Rainha
Elizabeth assistindo a uma performance de “As alegres comadres de
Windsor” no Globe Theater (1840), de David Scott
Desde
a época em que as altas camadas sociais perderam a fé no
cristianismo da Igreja, o padrão da arte tem sido a beleza — isto
é, o prazer proporcionado pela arte —, e, de acordo com essa
visão, tomou forma uma teoria estética entre essas classes, para
justificar tal entendimento: a de que o objetivo da arte é a
manifestação da beleza. Os partidários dessa teoria, para
confirmar sua correção, declaram que ela não foi inventada por
eles, que ela jaz na essência das coisas e já fora reconhecida
pelos gregos antigos. Mas essa afirmação é totalmente arbitrária
e não tem outro fundamento senão o fato de que para os antigos
gregos, com seu ideal moral inferior (se comparado ao ideal cristão),
a ideia de bem (tò agaθòν) ainda não era nitidamente distinta da
ideia de belo (tò kaλ óν).
A
mais alta perfeição do bem, não apenas não coincidente com
beleza, mas principalmente oposta a ela — que os judeus já
conheciam na época de Isaías e que foi plenamente expressa pelo
cristianismo —, era totalmente desconhecida dos gregos. Eles
pensavam que o belo deve necessariamente ser bom. É verdade que os
principais pensadores — Sócrates, Platão, Aristóteles —
intuíram que o bem pode não coincidir com a beleza. Sócrates
subordinou a beleza ao bem; Platão, para unir as duas ideias, falava
de uma beleza espiritual; Aristóteles exigia que a arte afetasse as
pessoas moralmente (kaθaqaρiς). Mas mesmo esses pensadores não
conseguiram renunciar inteiramente à noção de que a beleza e o bem
coincidem.
E,
portanto, na língua daquele tempo entrou em uso a palavra composta
kaλοκαγαθια (bondade-bela), tendo essa noção
combinada como significado.
Os
pensadores gregos obviamente começavam a se aproximar do conceito do
bem expresso pelo budismo e o cristianismo e se confundiram ao
estabelecer relações entre o bem e a beleza. Os juízos de Platão
sobre a beleza e o bem estão cheios de contradições. E foi
exatamente essa confusão de conceitos que as pessoas do mundo
europeu — aquelas que tinham perdido toda a fé — tentaram
transformar em lei. Elas queriam provar que essa combinação de
beleza e bem jaz na própria essência da matéria e os dois devem
coincidir, que a palavra e o conceito καλoκαγαθια (cheio de
significado para os gregos, mas sem qualquer significado para um
cristão) representa o mais alto ideal da humanidade. Sobre esse
mal-entendido se erigiu a nova ciência da estética. E, para
justificar essa nova ciência, o ensinamento antigo sobre a arte foi
reinterpretado de maneira a fazer parecer que essa ciência inventada
também existira entre os gregos.
Na
verdade, o raciocínio dos antigos a respeito da arte não lembra o
nosso de forma alguma. Assim, Bénard escreve muito corretamente em
seu livro sobre a estética de Aristóteles: “Pour qui veut y
regarder de près, la théorie du beau et celle de l’art sont tout
à fait séparées dans Aristote, comme elles le sont dans Platon et
chez leurs successeurs.”
De
fato, o raciocínio dos antigos sobre a arte não só não confirma a
nossa estética, como praticamente nega seu ensinamento sobre a
beleza. E no entanto todos os estetas, de Schassler a Knight,
sustentam que a ciência do belo — estética — foi iniciada pelos
antigos — Sócrates, Platão, Aristóteles — e supostamente
mantida, até certo ponto, pelos epicuristas e estoicistas —
Sêneca, Plutarco e até Plotino —, mas, em razão de algum
acidente, essa ciência desapareceu de repente no século IV e esteve
ausente por 1.500 anos, somente revivida na Alemanha, em 1750, com a
teoria de Baumgarten.
Depois
de Plotino, diz Schassler, decorreram 15 séculos durante os quais
não houve o menor interesse científico no mundo da beleza e da
arte. Esses 1.500 anos foram perdidos para a estética e para a
elaboração da estrutura erudita dessa ciência.
