segunda-feira, 10 de julho de 2023

Naufrágios | Capítulo 5


[...]
A mãe serviu mais sopa para as duas crianças menores, com uma expressão tranquila no rosto ao manipular os hashis. Logo depois de terminar a refeição, a irmãzinha de Isaku adormeceu sentada, por isso a mãe a pegou e levou para as esteiras de palha. O irmão já estava deitado no canto da sala.
Quantos mortos havia? — perguntou Isaku, lembrando-se dos dois barquinhos que vira do posto de observação no cabo.
A mãe ergueu os olhos enquanto bebia de sua cuia de água quente.
Três caíram pela beirada e se afogaram. Havia quatro pessoas ainda no barco, contando os feridos, mas todos eles foram mortos — disse ela calmamente.
Eles resistiram? — perguntou Isaku, observando o rosto da mãe iluminado pela luz do fogo.
Ouvi dizer que não fizeram nada, apenas imploraram por suas vidas — disse a mãe com uma voz inexpressiva.
Era provável que os tripulantes tivessem cortado seus topetes, pedindo proteção divina. Isaku podia imaginar os homens ajoelhados no tombadilho, os cabelos cortados caídos sobre as tábuas, enquanto imploravam que suas vidas fossem preservadas.
Não há espaço para a piedade. Seria um desastre se qualquer um deles ficasse vivo. Eles tinham de ser mortos, seus ancestrais decidiram isso, e é assim que sempre tem sido desde então. As regras da aldeia têm de ser seguidas — disse a mãe, com um olhar férreo fixo nele. Isaku assentiu com ar solene.

No dia seguinte o mar estava agitado. As ondas quebravam na costa com estrondo, e as esteiras de palha na entrada das casas balançavam ao vento forte que açoitava a costa.
Isaku e a mãe percorreram a trilha até a casa do chefe da aldeia, com borrifos de água caindo sobre eles toda vez que uma onda arrebentava na praia. Os rostos das pessoas que encontravam no caminho estavam iluminados de alegria.
A área de terra na entrada da casa do chefe da aldeia estava repleto de gente; todos mantinham a voz baixa, falando em sussurros, mas não havia dúvida quanto ao brilho em seus olhos e a alegria em suas palavras. No fundo da sala os mais velhos encontravam-se ocupados colocando galhos de cânhamo no chão para ajudar nos cálculos. Tinha sido decidido que o arroz seria distribuído primeiro.
Os homens curvados sobre as varas no chão ergueram-se quando um deles se colocou de quatro no solo e falou com o chefe. O chefe assentiu com a cabeça. Quando o velho de confiança sentado ao lado do chefe se levantou, os murmúrios cessaram.
Havia trezentos e vinte e três fardos de feno a bordo de O-fune-sama — anunciou ele.
A multidão pareceu mover-se como um único bloco em reação às palavras. O coração de Isaku acelerou com a notícia de uma riqueza assim tão incrível.
Cada homem e mulher adulto vai receber três fardos e cada criança receberá um fardo. Os quarenta e nove fardos restantes serão estocados como a parte do chefe da aldeia.
Ouvindo isso, os habitantes da vila tiveram de se esforçar para conter a excitação, e uma série de vozes elevou-se do chão de terra quando algumas pessoas se curvaram profundamente para o chefe da aldeia.
Sorrisos apareceram na face do chefe e dos anciãos, e Isaku viu que a mãe e os outros ao redor choravam de emoção. Aqueles que tinham a partir de dez anos completos eram considerados adultos, portanto Isaku e a mãe receberiam a quota de adultos. Isaku contou nos dedos quantos fardos receberiam, chegando à conclusão de que a família ficaria com oito fardos.
Vamos ficar com oito fardos! — exclamou ele excitado para a mãe.
Oito fardos! — repetiu ela, chorando e olhando para o filho. Lágrimas continuavam a surgir nos olhos dela e a escorrer pelo rosto. Pela expressão no rosto da mãe, Isaku achou que ela estava lutando para controlar os soluços e lágrimas.
Quando os habitantes voltassem para a aldeia do trabalho servil, o chefe lhes entregaria sua quota de arroz estocado. Quando o pai de Isaku voltasse na primavera do ano depois do próximo, ele receberia sua quota também, e a família teria ainda mais benefícios.
O chefe da aldeia se levantou, acompanhado pelos velhos. Os outros os seguiram até a área atrás da casa. Havia fardos demais para caber na área de estoque, portanto haviam sido empilhados do lado de fora, sobre esteiras de palha. Isaku olhou por cima dos ombros dos outros para os fardos de arroz como se estivesse contemplando um tesouro magnífico.
