Tem
um morador novo no B&B. Seus ombros são tão acentuados e suas
costas tão curvas que quando ele se senta na cadeira, encurvado,
parece ter asas debaixo da camiseta. Está conversando com o
marroquino, e os dois tentam se comunicar numa língua que não
conhecem muito bem. O marroquino parece gostar do rapaz. Seu nome é
Diomande e ele vem da Costa do Marfim. De tempos em tempos, ele olha
para mim enquanto fala, mas não demonstro estar prestando atenção.
A
abelha continua viva. Localizei-a no jardim, empoleirada na mesma
flor onde a deixei. Mais uma vez, atraí-a para a minha mão e
trouxe-a comigo para a sala de visitas, e agora ela se arrasta pelo
meu braço. Na maior parte do tempo, meus olhos estão fixos nas
portas do pátio. Foco no reflexo de Diomande, e nas sombras
salpicadas das árvores atrás dele.
– Eu
estava trabalhando no Gabão – Diomande está contando –, e me
disseram que eu deveria ir para a Líbia, que ali existem muitas
oportunidades. Meu amigo diz que houve uma guerra ali, mas que agora
está seguro, então decido ir e conseguir um bom trabalho. Pago
quinze mil francos CFA12 para ir de carro oito dias pelo deserto, mas
fui capturado e posto na prisão. – Ele fala com os cotovelos nos
joelhos, e enquanto se mexe, suas omoplatas sobem, e acho que talvez
suas asas se abram. Ele é muito alto e muito magro, com os joelhos
altos, de modo que está dobrado sobre si mesmo.
– A
gente ia três dias sem comida – ele continua –, só talvez um
pouco de pão e água, para muitos de nós dividir. Eles bateram na
gente, bateram na gente o tempo todo. Não sei quem eram, mas então
eles querem duzentos mil CFA pela minha liberdade. Ligo para minha
família mas dinheiro nunca veio.
Ele
ajusta sua posição agora, e pousa os longos dedos marrons sobre os
joelhos. Viro as costas para seu reflexo, e dou uma boa olhada nele,
na maneira como os nós dos seus dedos se destacam e seus olhos se
salientam. Não há carne nesse rapaz. É como se ele tivesse sido
comido pelas aves. Parece um cadáver ou um prédio bombardeado. Ele
flagra meu olhar, segura-o por um momento, e depois olha para o teto,
para a lâmpada exposta.
– Então,
como foi que você escapou, geezer? – pergunta o marroquino,
impaciente por ouvir o resto.
– Depois
de três mês a milícia rival invadiu a prisão e soltou todos os
reféns. Eu estava livre. Caminhei até Trípoli, onde encontrei meu
amigo e consegui trabalho.
– Fico
feliz por você – diz o marroquino.
– Mas
patrão novo não paga eu, e quando pergunto pelo dinheiro ele diz
que vai me matar. Quero voltar para o Gabão, mas não tem como,
então entro num barco de atravessadores para cruzar o Mediterrâneo.
O
marroquino recosta-se na poltrona, então, e acompanha o olhar do
rapaz até a lâmpada no teto.
– Você
chegou até aqui. Como?
– É
uma longa história – Diomande diz. Mas não diz mais nada. Parece
cansado agora e, provavelmente notando isso, o marroquino dá um
tapinha no joelho do rapaz e muda de assunto, contando-lhe sobre os
costumes estranhos do povo daqui.
– Eles
usam tênis com ternos. Quem usa isso junto? E usam roupas de dormir
ao ar livre. Por quê?
– É
agasalho – Diomande diz, apontando para o seu.
Geralmente,
o velho está de pijama nesta hora da noite, mas durante o dia ele
veste um velho terno azul-acinzentado e gravata.
Espero
até eles irem para a cama e saio para o jardim, onde coloco a abelha
de volta na flor. O som do trânsito é suave e sopra uma brisa,
movendo as folhas. O sensor não me detectou, e a escuridão é
tranquilizante, a lua está cheia e alta no céu, e é quando sinto
alguém parado atrás de mim. Ao me virar, Mohammed está sentado no
chão, brincando com a bolinha de gude, rolando-a nas rachaduras do
cimento. Ao lado dele há uma minhoca deslizando para dentro de uma
poça. Ele olha para mim.
– Tio
Nuri – diz –, estou ganhando da minhoca! O nome dela é Habib.
Quer dar um oi pro Habib?
Ele
pega a minhoca e levanta-a para que eu a veja.
– O
que está fazendo aqui? – pergunto.
– Vim
procurar a chave porque quero sair.
– Que
chave? – pergunto.
– Acho
que ela está naquela árvore. Está pendurada ali, mas não sei
qual.
Viro-me
e vejo que tem mais de uma centena de chaves douradas, penduradas na
árvore. Elas giram com a brisa, e reluzem ao luar.
– Você
pega ela pra mim, tio Nuri? – ele diz. – Porque não consigo
alcançar, e Habib está ficando cansado.
Olho
para Habib, suspenso nos seus dedos.
– Claro
– respondo. – Mas como sei que chave você quer?
– Pegue
todas elas e então a gente tenta até achar uma que encaixe.
Entro
na cozinha e pego uma tigela. Mohammed espera pacientemente que eu
volte, e então começo a pegar as chaves da árvore. Tem uma escada
no jardim, e uso-a para pegar as que estão nos galhos mais altos.
Logo a tigela está quase cheia e verifico duas vezes para ter
certeza de que não sobrou nenhuma chave. Quando me viro, segurando a
tigela, Mohammed já não está lá. A minhoca está entrando na
poça.
Levo
a tigela para dentro e subo com ela para o meu quarto, onde a coloco
na mesa de cabeceira do lado de Afra, ao lado da bolinha de gude.
