Quando
pequeno, nunca pensei que meu pai fosse substituível. Ele era uma
espécie de criatura mitológica saída de alguma revistinha da DC.
Era mestre em tocar saxofone e pegar jacaré. No meu aniversário de
seis anos, trouxe pra casa um bode, alugado na Tijuca. Foi a alegria
da festa, e me tornou uma criança muito popular por meses — “na
festa dele teve um bode”. O bode teve que ser devolvido, mas seu
cheiro nunca deixou nosso Chevette.
Percebi
que meu pai era mortal quando vi, do alto da escada, uma pequena
clareira careca em seu cocuruto, do tamanho de um quipá. Fiz as
contas: meu pai é um homem, os homens são mortais, logo meu pai é
mortal. A morte do meu pai passou a me preocupar muito mais do que a
minha própria morte (a morte da minha mãe nunca me preocupou,
porque isso eu sempre soube que não acontece e ponto). Decepcionado
com a falibilidade paterna, precisei arranjar sucessores à altura.
Quando
adolescente, estagiando em comédia, boemia e fluminense, meu sonho
era ser Hugo Carvana, mestre maior em comédia, boemia e fluminense.
Cheguei a cultivar um bigode, mas desisti da ideia quando vi que ele
nunca teria a opulência e a classe de um bigode do Carvana. A
ressaca me impedia de ser boêmio. O fluminense agonizava na terceira
divisão. Fiquei só com a comédia.
Fui
até Paris para conhecer outra sucessora do meu pai, durante um
estágio no Théatre du Soleil. Chegávamos às oito da manhã no
galpão gelado e saíamos às cinco da tarde. O que nos mantinha
unidos, além dos cobertores, era a Ariane. Quando ela falava, o
mundo parava para ouvir. Foi o mais perto que eu cheguei de uma
experiência mística. Não sei se acredito em Deus, mas acredito em
Ariane Mnouchkine.
Éramos
duzentos atores, no total, e tínhamos que usar uma tarja com nosso
nome, presa na blusa por um alfinete. Um dia, esqueci a tarja em
casa. Levantei a mão para fazer uma pergunta. Quando lembrei que
estava sem a tarja, já era tarde demais. “Sim, Gregorio”, ela
disse. Olhei para minha blusa para confirmar que a tarja não estava
lá. Não estava. “Sim, Gregorio”, ela repetiu. E eu não tinha
mais nada a dizer. Ela sabia meu nome. Fiquei quieto, como um
imbecil. Um imbecil com nome.
Voltei
ao Brasil. Um dia, tocou o telefone. Era o Carvana, me chamando para
o filme dele. Pensei que era trote, mas aceitei na hora. Quando se
trata do Carvana, até trote eu aceito. Não me arrependi; o filme
foi demais.
O
Carvana tem um jeito específico de chamar as pessoas do seu círculo
social. Não cabe dizer aqui, mas é uma parte do corpo, um círculo,
justamente, embora pouco social. O Carvana usa essa palavra como um
vocativo, precedida, invariavelmente, pelo pronome possessivo. Assim:
meu cu.
O
fato é que eu me sentia incomodado quando ele me chamava de
Gregorio. Porque percebi que tal epíteto anal era restrito aos mais
íntimos. Era como um título que merecia ser conquistado. Estava
distraído quando ele me chamou pela primeira vez de seu cu. Demorei
para entender que era comigo. Nunca fiquei tão feliz de ser o cu de
alguém. Eu não era um cu qualquer, eu era o cu do Carvana. Ser
chamado de Meu Cu por Hugo Carvana era como ser chamado de Gregorio
pela Ariane Mnouchkine. Era tudo o que um filho quer: reconhecimento.
(Quanto
a meu pai, eu não devia ter me preocupado. Sua careca occipital só
aumentou alguns centímetros. E ele continua pegando jacaré e
tocando saxofone como ninguém.)
Gregório Duvivier, in Put some farofa
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