Na
verdade, não foi nada disso. A ciência da estética, a ciência do
belo, não desapareceu e não poderia desaparecer, porque nunca
existiu. Os gregos, como os outros povos de todos os tempos e
lugares, como em qualquer outro assunto, simplesmente consideravam a
arte boa quando servia ao bem (tal como o entendiam) e má quando era
oposta a esse bem. Eles próprios eram tão pouco desenvolvidos
moralmente que pensavam que a beleza e o bem coincidiam. É sobre o
retrospecto dessa visão mundial a respeito dos gregos que se erigiu
a ciência da estética inventada pelos homens do século XVIII e
especialmente transformada em teoria por Baumgarten. Os gregos (como
qualquer um pode se convencer ao ler o excelente livro de Bénard
sobre Aristóteles e seus seguidores e o livro de Walter sobre
Platão) nunca tiveram nenhuma ciência da estética.
As
teorias estéticas, e o próprio nome dessa ciência, emergiram há
cerca de 150 anos entre as classes ricas do mundo cristão europeu,
simultaneamente em várias nações — Itália, Holanda, França,
Inglaterra. Seu fundador, seu moldador, aquele que lhe deu forma
científica e teórica, foi Baumgarten.
Com
pedante exatidão e simetria externas tipicamente alemãs, ele
inventou e expôs essa espantosa teoria. E, a despeito de sua
extraordinária falta de fundamento, nenhuma outra teoria foi tão
adequada ao gosto da multidão instruída, nem jamais foi adotada com
tamanha presteza e falta de crítica. Essa teoria se ajustava tão
bem ao gosto da alta classe, apesar de sua arbitrariedade e da falta
de substância de suas teses, que até hoje ela é repetida pelos
cultos e os incultos como se fosse algo indiscutível e evidente.
Habent
sua fata libelli pro capite lectoris e especialmente habent
sua fata as teorias que vêm do estado de desilusão em que se
encontra a sociedade, no meio da qual e para o bem da qual essas
teorias são projetadas. Se uma teoria justifica a falsa posição na
qual está uma parte da sociedade, por mais infundada e falsa que
essa teoria seja, ela será adotada e se tornará a crença daquela
parte da sociedade. Assim é, por exemplo, a famosa e totalmente
infundada teoria de Malthus, que diz que a população cresce em
progressão geométrica, enquanto os recursos alimentares crescem
somente em progressão aritmética, o que tem como resultado a
superpopulação da Terra. Assim é também a teoria, derivada de
Malthus, da seleção e luta pela existência como base do progresso
humano. Assim é também a teoria de Marx, agora amplamente
disseminada, de que o progresso econômico é inevitável e consiste
no engolimento de todos os pequenos empreendimentos privados pelos
grandes capitalistas. Por mais infundadas que as teorias desse tipo
possam ser, por mais contraditórias que sejam a tudo que a
humanidade sabe e reconhece, por mais imorais que possam ser, elas
são aceitas em confiança, sem crítica, e são pregadas com
entusiasmo exaltado, às vezes por séculos, até que as condições
que as justifiquem sejam eliminadas ou o seu absurdo se torne muito
óbvio. Assim é, também, a espantosa teoria da trindade de
Baumgarten — Bem, Verdade e Beleza —, segundo a qual se revela
que o melhor que pode ser feito pela arte dos povos que viveram 1.800
anos de vida cristã é adotar como seu ideal o mesmo que fora
sustentado por um pequeno povo semisselvagem e escravagista de dois
mil anos atrás, que retratava muito bem corpos humanos nus e
construía edifícios agradáveis aos olhos. Ninguém nota nenhuma
dessas incongruências. Homens instruídos escrevem longos e
vaporosos tratados sobre a beleza como membro da trindade estética:
o Belo, o Verdadeiro, o Bom; Das Schöne, das Wahre, das Gute; le
Beau, le Vrai, le Bon — com letras maiúsculas — são
repetidos por filósofos, estetas, artistas, pessoas comuns,
novelistas e panfletistas, e todo mundo parece pensar que ao
pronunciar essas palavras sacramentais está falando de algo bastante
certo e firme — uma coisa sobre a qual se pode basear um juízo
próprio. Na verdade, essas palavras não têm um significado preciso
e também impedem que demos sentido preciso para a arte existente.