Tomo muito cuidado para não acordá-la. Deito-me ao seu lado. Ela
está de frente para mim, os olhos fechados e as mãos enfiadas
debaixo do rosto. Sei que dorme profundamente porque sua respiração
está lenta e profunda. Viro-me para o outro lado e olho no escuro
porque não consigo fechar os olhos. Penso no nosso tempo em
Istambul, foi onde conheci Mohammed.
Do
outro lado do Rio Asi havia uma cerca de arame farpado com um buraco
de cerca de dois metros de diâmetro, como uma boca aberta. As
pessoas jogavam seus pertences por sobre a cerca, e passavam as
crianças pelo buraco. Ainda estava escuro e os atravessadores nos
disseram para deitarmos de bruços e rastejar pela terra plana de
solo empoeirado e samambaias.
Uma
vez na Turquia, caminhamos pelo que pareceu ser uns 150 quilômetros,
por plantações de trigo e cevada. Fazia silêncio. Afra segurava no
meu braço e tremia, porque o frio era insuportável. Fazia cerca de
meia hora que caminhávamos, quando, à distância, vimos uma criança
correr para a rua, uma silhueta contra o sol. Ela acenava para
alguém, e depois disparou em direção a algumas casas.
Aproximamo-nos
de uma aldeia, pequenas casas de madeira com sacadas e venezianas
abertas, pessoas olhando pela janela, outras saindo de suas casas,
parando ao lado da estrada, os olhos arregalados de surpresa, como se
estivessem vendo um circo itinerante. Havia uma longa mesa com copos
de plástico e jarras de água. Paramos e bebemos, e mulheres da
aldeia trouxeram cobertores. Elas nos deram pão e cerejas e
sacolinhas com nozes, depois se afastaram e nos viram ir embora.
Depois percebi que a expressão que eu tinha confundido como sendo de
surpresa na verdade era de medo, e me imaginei trocando de lugar com
elas, vendo centenas de pessoas alquebradas pela guerra dirigindo-se
a um futuro incerto.
Andamos
por mais uma hora, no mínimo, e o vento ficou mais forte,
empurrando-nos para trás. Então, houve um súbito cheiro de esgoto
e nos vimos num campo aberto. Havia tendas por toda parte e pessoas
dormindo em cobertores, em meio ao lixo.
Encontrei
um espaço debaixo de algumas árvores. Havia uma espécie de
silêncio ali que me era desconhecido; na Síria, o silêncio
continha perigo, podia ser rompido a qualquer momento por uma
granada, pelo som de tiroteio, ou pelos passos pesados dos soldados.
Em algum lugar à distância, na direção da Síria, a terra
ribombava.
O
vento soprou das montanhas, trazendo o cheiro de neve. Eu tinha uma
imagem na minha mente: o brilho branco do Jabal al-Shaykh, a primeira
neve que já vi, muitos anos atrás, a Síria à esquerda e o Líbano
à direita, as fronteiras definidas pela cordilheira e o mar bem
abaixo. Tínhamos colocado um melão no rio, e ele rachara com o
frio. Minha mãe mordia a fruta verde congelada. O que estávamos
fazendo ali, no topo do mundo?
Um
homem perto de mim disse: – Quando você pertence a alguém e eles
se vão, quem é você? – O homem parecia desfigurado, rosto sujo,
cabelo despenteado. Tinha manchas na calça e fedia a urina. Havia
sons na escuridão, como gritos de animais, e pensei que podia sentir
a podridão da morte. Esse homem deu-nos uma garrafa de água e me
disse para sentar sobre ela por um tempo, para aquecê-la, antes de
bebermos. A noite veio e se foi e o sol nasceu. Havia comida no chão
e um novo cobertor. Alguém tinha trazido pão duro, banana e queijo.
Afra comeu e depois adormeceu novamente, com a cabeça no meu ombro.
– De
onde vocês são? – o homem perguntou.
– Alepo.
E você?
– Do
norte da Síria. – Mas não disse de onde.
Ele
tirou o último cigarro de um maço e acendeu-o. Fumou-o lentamente,
olhando para a terra árida. Devia ter sido um homem forte, mas agora
não havia carne nele.
– Qual
é o seu nome? – perguntei.
– Perdi
minha filha e minha esposa – ele disse, deixando a bituca do seu
cigarro cair no chão. E foi tudo o que ele disse a respeito, numa
voz monocórdica, inexpressiva. Mas então, pareceu se lembrar de
alguma coisa. – Algumas pessoas... – disse, por fim, depois de
uma longa pausa –, algumas pessoas já estão aqui há um mês.
Seria melhor evitar as autoridades e encontrar um atravessador. Eu
tenho um pouco de dinheiro. – Ele olhou para mim, esperançoso,
para ver o que eu diria.
– Você
sabe como? – perguntei.
– Conversei
com algumas pessoas, e tem um ônibus que pode levar a gente até a
próxima cidade, e de lá podemos encontrar um atravessador. Vi
pessoas irem e não voltarem. Não quero tentar sozinho.
Quando
concordei em ir com ele, me disse que seu nome era Elias.
Pelo
resto daquele dia, Elias teve uma missão; falou com algumas pessoas,
fazendo chamadas pelo meu celular, que só tinha um restinho de
bateria. À tarde, ele tinha arrumado um encontro de nós três com
um atravessador, na cidade próxima, e de lá iríamos para Istambul.
Foi estranho pensar em como tinha sido fácil combinar, que existia
um sistema organizado para aqueles dentre nós com sorte suficiente
para poder arcar com aquilo.[...]
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
Nenhum comentário:
Postar um comentário