Autorretrato (1942), de Iberê Camargo
Um
homem alto, um pouco curvo, olhar de grande mansidão, pele morena,
ar ascético de monge: eis Iberê Camargo, um dos nossos grandes
pintores. Estávamos no seu ateliê, que fica numa cobertura na Rua
das Palmeiras: como Iberê nota, parecia-nos que o terraço era um
tombadilho e que em breve, no calor que fazia, iríamos zarpar.
Bebemos água gelada, tomamos café requentado – até que mais
tarde sua esposa, Maria, uma das mais simpáticas Marias, vem e nos
faz um café expresso que me dá saudade da Itália. Conversamos
sobre assuntos gerais.
– Iberê,
por que é que você pinta? – perguntei-lhe de repente.
– Sabe
que essa pergunta já me foi feita no questionário da Editora Vozes?
Dei a seguinte resposta: só poderia responder por que é que eu
pinto quando tiver descoberto o que eu sou como ser.
– Essa
resposta bem serviria para quando eu mesma me pergunto por que
escrevo. Teria antes de ir ao profundo último de meu ser. Você crê
que se realizaria em outra forma de arte?
– No
meu modo de entender, a obra só existe realizada e portanto só o
realizado é que pode responder à pergunta, sem risco de um
indivíduo se julgar, por exemplo, um autor possível. Há tanta
gente que diz “se eu fizesse”, “se eu pudesse”, “se eu
tivesse tempo”, mas não faz nada, talvez porque realmente nada
tenha a fazer.
– Qual
é o processo criador de um pintor versus o processo criador de um
escritor em prosa ou poesia?
– Suponho,
Clarice, que a diferença que existe seja apenas na diferença de
elementos. O pintor usa a cor, a tinta, a linha. O escritor usa a
frase. Mas o impulso criador deve ser o mesmo. Que é que você acha?
que é de uma natureza diversa?
– Acho
que a fonte é a mesma. Mas fiquei impressionada com Lúcio Cardoso
que, depois da doença, não conseguia escrever nem ditar, pois não
falava, mas pintava com a mão esquerda, já que a direita estava
inutilizada: por que não escrevia com a mão esquerda? O médico
explicou-me que no cérebro existe, se entendi bem, uma parte de onde
sai a escritura, a palavra, e outra de onde sai a pintura.
– Mas
ele pintava como escrevia? Não. Pintar é um artesanato, é saber
usar os instrumentos. Assim como o escritor luta por criar com a
palavra. Não há um caso de um pintor que tenha feito uma obra
definitiva na primeira tentativa. Na literatura, há?
– Talvez
Rimbaud.
Ficamos
pensando um pouco, em silêncio. Perguntei-lhe então:
– Antes
de começar a pintar um quadro você o visualiza já pronto ou vai
passo a passo descobrindo o mundo particular desse quadro?
– Criar
um quadro é criar um mundo novo. O artista é o primeiro espectador
de sua obra. As soluções anteriores, os conhecimentos adquiridos
não servem para a obra nova. Eu só consigo pintar quando consigo
esquecer o que aprendi. Se não fosse assim, creio que estaria apenas
a refazer os quadros já pintados. E, portanto, teriam apenas o
mérito de uma cópia, de uma réplica. Não, Clarice, acho que
quando empreendemos uma viagem, buscando alguma coisa que intuímos,
nós marcamos o rumo, escolhemos o ponto cardeal de nossa meta. Mas
não é antever o que, só à chegada, se revela. Um amigo meu,
psicanalista, professor Décio de Sousa, falecido em outubro de 1970,
costumava dizer que quando se espera um filho não se sabe de que cor
serão seus olhos, sabe-se apenas que vai nascer um filho. Clarice,
você sabe melhor do que eu que o personagem vive sua vida à revelia
do autor, surpreende o autor. Será que era isso que Pirandello
queria com Seis personagens em busca de um autor?
– Há
lugares onde você trabalha melhor do que em outros, você disse.
