segunda-feira, 24 de julho de 2023

Retrato de um assassino quando homem de meia-idade



Se antes do início (pelo menos na escrita) havia uma máquina de escrever, um cachorro e uma cobra, no início em si — onze anos antes — havia um assassino, uma mula e Clay. Mas, mesmo quando se trata de inícios, alguém precisa chegar antes, e naquele dia não poderia ter sido outro senão o Assassino. Afinal, foi ele quem fez a história seguir em frente e todos nós olharmos para trás. E, para isso, bastou chegar. Ele chegou às seis horas.
Tudo foi muito apropriado, numa noite escaldante de fevereiro, e o resto é história: o dia quente de rachar o concreto, o sol dolorosamente a pino. O calor era tão constante, tão palpável, que dava para carregá-lo nos braços — ou melhor, o calor carregava o Assassino nos braços. De todos os assassinos da história, aquele era, com certeza, o mais patético:
Com um metro e setenta e sete, tinha uma estatura mediana.
Com setenta e cinco quilos, tinha um peso normal.
Mas não se deixe enganar: ele era uma ruína ambulante trajando um terno; encurvado, decrépito. Andava escorado no ar, como se apenas esperasse o dia em que nem isso lhe restasse e ele fosse despencar de vez, mas isso não aconteceria, pelo menos não naquele dia, pois, acredite ou não, aquele não era um bom momento para assassinos pedirem favores.
Não, naquele dia ele conseguia sentir.
Conseguia distinguir o cheiro no ar.
Ele era imortal.
O que basicamente resume tudo.
Conte com um Assassino para ser invencível justo no único momento em que estaria melhor morto.

***

Ele passou um bom tempo então, pelo menos uns dez minutos, parado na entrada da rua Archer, aliviado por ter, enfim, conseguido chegar, mas apavorado por estar ali. A rua parecia nem se importar; uma brisa leve a percorria, o aroma esfumaçado quase tangível. Os carros não estavam estacionados, e sim imprensados como guimbas de cigarro, e os fios elétricos vergavam sob o peso de pombos silenciosos incomodados com o calor. À sua volta, uma cidade se erguia e dizia:
Bem-vindo de volta, Assassino.
A voz era acolhedora em seu ouvido.
Parece que você está passando por maus bocados… Na verdade, maus bocados é pouco… Você está vivendo um inferno.
E ele sabia disso.
E então veio o calor.
A rua Archer começou a se preparar para sua missão, praticamente esfregando as mãos, ansiosa, e o Assassino quase entrou em erupção. Sentiu a chama o envolvendo, nascendo dentro do paletó, trazendo as perguntas:
Será que ele seguiria em frente, concluiria o início?
Será que conseguiria ir até o fim?
Por um último instante, ele se deu ao luxo de se deleitar na tranquilidade, então engoliu em seco, massageou a coroa de espinhos que formava seu cabelo e, com uma determinação amarga, caminhou até o número 18.
Um homem vestindo um terno em chamas.

***

É claro que, naquele dia, ele estava indo ver cinco irmãos.
Nós, os garotos Dunbar.
Do mais velho para o mais novo:
Eu, Rory, Henry, Clayton, Thomas.
Nós nunca mais seríamos os mesmos.
Para ser honesto, nem ele.
E para dar pelo menos um gostinho daquilo que o Assassino estava prestes a enfrentar, convém contar como nós éramos:
Muitos nos consideravam desajustados.
Bárbaros.
No geral, tinham razão:
Nossa mãe havia morrido.
Nosso pai havia fugido.
Falávamos palavrões que nem condenados, brigávamos feito cão e gato e travávamos batalhas épicas na sinuca ou no pingue-pongue (sempre em mesas de terceira ou quarta mão, muitas vezes instaladas no gramado irregular do quintal), no Monopoly, nos dardos, no futebol, no baralho e em qualquer outra coisa que parasse nas nossas mãos.
Tínhamos um piano que ninguém tocava.
Nossa TV estava cumprindo prisão perpétua.
Nosso sofá pegou vinte anos.
Às vezes o telefone tocava, e um de nós saía correndo pela varanda e entrava na casa ao lado; era só a sra. Chilman, nossa vizinha idosa, que tinha comprado outra lata de molho de tomate e não conseguia abrir sozinha aquela porcaria. Então, quem tinha saído voltava para casa, deixando a porta bater ao entrar, e a vida continuava.
Sim, para nós cinco, a vida sempre continuava:
Essa era uma lição que vínhamos tentando aprender na base do tapa, ainda mais quando tudo estava dando muito certo, ou muito errado. Era nessas ocasiões que saíamos pela rua Archer, à tardinha. Caminhávamos pela cidade. Os prédios, as ruas. As árvores apreensivas. Absorvíamos as conversas gritadas nos bares, nas casas e nos condomínios, com a certeza absoluta de que ali era o nosso lugar. Acho que no fundo esperávamos conseguir pegar tudo aquilo, meter debaixo do braço e levar para casa — mesmo que, no dia seguinte, sempre acordássemos e descobríssemos que tudo havia sumido, prédios e luzes intensas à solta por aí.
Ah… mais uma coisa.
Talvez a mais importante.
Além de termos uma lista seleta de bichos de estimação perturbados, éramos os únicos donos de uma mula, até onde sabíamos.
E que mula ela era.

