Meu
irmão faz aniversário no dia 19 de março. Cinco anos mais velho
que eu, João vai fazer trinta e três anos. Mas parece que sempre
teve trinta e três anos, desde que nasceu.
Quando
era pequeno, João gostava de brincar de trânsito. A brincadeira
consistia em colocar os carrinhos enfileirados e fazer bi-bi fom-fom
por horas e horas. Num dia muito animado, eventualmente, ele aparecia
com uma ambulância — ió-ió-ió. Depois que ela passava, os
carros retomavam suas posições e tudo voltava ao normal. Bi-bi.
fom-fom. Na ansiedade característica de uma criança de três anos,
eu vinha com o carro a mil por hora, tentava uma ultrapassagem
perigosa que gerasse uma batida cinematográfica e — plouft!
Cataplouft! Ao que João, com a calma de sempre, dizia: não agita. E
voltava ao trânsito seu de cada dia. Feliz da vida.
João
tem uma síndrome raríssima, cujo nome eu aprendi pequenininho, pra
explicar pros meus amigos: ele tem síndrome de Apert. A síndrome é
barra-pesada e gera uma série de complicações que eu não vou
enumerar aqui. Basta dizer que volta e meia outras crianças
apontavam para ele e diziam coisas terríveis.
Uma
vez, numa lanchonete, crianças endiabradas ficaram dando voltas em
torno dele e gritando — Monstro! Monstro! Minha mãe pediu pra elas
pararem. Nada. Sem saber o que fazer, derramou um copo cheio de
Coca-Cola na cabeça delas. Elas saíram correndo. João teve um
ataque de riso. Depois, toda vez que uma criança ameaçava praticar
bullying com o João, minha mãe dizia: olha a Coca-Cola! E o João
morria de rir.
João
cresceu. Até hoje adora um trânsito. Passa o dia no ônibus, pra lá
e pra cá, muitas vezes sem destino — o destino é a viagem.
Conhece todos os trajetos e todos os motoristas. Os motoristas adoram
ele, que adora conversar muito mais que o indispensável. E adora a
vida.
Uma
vez, depois de uma cirurgia craniofacial em que poderia ter morrido,
João tomou um banho, se sentou na cama do hospital e disse para
minha avó: “Ai, que vida boa”.
Viva
o João. E viva a minha mãe, que além de jogar Coca-Cola nos
problemas da vida, está contando a história do João num livro.
Hoje, quando o carro — e a vida — não andam e dá vontade de
quebrar tudo com um taco de beisebol, lembro do João, no chão de
casa: “Não agita”. O mundo, paradinho, tem a maior graça. Ai,
que vida boa.
Gregório Duvivier, in Put some farofa
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