Seguindo as instruções dos velhos, os homens começaram a separar os fardos de feno. Usando as varas de cânhamo, foram contando o número de fardos. Quando os velhos chamaram o nome de Isaku, oito fardos de arroz foram colocados no chão com duas varas longas, e duas mais curtas que simbolizavam a quota de seu irmão e irmã. Ele pensou que, se a irmã Teru não tivesse morrido, outra vara curta teria sido colocada ali.
Quando terminaram de distribuir as varetas, todos se prostraram diante do chefe da aldeia murmurando palavras de agradecimento. Muitos juntaram suas mãos em oração.
O mais velho ergueu sua voz de modo a ser ouvido.
Comam o arroz um pouquinho por vez. Não sabemos quando O-fune-sama virá novamente. Pode levar anos. As pessoas que ficarem muito acostumadas com o gosto do arroz vão sofrer as consequências. Vocês homens devem se manter ocupados pescando, e as mulheres devem continuar a procurar mariscos na praia.
Os habitantes da aldeia se curvaram novamente. Em seguida todos se levantaram e ficaram diante de seus respectivos fardos de arroz, dezesseis grupos no total. Os chefes de família saíram para a trilha carregando seus fardos.
Você nunca vai conseguir carregar isso — disse a mãe de Isaku.
Ele segurou a corda do fardo e tentou erguê-lo sobre o ombro, mas não conseguiu fazer com que subisse acima da cintura. Era bem mais pesado do que ele esperava.
Molenga! — disse a mãe, mas o sorriso no rosto dela mostrava como estava feliz.
Ela ergueu o fardo e o colocou no ombro, os quadris ondulando um pouco enquanto seguia pela trilha. Isaku ruborizou, sentindo-se embaraçado ao pensar que ele, que supostamente era o provedor da família, era incapaz de carregar um fardo de arroz no ombro; e, ainda mais, sua recém-descoberta habilidade para pescar não contava para nada quando a questão era masculinidade, um fato humilhante.
A mãe fez várias viagens entre a casa do chefe da aldeia e a casa deles, onde empilhou os fardos em cima de algumas tábuas na área de chão de terra. Depois de carregar o último fardo, ela bebeu um pouco de água, limpou o suor da testa e sentou-se para descansar antes de tirar um pouco de arroz de um dos fardos e o colocar como oferenda diante do ihai, a placa ancestral. As crianças imitaram a mãe quando ela se ajoelhou para orar.
No final da tarde a mãe colocou um pouco de arroz em uma panela e começou a cozinhá-lo. O cheiro espalhou-se no ar e fez com que viessem à mente de Isaku suas memórias do sabor do arroz enquanto olhava para a massa branca na panela, onde os grãos inchados saltavam para cima e para baixo. A mãe serviu um pouco da sopa de arroz. Ele ficou maravilhado assim que a levou aos lábios: um gosto rico e refinado. Era como se estivesse sendo abastecido de força. O irmãozinho e a irmãzinha comeram sem dizer uma palavra, mas não havia como confundir a expressão de surpresa em seus rostos.
O pai de Kura veio se encontrar com a mãe de Isaku e a acompanhou até a casa de Takichi. Porque Kura tinha realizado tão bem o papel no ritual de O-fune-sama, ela estava agora sendo louvada na vila. Foi feita uma celebração em honra dela na casa de Takichi.
Um pouco depois a mãe de Isaku voltou para casa de muito bom humor.
Ela foi bem recompensada. O chefe da aldeia mandou três fardos de arroz e também vinho. Ele disse que foi o chute perfeito dela na mesa que trouxe O-fune-sama.
A mãe de Isaku obviamente havia bebido; ela respirou profundamente depois de tomar um pouco de água da moringa.
O rugido das ondas quebrando parecia opressivo aos ouvidos, mas não conseguia estragar a alegria que dominava a aldeia.
Isaku deitou-se para dormir ao lado de Isokichi.
A distribuição de bens continuou no dia seguinte. Óleo de semente de coza, molho de soja, vinagre e vinho foram separados em função do tamanho de cada família, e as pessoas levaram suas quotas em jarros e cuias. A cera e metade do chá seriam armazenadas na casa do chefe da aldeia, que também funcionava como ponto de encontro da aldeia. O tatame também foi guardado lá.
Naquela noite os fogos sob os caldeirões de sal foram acesos novamente porque o chefe da aldeia queria encorajar seu povo a voltar à rotina diária, ou a sorte inesperada poderia fazer com que sucumbissem à indolência. Mesmo assim, eles esperavam que fossem abençoados com outro O-fune-sama.
