quinta-feira, 6 de julho de 2023

"Criar um quadro é criar um mundo novo"

Autorretrato (1942), de Iberê Camargo

Um homem alto, um pouco curvo, olhar de grande mansidão, pele morena, ar ascético de monge: eis Iberê Camargo, um dos nossos grandes pintores. Estávamos no seu ateliê, que fica numa cobertura na Rua das Palmeiras: como Iberê nota, parecia-nos que o terraço era um tombadilho e que em breve, no calor que fazia, iríamos zarpar. Bebemos água gelada, tomamos café requentado – até que mais tarde sua esposa, Maria, uma das mais simpáticas Marias, vem e nos faz um café expresso que me dá saudade da Itália. Conversamos sobre assuntos gerais.
Iberê, por que é que você pinta? – perguntei-lhe de repente.
Sabe que essa pergunta já me foi feita no questionário da Editora Vozes? Dei a seguinte resposta: só poderia responder por que é que eu pinto quando tiver descoberto o que eu sou como ser.
Essa resposta bem serviria para quando eu mesma me pergunto por que escrevo. Teria antes de ir ao profundo último de meu ser. Você crê que se realizaria em outra forma de arte?
No meu modo de entender, a obra só existe realizada e portanto só o realizado é que pode responder à pergunta, sem risco de um indivíduo se julgar, por exemplo, um autor possível. Há tanta gente que diz “se eu fizesse”, “se eu pudesse”, “se eu tivesse tempo”, mas não faz nada, talvez porque realmente nada tenha a fazer.
Qual é o processo criador de um pintor versus o processo criador de um escritor em prosa ou poesia?
Suponho, Clarice, que a diferença que existe seja apenas na diferença de elementos. O pintor usa a cor, a tinta, a linha. O escritor usa a frase. Mas o impulso criador deve ser o mesmo. Que é que você acha? que é de uma natureza diversa?
Acho que a fonte é a mesma. Mas fiquei impressionada com Lúcio Cardoso que, depois da doença, não conseguia escrever nem ditar, pois não falava, mas pintava com a mão esquerda, já que a direita estava inutilizada: por que não escrevia com a mão esquerda? O médico explicou-me que no cérebro existe, se entendi bem, uma parte de onde sai a escritura, a palavra, e outra de onde sai a pintura.
Mas ele pintava como escrevia? Não. Pintar é um artesanato, é saber usar os instrumentos. Assim como o escritor luta por criar com a palavra. Não há um caso de um pintor que tenha feito uma obra definitiva na primeira tentativa. Na literatura, há?
Talvez Rimbaud.
Ficamos pensando um pouco, em silêncio. Perguntei-lhe então:
Antes de começar a pintar um quadro você o visualiza já pronto ou vai passo a passo descobrindo o mundo particular desse quadro?
Criar um quadro é criar um mundo novo. O artista é o primeiro espectador de sua obra. As soluções anteriores, os conhecimentos adquiridos não servem para a obra nova. Eu só consigo pintar quando consigo esquecer o que aprendi. Se não fosse assim, creio que estaria apenas a refazer os quadros já pintados. E, portanto, teriam apenas o mérito de uma cópia, de uma réplica. Não, Clarice, acho que quando empreendemos uma viagem, buscando alguma coisa que intuímos, nós marcamos o rumo, escolhemos o ponto cardeal de nossa meta. Mas não é antever o que, só à chegada, se revela. Um amigo meu, psicanalista, professor Décio de Sousa, falecido em outubro de 1970, costumava dizer que quando se espera um filho não se sabe de que cor serão seus olhos, sabe-se apenas que vai nascer um filho. Clarice, você sabe melhor do que eu que o personagem vive sua vida à revelia do autor, surpreende o autor. Será que era isso que Pirandello queria com Seis personagens em busca de um autor?
Há lugares onde você trabalha melhor do que em outros, você disse. Será por isso que vai tanto a Porto Alegre?
Eu só trabalho bem... como se pode dizer? Com os meus chinelos? Na tranquilidade de meu ambiente, com minhas coisas, na minha teia. Você sabe que o grande obstáculo que encontrei em Genebra, onde fui pintar o grande painel para a Organização Mundial de Saúde, foi exatamente Genebra. O Rio Grande do Sul, que é pátio onde nasci, me leva a trabalhar bem. Você sabe que cresci em Restinga Seca, que naquela ocasião não passava de um vilarejo. Saí de lá com quatro anos de idade. Mas a paisagem de Restinga Seca me ficou impressa de um modo indelével. Alguém me disse: você saiu de lá aos quatro anos, portanto não pode se lembrar... Respondi: como poderei eu esquecer o lugar onde engoli o primeiro gole de ar e senti nos olhos o primeiro clarão?
Como se processou em você o abandono da figura, para tornar-se um não figurativo?
Eu não abandonei a figura, apenas a transformei. Quanto à sua pergunta sobre se lutei para ser um pintor realizado e com nome, não, eu jamais tive essas preocupações. E fico até muito surpreendido quando alguém me considera com destaque... E você, acha importante ter nome?
Não, isso é apenas a parte social do problema. O que importa realmente é estar diante do papel em branco à espera das palavras que exprimam. Esse é que é o momento crucial. Iberê, mudando de assunto, por que os carretéis foram ponto de partida na sua obra?
Os carretéis foram também as minhas fantasias de criança, o meu brinquedo. É natural que se tivessem transformado em símbolos na obra que faço.
O rosto humano chega a lhe interessar de algum modo?
Assim, com a visão do pintor, não tive um interesse especial pelo rosto humano. Mas como pessoa acho que o rosto reflete muito o indivíduo. O rosto revela a pessoa. Acho que quem se corrompe por dentro se corrompe por fora. Se não, Clarice, não haveria necessidade de maquiar os atores, de lhes dar um aspecto especial.
Diga-me: até que ponto uma cor exprime, e só ela, aquilo que o pintor está sentindo? Por que exatamente o marrom e depois em seu lugar o vermelho?
Na minha opinião, a cor vale no seu contexto, nas suas relações. Enquanto que uma cor isolada será fria ou quente. E a intensidade de sua medida é também estabelecida no confronto com outras cores.
Até que ponto você se sente liberado depois que dá à luz um quadro? Para por um tempo? Ou a ânsia de criar se segue imediatamente?
Profunda reflexão de Iberê. Fico esperando. Até que ele diz: após a realização de um quadro, ou de uma série, segue-se um esvaziamento que por seu turno é substituído por uma gestação que se processa, e o período criador renasce então. Você tem a mesma experiência?
Igual. Sinto um esvaziamento que se pode chamar sem exagero de desesperador. Mas para mim é pior: a germinação e a gestação para o novo trabalho podem demorar anos, anos esses em que eu feneço. Qual o conselho que você daria aos novos pintores?
Deixe eu pensar nisso. (Ficou com a cabeça metida entre os dois braços cruzados, depois disse: vou tomar um copo d’água, e quando voltou disse: esta pergunta é a mais difícil.)
Tomei também um copo d’água e ficamos em silêncio esperando. Pergunta terrível, sabe? disse Iberê. “Tome o tempo que quiser”, respondi-lhe. Afinal Iberê Camargo disse:
Não se persuadirem de que inventaram a pintura. E você? que conselho daria a novos escritores?
Trabalhar, trabalhar e trabalhar.
Jaspers – disse Iberê – escreveu que a nova geração tem as mãos furadas.
Confesso que não entendi bem o que Jaspers quis dizer e que Iberê repetira.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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