segunda-feira, 17 de julho de 2023

Carvana e Mnouchkine

Quando pequeno, nunca pensei que meu pai fosse substituível. Ele era uma espécie de criatura mitológica saída de alguma revistinha da DC. Era mestre em tocar saxofone e pegar jacaré. No meu aniversário de seis anos, trouxe pra casa um bode, alugado na Tijuca. Foi a alegria da festa, e me tornou uma criança muito popular por meses — “na festa dele teve um bode”. O bode teve que ser devolvido, mas seu cheiro nunca deixou nosso Chevette.
Percebi que meu pai era mortal quando vi, do alto da escada, uma pequena clareira careca em seu cocuruto, do tamanho de um quipá. Fiz as contas: meu pai é um homem, os homens são mortais, logo meu pai é mortal. A morte do meu pai passou a me preocupar muito mais do que a minha própria morte (a morte da minha mãe nunca me preocupou, porque isso eu sempre soube que não acontece e ponto). Decepcionado com a falibilidade paterna, precisei arranjar sucessores à altura.
Quando adolescente, estagiando em comédia, boemia e fluminense, meu sonho era ser Hugo Carvana, mestre maior em comédia, boemia e fluminense. Cheguei a cultivar um bigode, mas desisti da ideia quando vi que ele nunca teria a opulência e a classe de um bigode do Carvana. A ressaca me impedia de ser boêmio. O fluminense agonizava na terceira divisão. Fiquei só com a comédia.
Fui até Paris para conhecer outra sucessora do meu pai, durante um estágio no Théatre du Soleil. Chegávamos às oito da manhã no galpão gelado e saíamos às cinco da tarde. O que nos mantinha unidos, além dos cobertores, era a Ariane. Quando ela falava, o mundo parava para ouvir. Foi o mais perto que eu cheguei de uma experiência mística. Não sei se acredito em Deus, mas acredito em Ariane Mnouchkine.
Éramos duzentos atores, no total, e tínhamos que usar uma tarja com nosso nome, presa na blusa por um alfinete. Um dia, esqueci a tarja em casa. Levantei a mão para fazer uma pergunta. Quando lembrei que estava sem a tarja, já era tarde demais. “Sim, Gregorio”, ela disse. Olhei para minha blusa para confirmar que a tarja não estava lá. Não estava. “Sim, Gregorio”, ela repetiu. E eu não tinha mais nada a dizer. Ela sabia meu nome. Fiquei quieto, como um imbecil. Um imbecil com nome.
Voltei ao Brasil. Um dia, tocou o telefone. Era o Carvana, me chamando para o filme dele. Pensei que era trote, mas aceitei na hora. Quando se trata do Carvana, até trote eu aceito. Não me arrependi; o filme foi demais.
O Carvana tem um jeito específico de chamar as pessoas do seu círculo social. Não cabe dizer aqui, mas é uma parte do corpo, um círculo, justamente, embora pouco social. O Carvana usa essa palavra como um vocativo, precedida, invariavelmente, pelo pronome possessivo. Assim: meu cu.
O fato é que eu me sentia incomodado quando ele me chamava de Gregorio. Porque percebi que tal epíteto anal era restrito aos mais íntimos. Era como um título que merecia ser conquistado. Estava distraído quando ele me chamou pela primeira vez de seu cu. Demorei para entender que era comigo. Nunca fiquei tão feliz de ser o cu de alguém. Eu não era um cu qualquer, eu era o cu do Carvana. Ser chamado de Meu Cu por Hugo Carvana era como ser chamado de Gregorio pela Ariane Mnouchkine. Era tudo o que um filho quer: reconhecimento.
(Quanto a meu pai, eu não devia ter me preocupado. Sua careca occipital só aumentou alguns centímetros. E ele continua pegando jacaré e tocando saxofone como ninguém.)

Gregório Duvivier, in Put some farofa

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