sexta-feira, 14 de julho de 2023

O que é arte? | Capítulo VIII

Arbeiterstadt (1920), de Hans Baluschek

Mas se a arte é uma atividade humana cujo objetivo é transmitir aos outros os melhores e mais elevados sentimentos que se atinge na vida, como pôde a humanidade viver um período tão longo — desde o tempo em que se deixou de acreditar no ensinamento da Igreja até hoje — sem essa importante atividade e, em lugar disso, se contentar com a atividade sem valor da arte que simplesmente garante prazer?
Para responder essa questão é necessário, antes de mais nada, corrigir o erro que as pessoas geralmente cometem de atribuir à nossa arte o significado de arte verdadeira e universalmente humana. Estamos tão acostumados a considerar ingenuamente que a melhor raça humana não é só a caucasiana, mas também, a anglo-saxã, se formos ingleses ou americanos, a alemã, se formos alemães, a gálio-latina, se formos franceses, e a eslava, se formos russos, que, quando falamos de nossa arte, estamos plenamente convencidos de que ela não apenas é arte verdadeira, mas também que é a melhor e a única. E, no entanto, além de nossa arte não ser a única, tal como a Bíblia não é o único livro, ela não é nem mesmo a arte de toda a humanidade cristã, apenas aquela de uma pequena parcela da humanidade. Era possível falar de uma arte nacional hebreia, grega ou egípcia, assim como hoje se pode falar de uma arte chinesa, japonesa ou indiana comum a toda a nação. Uma arte assim, comum a toda a nação, existiu na Rússia antes de Pedro, o Grande, e também em sociedades europeias até o século XIII ou XIV. Mas como as pessoas das classes privilegiadas dessas sociedades, tendo perdido a fé na doutrina da Igreja, não acolheram o verdadeiro cristianismo e ficaram sem religião nenhuma, não é mais possível falar da arte das altas camadas das nações cristãs como se se tratasse da arte em geral. Desde que as classes superiores das nações cristãs perderam a fé no cristianismo da Igreja, sua arte se tornou separada da do povo e passaram a existir duas artes: a do povo e a dos senhores. E, portanto, à pergunta de como pôde suceder que a humanidade tenha vivido um certo período de tempo sem arte real, tendo-a substituído pela arte que apenas serve ao prazer, cabe a resposta de que não foi toda a humanidade que viveu sem a arte verdadeira e nem mesmo uma parte considerável dela, mas apenas as classes superiores da sociedade cristã europeia, e isso por um curto período — desde o início da Renascença e da Reforma até a nossa própria época.
E a consequência dessa ausência de arte verdadeira mostrou ser exatamente aquela que teria que ser: a depravação da classe que se vale dessa arte. Todas as teorias confusas e incompreensíveis de arte, todos os julgamentos falsos e contraditórios sobre ela, e, acima de tudo, a estagnação autoconfiante de nossa arte no seu caminho errôneo — tudo isso é resultado da afirmação, hoje de uso comum e tomada como verdade incontestável, ainda que notável em sua óbvia falsidade, de que a arte de nossas classes superiores é a única verdadeira e universal. A despeito do fato de que essa afirmação — perfeitamente idêntica à dos devotos de várias religiões que consideram a sua a única e verdadeira — é perfeitamente arbitrária e claramente incorreta, ela é calmamente repetida por todas as pessoas do nosso círculo com total confiança em sua infalibilidade.
A arte que possuímos é toda a arte, a única e verdadeira, e, no entanto, dois terços da raça humana, todos os povos da Ásia e da África, vivem e morrem sem conhecer essa única arte verdadeira. Além disso, não mais que 1% de todas as pessoas de nossa sociedade cristã se beneficia desta arte que chamamos de toda a arte. Os outros 99% dos europeus vivem e morrem, por gerações, trabalhando duro, sem jamais provar dessa arte, que, aliás, é de tal espécie que, mesmo que pudessem ter acesso a ela, não entenderiam nada. Nós, conforme a teoria estética que professemos, reconhecemos que a arte ou é uma das mais altas manifestações da Ideia, de Deus, da Beleza, ou é o mais alto prazer espiritual. Além disso, reconhecemos que todas as pessoas têm direitos iguais, se não às bênçãos materiais, ao menos às espirituais; e, enquanto isso, 99% do povo europeu, geração após geração, vive e morre trabalhando duro em tarefas necessárias à produção de nossa arte, da qual não se beneficia, e mesmo assim afirmamos calmamente que a arte que produzimos é a real, a verdadeira, a única — é o todo da arte.
À observação de que se nossa arte é a verdadeira todos deveriam beneficiar-se dela, a objeção usual é que, se nem todos se beneficiam, não é por culpa da arte, mas da organização errônea da sociedade; que é possível imaginar que no futuro o trabalho físico será parcialmente feito por máquinas e se tornará mais leve por sua distribuição adequada, que o trabalho da produção de arte será feito em turnos; que não há necessidade de que as mesmas pessoas constantemente fiquem sob o palco, movimentando cenário, levantando equipamentos e tocando piano ou tuba, ou compondo os tipos e imprimindo livros, e que os que fazem tudo isso poderão trabalhar um pequeno número de horas por dia e, no seu tempo livre, poderão usufruir de todas as bênçãos da arte.
