sábado, 8 de julho de 2023

Meu irmão

Meu irmão faz aniversário no dia 19 de março. Cinco anos mais velho que eu, João vai fazer trinta e três anos. Mas parece que sempre teve trinta e três anos, desde que nasceu.
Quando era pequeno, João gostava de brincar de trânsito. A brincadeira consistia em colocar os carrinhos enfileirados e fazer bi-bi fom-fom por horas e horas. Num dia muito animado, eventualmente, ele aparecia com uma ambulância — ió-ió-ió. Depois que ela passava, os carros retomavam suas posições e tudo voltava ao normal. Bi-bi. fom-fom. Na ansiedade característica de uma criança de três anos, eu vinha com o carro a mil por hora, tentava uma ultrapassagem perigosa que gerasse uma batida cinematográfica e — plouft! Cataplouft! Ao que João, com a calma de sempre, dizia: não agita. E voltava ao trânsito seu de cada dia. Feliz da vida.
João tem uma síndrome raríssima, cujo nome eu aprendi pequenininho, pra explicar pros meus amigos: ele tem síndrome de Apert. A síndrome é barra-pesada e gera uma série de complicações que eu não vou enumerar aqui. Basta dizer que volta e meia outras crianças apontavam para ele e diziam coisas terríveis.
Uma vez, numa lanchonete, crianças endiabradas ficaram dando voltas em torno dele e gritando — Monstro! Monstro! Minha mãe pediu pra elas pararem. Nada. Sem saber o que fazer, derramou um copo cheio de Coca-Cola na cabeça delas. Elas saíram correndo. João teve um ataque de riso. Depois, toda vez que uma criança ameaçava praticar bullying com o João, minha mãe dizia: olha a Coca-Cola! E o João morria de rir.
João cresceu. Até hoje adora um trânsito. Passa o dia no ônibus, pra lá e pra cá, muitas vezes sem destino — o destino é a viagem. Conhece todos os trajetos e todos os motoristas. Os motoristas adoram ele, que adora conversar muito mais que o indispensável. E adora a vida.
Uma vez, depois de uma cirurgia craniofacial em que poderia ter morrido, João tomou um banho, se sentou na cama do hospital e disse para minha avó: “Ai, que vida boa”.
Viva o João. E viva a minha mãe, que além de jogar Coca-Cola nos problemas da vida, está contando a história do João num livro. Hoje, quando o carro — e a vida — não andam e dá vontade de quebrar tudo com um taco de beisebol, lembro do João, no chão de casa: “Não agita”. O mundo, paradinho, tem a maior graça. Ai, que vida boa.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

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