***

O animal se chamava Aquiles, e era muito longa a história de como ele tinha ido parar no quintal da nossa casa, um bairro de subúrbio com uma pista de turfe, apenas um dos muitos da cidade. De um lado, as cocheiras e a pista de treinos atrás da nossa casa, um estatuto regional ultrapassado e um velho gordo e triste com sérios problemas de ortografia. Do outro, havia nossa mãe morta, nosso pai foragido e o caçula, Tommy Dunbar.
Na ocasião, nem todo mundo na casa foi consultado, e a chegada da mula gerou controvérsia. Após pelo menos uma discussão acalorada com Rory...
(— Ô Tommy, o que que é isso aqui?
O quê?
Como assim, “o quê”? Você só pode estar de sacanagem com a minha cara. Tem um burro no quintal!
Não é um burro, é uma mula.
E daí?
Um burro é um burro, uma mula é o cruzamento entre...
Por mim pode ser um cruzamento de um cavalo quarto de milha com a porra de um pônei Shetland, tô nem aí! O que ele tá fazendo embaixo do varal?
Comendo a grama.
Isso eu percebi!)
... nós demos um jeito de ficar com ele.
Ou, para ser mais direto, a mula ficou.
Assim como a maioria dos outros bichos de estimação do Tommy, Aquiles também tinha alguns problemas. O mais notável era a ambição: como nossa porta de tela já havia ido para o espaço fazia muito tempo, Aquiles era mestre em entrar em casa quando encontrava a porta dos fundos encostada — se estivesse escancarada, então, nem se fala. Acontecia pelo menos uma vez por semana, e pelo menos uma vez por semana eu surtava. Era mais ou menos assim:
Je-sus Cristo! — Na época, eu ficava meio descontrolado quando xingava, e todos já conheciam o meu hábito de enfatizar o Jesus em detrimento do Cristo. — Eu já falei pra vocês uma, duas, cem vezes, seus imbecis! É pra deixar a porcaria da porta dos fundos fechada!
E por aí vai.

***

O que nos leva de volta ao Assassino. Como ele poderia saber?
Poderia ter suposto que, quando chegasse, talvez nenhum de nós estivesse em casa. Poderia ter previsto que ficaria na dúvida entre usar sua chave antiga ou nos esperar na varanda — para então fazer sua única pergunta, sua proposta.
Sem dúvida, era escárnio humano o que esperava; e de certa forma até pedia por isso.
Jamais estaria preparado para aquilo, porém.
Que rasteira:
A casinha cruel, o massacre de silêncio.
E aquela ladrazinha, aquela tratante, que era a nossa mula.
Por volta das seis e quinze, ele percorreu cada passo da rua Archer, e o burro de carga deu uma piscadela.

***

E foi assim.
Dentro de casa, o primeiro com quem o Assassino cruzou olhares foi Aquiles, e ninguém mexia com Aquiles. Estava na cozinha, a alguns passos da porta dos fundos, em frente à geladeira, com sua clássica expressão de “Tá olhando o quê?” estampada na cara comprida e assimétrica. De narinas infladas, mastigava alguma coisa. Blasé. No controle da situação. Se estava tomando conta da cerveja, fazia um ótimo trabalho.
E aí?
Àquela altura, parecia que Aquiles estava monopolizando a conversa.
Primeiro a cidade, agora a mula.
Em tese, até que fazia certo sentido. Se era para um espécime equino surgir em algum lugar daquela cidade, só poderia ter sido ali; as cocheiras, a pista de treino, os ecos distantes dos locutores.
Mas uma mula?
O choque foi indescritível, e o ambiente também não ajudava. Aquela cozinha tinha geografia e clima próprios:
Paredes nubladas.
Chão infértil.
Um litoral de pratos sujos que se estendia pela pia.
E o calor, aquele calor.
A mula chegou a aliviar sua beligerância vigilante por conta do calor terrível, pesado. Do lado de dentro estava pior do que lá fora, e isso era uma façanha.
Ainda assim, Aquiles logo voltou ao seu posto, ou será que o Assassino estava tão desidratado a ponto de delirar? Tanta cozinha no mundo... Ele chegou a pensar em esfregar os olhos para enxergar direito, mas seria inútil.
Aquilo era real.
Ele tinha certeza de que o bicho — aquela maldita mula de pelo cinza e castanho-avermelhado, todo irregular, a cara de palha, os olhos arregalados, as narinas redondas, se sentindo em casa — estava ali, plantado no linóleo rachado, irredutível, triunfante, passando uma mensagem clara e irrefutável:
Um assassino pode fazer muitas coisas, mas jamais deveria, em hipótese alguma, voltar para casa.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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