Elas são necessárias apenas para justificar a falsa importância
que atribuímos a uma arte que transmite toda espécie de
sentimentos, desde que esses sentimentos nos proporcionem prazer.
No
momento em que renunciarmos por algum tempo ao hábito de considerar
que essa trindade possui a verdade da Trindade religiosa e
perguntarmos a nós mesmos o que entendemos como significado das três
palavras dessa trindade, ficaremos convencidos sem nenhuma dúvida de
quão absolutamente fantástico é unir essas três palavras e
conceitos totalmente diferentes e, acima de tudo, desproporcionais.
O
bom, o belo e o verdadeiro são colocados no mesmo nível e todos os
três conceitos são reconhecidos como fundamentais e metafísicos. E
no entanto a realidade não é nada disso.
O
bem é o eterno, o objetivo mais alto de nossa vida. Não importa
como o entendamos, nossa vida não é senão um esforço em direção
ao bem — ou seja, em direção a Deus.
O
bem é, de fato, um conceito fundamental que metafisicamente
constitui a essência da nossa consciência, um conceito indefinível
pela razão.
O
bem é aquilo que ninguém pode definir, mas que define tudo o mais.
Mas
o belo, se não quisermos nos satisfazer com palavras, mas, sim,
falar do que entendemos, o belo não é mais do que aquilo que nos é
agradável.
O
conceito de beleza não coincide com o de bem, é inclusive oposto a
ele, porque o bem, na maioria das vezes, coincide com um triunfo
sobre nossas predileções, enquanto a beleza é a base de todas as
nossas predileções.
Quanto
mais nos damos à beleza, mais distantes estamos do bem. Eu sei que a
resposta costumeira a isso é que existe uma beleza moral e
espiritual, mas tal alegação é somente um jogo de palavras, pois
dizendo beleza espiritual ou moral não queremos dizer senão o bem.
A beleza espiritual, ou o bem, na maioria das vezes não só não
coincide com o significado usual de beleza, como se opõe a ele.
Quanto
à verdade, é ainda menos possível atribuir a esse membro da
suposta trindade uma unicidade com o bem ou o belo, nem sequer uma
existência independente.
Chamamos
verdade somente a correspondência entre a manifestação ou
definição de um objeto e a sua essência, ou a compreensão do
objeto que é comum a todas as pessoas. E o que é comum aos
conceitos de beleza e verdade, por um lado, e ao de bem, por outro?
Os
conceitos de beleza e verdade não só não são equivalentes ao de
bem, não apenas não partilham uma mesma essência, como nem mesmo
coincidem com ele.
A
verdade é a correspondência entre a manifestação e a essência do
objeto e é, portanto, um meio de atingir o bem, mas a verdade em si
mesma não é nem o bem nem o belo e nem mesmo coincide com eles.
Dessa
forma, por exemplo, Sócrates e Pascal, assim como muitos outros,
consideravam discordante do bem um conhecimento da verdade de objetos
inúteis. E quanto à beleza, a verdade nada tem em comum com ela e
é, na maior parte das vezes, oposta a ela, porque, ao expor o
engano, a verdade destrói a ilusão, a principal condição da
beleza.
E,
assim, a união arbitrária desses três conceitos desproporcionais e
estranhos entre si serviu de base para a espantosa teoria segundo a
qual a diferença entre a boa arte, que transmite bons sentimentos, e
a arte ruim, que transmite maus sentimentos, foi totalmente
obliterada; e uma das mais baixas manifestações da arte, a arte por
mero prazer — contra a qual todos os mestres da humanidade
alertaram as pessoas —, veio a ser considerada a mais alta. E a
arte deixou de ser a coisa importante que deveria ser e se tornou
diversão vazia de pessoas ociosas.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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