Será por isso que vai tanto a Porto Alegre?
– Eu
só trabalho bem... como se pode dizer? Com os meus chinelos? Na
tranquilidade de meu ambiente, com minhas coisas, na minha teia. Você
sabe que o grande obstáculo que encontrei em Genebra, onde fui
pintar o grande painel para a Organização Mundial de Saúde, foi
exatamente Genebra. O Rio Grande do Sul, que é pátio onde nasci, me
leva a trabalhar bem. Você sabe que cresci em Restinga Seca, que
naquela ocasião não passava de um vilarejo. Saí de lá com quatro
anos de idade. Mas a paisagem de Restinga Seca me ficou impressa de
um modo indelével. Alguém me disse: você saiu de lá aos quatro
anos, portanto não pode se lembrar... Respondi: como poderei eu
esquecer o lugar onde engoli o primeiro gole de ar e senti nos olhos
o primeiro clarão?
– Como
se processou em você o abandono da figura, para tornar-se um não
figurativo?
– Eu
não abandonei a figura, apenas a transformei. Quanto à sua pergunta
sobre se lutei para ser um pintor realizado e com nome, não, eu
jamais tive essas preocupações. E fico até muito surpreendido
quando alguém me considera com destaque... E você, acha importante
ter nome?
– Não,
isso é apenas a parte social do problema. O que importa realmente é
estar diante do papel em branco à espera das palavras que exprimam.
Esse é que é o momento crucial. Iberê, mudando de assunto, por que
os carretéis foram ponto de partida na sua obra?
– Os
carretéis foram também as minhas fantasias de criança, o meu
brinquedo. É natural que se tivessem transformado em símbolos na
obra que faço.
– O
rosto humano chega a lhe interessar de algum modo?
– Assim,
com a visão do pintor, não tive um interesse especial pelo rosto
humano. Mas como pessoa acho que o rosto reflete muito o indivíduo.
O rosto revela a pessoa. Acho que quem se corrompe por dentro se
corrompe por fora. Se não, Clarice, não haveria necessidade de
maquiar os atores, de lhes dar um aspecto especial.
– Diga-me:
até que ponto uma cor exprime, e só ela, aquilo que o pintor está
sentindo? Por que exatamente o marrom e depois em seu lugar o
vermelho?
– Na
minha opinião, a cor vale no seu contexto, nas suas relações.
Enquanto que uma cor isolada será fria ou quente. E a
intensidade de sua medida é também estabelecida no confronto com
outras cores.
– Até
que ponto você se sente liberado depois que dá à luz um quadro?
Para por um tempo? Ou a ânsia de criar se segue imediatamente?
Profunda
reflexão de Iberê. Fico esperando. Até que ele diz: após a
realização de um quadro, ou de uma série, segue-se um esvaziamento
que por seu turno é substituído por uma gestação que se processa,
e o período criador renasce então. Você tem a mesma experiência?
– Igual.
Sinto um esvaziamento que se pode chamar sem exagero de desesperador.
Mas para mim é pior: a germinação e a gestação para o novo
trabalho podem demorar anos, anos esses em que eu feneço. Qual o
conselho que você daria aos novos pintores?
– Deixe
eu pensar nisso. (Ficou com a cabeça metida entre os dois braços
cruzados, depois disse: vou tomar um copo d’água, e quando voltou
disse: esta pergunta é a mais difícil.)
Tomei
também um copo d’água e ficamos em silêncio esperando. Pergunta
terrível, sabe? disse Iberê. “Tome o tempo que quiser”,
respondi-lhe. Afinal Iberê Camargo disse:
– Não
se persuadirem de que inventaram a pintura. E você? que conselho
daria a novos escritores?
– Trabalhar,
trabalhar e trabalhar.
– Jaspers
– disse Iberê – escreveu que a nova geração tem as mãos
furadas.
Confesso
que não entendi bem o que Jaspers quis dizer e que Iberê repetira.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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