder o carro de vista. Via o corte de cabelo horrível ficando cada vez menor, e as coisas eram assim:
Até poderia parecer que nós estávamos treinando Clay.
Só que, na realidade, não chegamos nem perto.
Com o passar do tempo, as palavras foram perdendo espaço, e o método, ganhando. Sabíamos o que ele queria, mas não o que pretendia fazer com aquilo.
Para que Clay Dunbar estava treinando?

***

Às seis e meia, com tulipas aos seus pés, ele se pendurou nas grades do cemitério. Ali era alto e agradável; Clay gostava. Ficou olhando o sol mordiscar o topo dos arranha-céus.
Cidades.
Esta cidade.
Lá embaixo, o rebanho de carros seguia para casa. Os sinais de trânsito fechavam. O Assassino chegava.
Ei. — Nada. Ele agarrou a grade com mais força. — Rapaz!
Clay olhou para baixo e viu uma senhora apontando para ele e lambendo os lábios. Devia estar gostoso.
Por favor. — Seus olhos tinham contornos indefinidos, usava um vestido gasto e meia-calça; o calor não significava nada para ela. — Por favor, se importa de me dar uma dessas?
Ele observou a ruga profunda no rosto da mulher, um vinco comprido acima dos olhos dela. E lhe entregou uma tulipa.
Obrigada, obrigada, rapaz. É para o meu William.
O menino assentiu e entrou atrás dela no cemitério, caminhando em meio aos túmulos. Ao chegar lá ele se agachou ele se levantou ele cruzou os braços ele encarou o sol de fim de tarde. Não fazia ideia de quanto tempo levou até que Henry e Tommy parassem um de cada lado do epitáfio, junto com a cachorra com a língua para fora. Os três meninos ficaram ali, cabisbaixos e tensos, as mãos nos bolsos. Se a cadela tivesse bolsos, também estaria com as patinhas dentro, com certeza. Toda a atenção estava voltada para o túmulo e as flores na frente dele, murchando a olhos vistos.
Não tinha margaridas?
Clay só encarou o irmão.
Henry deu de ombros.
Já foi, Tommy, chega.
O quê?
Passa pra ele, é a vez dele.
Clay estendeu a mão. Já sabia o que fazer.
Pegou a lata de polidor e borrifou a placa de metal. Depois, lhe entregaram a manga de uma camiseta cinza, e ele começou a esfregar a lápide com vontade, dando uma boa polida.
Ficou faltando um pedaço.
Onde?
Tá cego, Tommy? Bem ali no canto, olha pra onde eu tô apontando. Precisa de óculos?
Clay então poliu o ponto em movimentos circulares, deixando o pano preto com toda a imundice da cidade. Os três usavam camisetas e bermudas velhas. Os três estavam com os dentes trincados. Henry deu uma piscadela para Tommy.
Bom trabalho, Clay. Vamos nessa? Não quero que a gente se atrase para o principal.
Henry na frente e Tommy com a cachorra logo atrás, sempre a mesma coisa.
Depois Clay.
Quando Clay se juntou a eles, Henry disse:
Bons cemitérios dão bons vizinhos.
Sinceramente, ele falava muita merda.
Odeio vir aqui — disse Tommy. — Você sabe disso, não sabe?
E Clay?
Clay — que era o mais quieto, o mais sorridente — apenas se virou uma última vez, e seu olhar percorreu a área formada por estátuas, cruzes e túmulos iluminados pelo sol.
Pareciam troféus de consolação.
Todos eles, sem exceção.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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