Assim dizem os defensores de nossa arte exclusiva. Porém, eu acho que nem mesmo eles acreditam no que dizem, porque não podem ignorar que nossa arte refinada só pode emergir da escravidão das massas populares, e só pode continuar enquanto essa escravidão existir, e que os especialistas — escritores, músicos, dançarinos e atores — só podem atingir seu alto grau de perfeição sob a condição do trabalho pesado dos operários, e que somente nessas condições pode existir o público requintado que aprecia essas obras. Libertem os escravos do capital e será impossível produzir uma arte tão refinada.
Mas, mesmo que admitamos o inadmissível — isto é, que se encontrem métodos que tornem possível a todas as pessoas se beneficiarem da arte (ou o que é considerado arte entre nós) —, surge outra consideração que mostra por que nossa arte de hoje não pode ser a arte toda: a saber, que ela é totalmente incompreensível para o povo. As obras poéticas já foram escritas em latim, mas hoje as obras de arte são incompreensíveis para o povo, como se fossem escritas em sânscrito. A resposta habitual a essa proposição é que, se as pessoas não entendem a nossa arte agora, isso só prova que são subdesenvolvidas, exatamente como aconteceu em cada novo estágio da arte. Primeiro, não era entendido, mas depois as pessoas se acostumavam.
O mesmo ocorrerá com a arte de hoje: ela se tornará compreensível quando todos forem tão instruídos como nós, pessoas de classe superior, que as produzimos”, dizem os defensores da nossa arte. Mas essa afirmação obviamente é ainda mais incorreta do que a primeira, porque sabemos que a maioria das obras de arte de classes superiores — assim como odes, poemas narrativos, dramas, cantatas, pastorais, pinturas etc., que as altas classes admiraram em sua época — nunca foi mais tarde entendida nem admirada pelas grandes massas e permaneceu o que sempre foi: uma diversão para as pessoas ricas de seu tempo, as únicas para quem tinham alguma importância. A partir disso se pode concluir que ocorrerá o mesmo com a nossa arte. E quando, para provar que as pessoas no devido tempo a compreenderão, é dito que algumas obras da assim chamada poesia, música ou pintura clássica — de que as massas não gostavam a princípio — passaram a ser apreciadas mais tarde, depois que lhe foram oferecidas de todos os meios, isso somente prova que a multidão, e além do mais uma multidão urbana, já de início meio corrompida, sempre pode ser facilmente acostumada, pela deturpação do seu gosto, a qualquer arte que se queira. E, além disso, essa arte não é produzida nem escolhida por ela, mas lhe é empurrada à força nos locais públicos onde essa multidão tem acesso à arte. Para a vasta maioria dos trabalhadores, nossa arte, inacessível a eles em razão de seu preço, também lhes é estranha em seu próprio conteúdo, pois transmite os sentimentos de pessoas muito afastadas das condições de vida de grande parte da humanidade. Aquilo que constitui prazer para um homem das classes ricas não é percebido como prazer por um trabalhador, e nada evoca nele, ou evoca sentimentos completamente contrários àqueles sentidos por um homem ocioso e saciado. Assim, por exemplo, os sentimentos de honra, patriotismo e amorosidade, que constituem o principal conteúdo da arte de nossos dias, evocam em um trabalhador somente perplexidade, escárnio ou indignação. De forma que, mesmo que a maioria tivesse a oportunidade, em seu tempo livre, de ver, ler ou ouvir — tal como acontece nas cidades, em galerias de pinturas, concertos populares, livros — tudo aquilo que constitui a flor da arte contemporânea, não entenderia nada de nossa arte refinada e, mesmo que o fizesse, a maior parte do que entendesse não só não elevaria sua alma, como também a corromperia. Assim, para pessoas sinceras e responsáveis, não há nenhuma dúvida de que a arte das classes altas nunca poderá se tornar arte do povo todo. Portanto, se a arte é uma coisa importante, um benefício espiritual tão necessário para todas as pessoas quanto a religião (como gostam de dizer os admiradores da arte), ela deveria então ser acessível a todos. E se ela não pode se tornar arte para todo o povo, temos que admitir uma destas duas coisas: ou a arte não é tão importante quanto se faz parecer que é, ou a arte a que damos esse nome não é importante.
Esse dilema é insolúvel e, desse modo, pessoas inteligentes e imorais o resolvem audaciosamente negando um lado dele: o direito que as massas populares têm de se beneficiar da arte. Essas pessoas dão voz direta àquilo que se encontra no centro da questão: somente os schöne Geister, ou os eleitos, como eram chamados pelos românticos, ou super-homens, como foram chamados pelos seguidores de Nietzsche, podem participar do belo supremo (em seu entendimento) e se beneficiar dele — ou seja, usufruir do mais elevado prazer da arte. Os demais, a plebe ignara, incapazes de vivenciá-lo, devem servir aos sofisticados prazeres dessa raça superior de homens. Os que expressam tal visão pelo menos não fingem nem desejam combinar o incombinável; ao contrário, admitem diretamente o que acontece nesse caso: a nossa arte é somente a arte da alta classe. Esse é, essencialmente, o modo como a arte foi e é compreendida por todas as pessoas dedicadas a ela na nossa sociedade.

Leon Tolstói, in O que é arte?

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