Os homens começaram a sair para pescar novamente nos dias calmos, trocando olhares animados de um barco para o outro. Alguns até mesmo acenavam ou sorriam para Isaku sem nenhuma razão especial.
Isaku levou Isokichi para a água, mas pensar nos fardos de arroz e nos outros luxos empilhados em casa fazia com que perdesse a concentração. Às vezes, puxava a linha e descobria que a isca tinha sido levada. Com comida suficiente para durar um longo tempo, Isaku perdeu a fome necessária para pescar peixes pequenos.
Mesmo as mulheres que procuravam mariscos e algas do mar na costa pareciam passar mais tempo conversando do que trabalhando. As risadas delas podiam ser ouvidas através da água.
Chegou a vez de Isaku de cuidar dos fogos na praia. Ele tinha pensado que O-fune-sama fosse apenas um pouco mais do que um sonho exagerado do povo da aldeia, mas, agora que tinha vivido pessoalmente a experiência, sentia a importância do trabalho nos fogos dos caldeirões e o que mais desejava era que O-fune-sama aparecesse quando ele estivesse ali na praia trabalhando.

O ano terminou e o dia do Ano-Novo chegou. Isaku passou a ter onze anos de idade.
Segundo o costume, durante o feriado de Ano-Novo todos na aldeia ficavam em casa. O mar estava bravo, e cada dia mais neve caía. O retorno ao trabalho no sexto dia do Ano-Novo foi marcado por um céu claro com pouco vento, mas o mar ainda se lançava contra a praia com ondas altas. A mãe colocou uma porção generosa de arroz na panela para cozinhar. Pedaços de lula seca queimavam lentamente no fogo. Havia também um prato de polvo em conserva.
Isaku tomou um gole da sua grande porção de sopa de arroz e experimentou a lula grelhada. Era a primeira vez que tomava um café da manhã digno de um Ano-Novo.
Depois da refeição, eles todos foram prestar homenagem aos túmulos dos ancestrais. Tanta neve havia caído que chegava à altura dos quadris. A mãe de Isaku amarrou a filha nas costas para acompanhar as outras pessoas da aldeia até o cemitério. Retiraram a neve dos túmulos, colocaram vários grãos de arroz em cada lápide e oraram. Em seguida arrastaram-se de volta pela trilha até a casa do chefe da aldeia. O céu estava azul e a luminosidade refletida na neve os cegava.
Quando entraram na casa do chefe da aldeia viram três dos mais proeminentes membros da comunidade sentados ali, bebendo vinho. Isaku e sua família se curvaram quando ofereceram saudações de Ano-Novo ao chefe da aldeia, que sorriu e assentiu, agradecendo.
Quando chegaram em casa, a mãe serviu para Isaku um pouco de vinho de uma jarra. Ele o levou aos lábios e sentiu seu calor se espalhar pela boca.
A mãe tomou um gole.
É um vinho bom. Eu nunca tinha experimentado nada assim antes na vida. O vinho feito de arroz é tão diferente — disse ela, balançando a cabeça, impressionada. O vinho encorpado não só fez Isaku sentir o calor se espalhar como também o deixou de bom humor.
Na próxima primavera papai vai voltar. Espero que ele esteja bem quando voltar — disse Isaku para a mãe, que se virou bruscamente para ele.
Não seja estúpido! Claro que ele vai estar bem quando voltar. Seu pai está acima dos homens normais. Ele não é do tipo que fica doente — disse ela, brava.
Isaku conservou um gole do vinho na boca. O pensamento de como desejava tornar-se um bom pescador antes de o pai voltar para a aldeia passou por sua mente. E também tornar-se forte o bastante para erguer com facilidade um daqueles fardos de arroz.
O vinho começou a subir à cabeça, e tudo pareceu girar. Tomando o resto do vinho de uma só vez, Isaku cambaleou até sua cama de palha e se deitou. Adormeceu em um instante.
Quando acordou, a sala estava imersa em uma escuridão quase completa. O cheiro da sopa de arroz espalhava-se pelo ar, e ele divisou o irmãozinho e a irmãzinha perto do fogão.
A mãe foi até a mesa ancestral e acendeu o pavio que saía de um prato contendo óleo. O irmão e a irmã levantaram-se e foram até lá, os olhos fixos na luz brilhante. Isaku se levantou e olhou para a luz, um pequeno fio de fumaça subindo da chama tremeluzente.
A atmosfera alegre na aldeia prolongou-se além do Ano-Novo. Levando vinho, os homens visitavam uns aos outros para beber e conversar, enquanto as mulheres ficavam conversando e tomando chá. Contavam até sobre um velho que disse que iria muito feliz encontrar o Criador agora que tinha experimentado açúcar branco.
