Quando
a gente passa parte da vida se torturando, se colocando pra baixo, se
culpando, é difícil parar. A gente faz isso pelo hábito. Mas as
palavras da minha irmã, naquele momento, me acordaram de um sono
profundo. Depois de um tempo, quando Thulane dizia orgulhosa para
suas amiguinhas “Quando crescer, vou estudar em São Paulo como a
minha mãe”, entendi a importância de mostrar a ela outras formas
de maternidade. E, sim, vó, era mesmo capaz de dona Erani me dar
dois tapas na cara se estivesse viva. Já você teria feito um bolo
de chocolate ou um doce de abóbora e teria adoçado minha vida.
Foram
anos complexos na faculdade, precisei ter ginga para estudar as
autoras que me interessavam. Eu me deparei com um curso branco,
masculino e eurocêntrico. Ouvi coisas como “não sei por que você
está aqui queimando seus neurônios, poderia ser modelo”, “você
é passista de qual escola?”, “deveria arrumar um gringo para
casar, eles adoram mulheres como você”, “vamos deixar a parte
mais fácil do trabalho para as meninas do grupo”, “o professor
só te deu nota alta porque está a fim de você”.
No
primeiro ano de faculdade, eu conheci uma das minhas melhores amigas,
Marília. Éramos das poucas mulheres da sala e nos apaixonamos uma
pela outra no momento em que nos vimos pela primeira vez. Fomos
obrigadas a compartilhar o desrespeito dos colegas homens, mas nós
nos protegíamos e apoiávamos. Ter sua amizade me ajudou a enfrentar
as dificuldades. Marília não achou nada de mais quando eu disse que
era mãe e minha filha vivia em outra cidade. Nela encontrei a mesma
força dos olhares cúmplices.
Na
Unifesp, alguns colegas e eu fundamos o Mapô — Núcleo de Estudos
de Gênero, Raça e Sexualidade — e organizamos muitos eventos
acadêmicos sobre o tema. Essa iniciativa foi fundamental para que eu
tivesse acesso a textos, para me fortalecer dentro daquele espaço.
Não me identificava com um movimento estudantil majoritariamente
branco e burguês, vinha de um lugar em que meus irmãos eram parados
pela polícia pelo simples fato de existirem. Assim, ficava indignada
por alguns integrantes do grupo se vangloriarem dos conflitos com a
polícia quando estudantes em greve ocuparam a diretoria da
faculdade. Estar com pessoas com os mesmos propósitos foi
fundamental. Participei de muitos congressos, inscrevi trabalhos para
apresentar tanto no Brasil quanto no exterior. Em 2011, descobri a
Simone de Beauvoir Society, grupo formado por pesquisadoras de várias
partes do mundo que estudavam o pensamento da filósofa francesa. A
cada ano elas organizam uma conferência no país de uma das
integrantes e senti que era uma oportunidade de diálogo, uma vez que
não encontrava muitas interlocutoras no Brasil. Eu mesma traduzi
parte da minha pesquisa de iniciação científica e a submeti para
avaliação. Para minha surpresa, meu paper foi aceito, o que
significaria apresentá-lo numa conferência na Universidade do
Oregon, nos Estados Unidos.
Eu
nunca havia saído do Brasil. Estava com trinta anos, no terceiro ano
da faculdade e com todos os sonhos do mundo. Passaporte eu tinha,
pois anos antes quase viajara para Angola a convite de um ex-chefe,
quando fiz alguns freelas para a Liga dos Amigos e Estudantes de
Angola. O problema era o visto americano. Como estava muito em cima
da hora, não havia mais horários disponíveis para entrevista no
consulado de São Paulo e do Rio, e o único possível seria o de
Recife. Eu não tinha muito dinheiro para a passagem, mas após muita
insistência, Donald concordou em me ajudar. Juntei todos os
documentos necessários para a tal entrevista e fui.
Àquela
altura fazia muito tempo que eu não andava de avião. Minha primeira
vez fora aos vinte e dois anos, quando eu trabalhava na Casa de
Cultura da Mulher Negra e fui ao Fórum Social Mundial que aconteceu
em Porto Alegre. Não lembrava muito bem como afivelar o cinto de
segurança e fiquei esperando o rapaz do lado fazer para eu imitar.
