Debruçado
cá em cima, no 13º andar, fiquei olhando a porta do edifício à
espera de que surgisse o seu vulto lá embaixo.
Eu
a levara até o elevador, ao mesmo tempo aflito para que ela partisse
e triste com a sua partida. Nossa conversa fora amarga.
Quando
lhe abri aporta do elevador esbocei um gesto de carinho na despedida,
mas, como eu previra, ela resistiu. Pela abertura da porta vi sua
cabeça de perfil, séria, descer, sumir.
Agora
sentia necessidade de vê-la sair do edifício, mas o elevador deve
ter parado no caminho, porque demorou um pouco a surgir seu vulto
rápido. Desceu a escada, fez uma pequena volta para evitar uma poça
de água, caminhou até a esquina, atravessou a rua. Vi-a ainda um
instante andando pela calçada da transversal, diante do café; e
desapareceu, sem olhar para trás.
“Valente
menina!” — foi o que murmurei ao acaso lembrando um verso antigo
de Vinícius de Moraes; e no mesmo instante me lembrei também de uma
frase ocasional de Pablo Neruda, num domingo em que fui visitá-lo em
sua casa de Isla Negra, no Chile. “Que valientes son las chilenas!”
dissera ele, apontando uma mulher de maio que entrava no mar ali em
frente, na manhã nublada; e explicara que estivera andando pela
praia e apenas molhara os pés na espuma: a água estava gelada, de
cortar.
“Valente
menina!” Lá embaixo, na rua, era tocante seu pequeno vulto,
reduzido pela projeção vertical. Iria com os olhos úmidos ou
sentiria apenas a alma vazia? “Valente menina!” Como a chilena
que enfrentava o mar, em Isla Negra, ela também enfrentava sua
solidão. E eu ficava com a minha, parado, burro, triste, vendo-a
partir por minha culpa.
Deitei-me
na rede, sentindo dor de cabeça e um certo desgosto por mim mesmo.
Eu poderia ser pai dessa moça — e me pergunto o que sentiria, como
pai, se soubesse de uma aventura sua, como essa, com um homem de
minha idade. Tolice! Os pais nunca sabem nada, e quando sabem não
compreendem; estão perto e longe demais para entender. Ele, esse pai
de quem ela falava tanto, não acreditaria se a visse entrar pela
primeira vez em minha casa, como entrou, com sua bolsa a tiracolo, o
passo leve e o riso nervoso. “Como você pensava que eu fosse?”
Lembro-me de que fiquei olhando, meio divertido, meio assustado,
aquela mocetona loura e ágil que só falava me olhando nos olhos, e
me fez as confissões mais íntimas e graves entremeadas de mentiras
pueris — sempre me olhando nos olhos. Disse-me que a metade das
coisas que me contara pelo telefone era pura invenção — e logo
inventou outras. Senti que suas mentiras eram um jeito enviesado que
ela tinha de se contar, um meio de dar um pouco de lógica às suas
verdades confusas.
A
ternura e o tremor de seu duro corpo juvenil, seu riso, a insolência
alegre com que invadiu minha casa e minha vida, e suas previsíveis
crises de pranto — tudo me perturbou um pouco, mas reagi.
Terei
sido grosseiro ou mesquinho, terei deixado sua pequena alma trêmula
mais pobre e mais só?
Faço-me
estas perguntas, e ao mesmo tempo me sinto ridículo em fazê-las.
Essa moça tem a vida pela frente, e um dia se lembrará de nossa
história como de uma anedota engraçada de sua própria vida, e
talvez a conte a outro homem olhando-o nos olhos, passando a mão
pelos seus cabelos, às vezes rindo — e talvez ele suspeite de que
seja tudo mentira.
Rio,
abril, 1967.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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