Cada vez que a mãe de Isaku ouvia sobre como as outras famílias estavam cozinhando e comendo o arroz, ela balançava a cabeça, franzindo o cenho.
Estas coisas não duram para sempre. Aqueles que não têm determinação em períodos de fartura são os que mais irão se lamentar depois — murmurou ela, falando para si mesma tanto quanto para quem estivesse em volta. Na casa deles o arroz era usado aos poucos, e apenas para fazer sopa.
Mesmo em dias calmos viam-se poucos barcos passando. A maior parte do transporte de arroz era feito antes do final do ano, e era raro um barco arriscar-se a ser pego por uma tempestade. Não muito depois do Ano-Novo eles viram um barco grande, claramente um navio de um clã, a julgar pelo brasão no centro da vela, que passou ondulando no horizonte antes de sumir por trás do cabo.
No final de janeiro, Kura deu à luz uma menina. Takichi queria um menino, e a princípio ficou desapontado. Mas logo mudou de ideia quando o chefe da aldeia não só os presenteou com arroz e vinho, mas também denominou a menina Tama, ou joia.
Isaku foi com a mãe até a casa de Takichi; ela levava uma cuia com um pouco de arroz. Havia uma guirlanda sagrada de palha pendurada sobre a porta, e o bebê estava dormindo junto de Kura no tatame emprestado a eles pelo chefe da aldeia. A mãe de Isaku colocou a cuia na frente do bebê, junto de várias outras oferendas, e então juntou as mãos em oração. Diziam que as almas dos ancestrais mortos voltavam do outro lado do mar para se abrigar no útero das mulheres grávidas da aldeia. A filhinha de Kura era, portanto, a reencarnação de um dos ancestrais deles; por isso os parentes a visitavam para entregar oferendas.
Isaku sentou-se junto da mãe, com os outros parentes, ao redor do fogão. Eles trocaram cumprimentos e saudações e encheram as cuias uns dos outros com vinho. A mãe de Isaku parecia estar pensando em Teru, que havia morrido fazia um ano, ao baixar os olhos para o bebê. Dizia-se que muitos anos transcorriam antes de a reencarnação ocorrer, então sem dúvida Teru ainda devia estar na tranquilidade oferecida pela morte.
Os parentes falaram sobre como o desempenho de Kura no ritual tinha sido a razão de a vila ter sido abençoada com O-fune-sama e que ocasião de alegria tinha sido o chefe da aldeia ter dado o nome da menina.
Tama certamente tem sorte por nascer quando temos o arroz de O-fune-sama. Se ela comer arroz, não vai ficar doente; ela vai crescer saudável — disse um dos parentes, enquanto os outros assentiam.
Kura parecia satisfeita, deitada de lado, descansando.
O trabalho de extração de sal prosseguiu, e Isaku cumpriu seu turno passando a noite cuidando dos fogos na praia durante uma tempestade de neve. Pela manhã, depois de ter apagado os fogos sob os caldeirões, algumas mulheres vieram até a praia carregando tinas. Tami estava entre elas. Isaku observou enquanto as mulheres raspavam o sal dos caldeirões e o colocavam nas tinas. Seus olhos naturalmente se concentraram no corpo de Tami. O rosto dela tinha ficado longo e magro, e ela parecia ter crescido um pouco. Era esguia agora, mas mais arredondada nos quadris, e subitamente passara a ter um ar de mulher adulta.
Uma sensação dolorosa e sufocante o dominou. Isaku sabia que Takichi tinha tido relações com Kura quando se encontraram na floresta, e ele ansiava por se aproximar de Tami da mesma forma. Mas não podia imaginar-se sendo capaz de chegar perto de Tami, quanto mais falar com ela se a oportunidade aparecesse.
Tami prendeu duas tinas cheias de sal à sua vara de carregar baldes e se afastou pela neve, em direção à casa do chefe da aldeia. Isaku apagou o fogo na pequena cabana e correu para a trilha que saía da praia.
Sem outros navios passando, não havia mais sentido em produzir sal. A aldeia estava enterrada sob a neve profunda. Às vezes Isaku e a família tentavam se aquecer sentando-se de costas para o fogo. Havia uma esteira de palha pendurada na porta; pela manhã ela estava dura e congelada, grudada aos batentes; era preciso bater nela com um galho para soltá-la.
Quando fevereiro chegou, a temperatura tornou-se mais amena e o mar mostrou-se calmo durante vários dias seguidos. Quando os primeiros sinais de flores de ameixeira foram vistos nas montanhas, o chefe da aldeia ordenou que parassem de produzir sal. A estação de O-fune-sama tinha acabado.

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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