Com medo e com o dinheiro contado, fui.
Ao
chegar em Recife, fui direto para o consulado. Fiquei horas na fila
sob um sol muito quente, e com um frio na barriga que quase me fez
desmaiar. Por sorte a entrevista foi extremamente tranquila e
consegui o visto. Meu voo de volta seria à noite, então fui para a
praia de Boa Viagem ver o mar. Fiquei sentada por horas contemplando
o horizonte enquanto sentia uma sensação única de felicidade. Eu
iria para os Estados Unidos apresentar minha pesquisa, encontraria
interlocutoras.
Na
verdade, era um misto de felicidade e ansiedade. Eu não fazia ideia
de como era uma viagem internacional, e estava ansiosa para
descobrir. Peguei o último voo para São Paulo e cheguei a Guarulhos
de madrugada. Como não tinha dinheiro para táxi e os ônibus só
recomeçariam a rodar às quatro e meia da manhã, cochilei no
aeroporto mesmo. Essa sensação de solidão foi triste. Mesmo
casada, raramente havia alguém para me esperar. Eu sentia muito a
sua falta, vó, da minha mãe também. Eu tinha certeza de que vocês,
se vivas, jamais teriam deixado eu dormir no saguão de um aeroporto.
Mas sobretudo eu não me sentiria sozinha nem culpada por querer
estudar e ir além da vida que haviam desenhado pra mim. Chorei
quieta enquanto buscava uma posição confortável no banco,
prometendo a mim mesma que faria tudo valer a pena.
No
dia da viagem para os Estados Unidos, fui sozinha até o aeroporto.
Estava insegura, com medo, teria de me virar com o inglês que
aprendi em alguns anos de curso. Observava o que as pessoas faziam
para fazer igual, tentava passar a ideia de que estava acostumada com
tudo aquilo, mas por dentro sentia um pavor enorme. Mesmo assim,
ergui a cabeça e fui.
Ao
chegar à primeira de duas conexões, em Portland, uma senhora
norte-americana se aproximou. Disse que tinha me visto no aeroporto
de Guarulhos e comentado com o marido o quanto eu era bonita.
Começamos a conversar, ela me perguntou o que eu faria no país, e
ao saber disse com orgulho que a Universidade do Oregon era incrível
e me desejou tudo de bom.
Ao
desembarcar em Eugene, descobri que minha mala havia sido extraviada.
Eis que a simpática senhora prontamente se ofereceu para me ajudar,
uma verdadeira salvação, pois eu não tinha inglês bom o bastante
para me comunicar com o funcionário da companhia aérea. Ela me
passou o telefone dela, dizendo para procurá-la se não entregassem
minha mala no hotel ainda naquele dia: se necessário, ela compraria
roupas pra mim (eu já havia lhe dito que estava com meus dólares
contados). Mas não foi preciso, horas mais tarde minha mala chegou
no hotel, e deixei um recado de gratidão na secretária eletrônica
dela, que foi um anjo em meu caminho — nem sequer lembro seu nome,
mas jamais esquecerei o que fez por mim.
Apesar
da minha insegurança, o encontro na universidade foi muito rico e
produtivo, me senti acolhida pelas pesquisadoras, sobretudo por
Margaret A. Simons, a Peg, uma das maiores estudiosas do pensamento
de Beauvoir. Ela me deu vários livros e orientou minha pesquisa para
uma outra direção. Estava acostumada com a hostilidade da academia,
com professores dizendo que eu era “a menina que estudava gênero”
ou “que não estudava filosofia pura”, até hoje me emociono só
de lembrar daqueles dias em que fui tratada com carinho e respeito.
Essa
experiência foi outro divisor de águas na minha vida, vó. Eu me
senti forte para seguir e ir além: estudar as pesquisadoras negras.
Quando concluí a graduação em 2012, com trinta e dois anos, já
sabia o que faria no mestrado. Eu não pretendia mais olhar o mundo
pelas frestas.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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