domingo, 16 de julho de 2023

Cartas para minha avó

Quando a gente passa parte da vida se torturando, se colocando pra baixo, se culpando, é difícil parar. A gente faz isso pelo hábito. Mas as palavras da minha irmã, naquele momento, me acordaram de um sono profundo. Depois de um tempo, quando Thulane dizia orgulhosa para suas amiguinhas “Quando crescer, vou estudar em São Paulo como a minha mãe”, entendi a importância de mostrar a ela outras formas de maternidade. E, sim, vó, era mesmo capaz de dona Erani me dar dois tapas na cara se estivesse viva. Já você teria feito um bolo de chocolate ou um doce de abóbora e teria adoçado minha vida.
Foram anos complexos na faculdade, precisei ter ginga para estudar as autoras que me interessavam. Eu me deparei com um curso branco, masculino e eurocêntrico. Ouvi coisas como “não sei por que você está aqui queimando seus neurônios, poderia ser modelo”, “você é passista de qual escola?”, “deveria arrumar um gringo para casar, eles adoram mulheres como você”, “vamos deixar a parte mais fácil do trabalho para as meninas do grupo”, “o professor só te deu nota alta porque está a fim de você”.
No primeiro ano de faculdade, eu conheci uma das minhas melhores amigas, Marília. Éramos das poucas mulheres da sala e nos apaixonamos uma pela outra no momento em que nos vimos pela primeira vez. Fomos obrigadas a compartilhar o desrespeito dos colegas homens, mas nós nos protegíamos e apoiávamos. Ter sua amizade me ajudou a enfrentar as dificuldades. Marília não achou nada de mais quando eu disse que era mãe e minha filha vivia em outra cidade. Nela encontrei a mesma força dos olhares cúmplices.
Na Unifesp, alguns colegas e eu fundamos o Mapô — Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Sexualidade — e organizamos muitos eventos acadêmicos sobre o tema. Essa iniciativa foi fundamental para que eu tivesse acesso a textos, para me fortalecer dentro daquele espaço. Não me identificava com um movimento estudantil majoritariamente branco e burguês, vinha de um lugar em que meus irmãos eram parados pela polícia pelo simples fato de existirem. Assim, ficava indignada por alguns integrantes do grupo se vangloriarem dos conflitos com a polícia quando estudantes em greve ocuparam a diretoria da faculdade. Estar com pessoas com os mesmos propósitos foi fundamental. Participei de muitos congressos, inscrevi trabalhos para apresentar tanto no Brasil quanto no exterior. Em 2011, descobri a Simone de Beauvoir Society, grupo formado por pesquisadoras de várias partes do mundo que estudavam o pensamento da filósofa francesa. A cada ano elas organizam uma conferência no país de uma das integrantes e senti que era uma oportunidade de diálogo, uma vez que não encontrava muitas interlocutoras no Brasil. Eu mesma traduzi parte da minha pesquisa de iniciação científica e a submeti para avaliação. Para minha surpresa, meu paper foi aceito, o que significaria apresentá-lo numa conferência na Universidade do Oregon, nos Estados Unidos.
Eu nunca havia saído do Brasil. Estava com trinta anos, no terceiro ano da faculdade e com todos os sonhos do mundo. Passaporte eu tinha, pois anos antes quase viajara para Angola a convite de um ex-chefe, quando fiz alguns freelas para a Liga dos Amigos e Estudantes de Angola. O problema era o visto americano. Como estava muito em cima da hora, não havia mais horários disponíveis para entrevista no consulado de São Paulo e do Rio, e o único possível seria o de Recife. Eu não tinha muito dinheiro para a passagem, mas após muita insistência, Donald concordou em me ajudar. Juntei todos os documentos necessários para a tal entrevista e fui.
Àquela altura fazia muito tempo que eu não andava de avião. Minha primeira vez fora aos vinte e dois anos, quando eu trabalhava na Casa de Cultura da Mulher Negra e fui ao Fórum Social Mundial que aconteceu em Porto Alegre. Não lembrava muito bem como afivelar o cinto de segurança e fiquei esperando o rapaz do lado fazer para eu imitar. Com medo e com o dinheiro contado, fui.
Ao chegar em Recife, fui direto para o consulado. Fiquei horas na fila sob um sol muito quente, e com um frio na barriga que quase me fez desmaiar. Por sorte a entrevista foi extremamente tranquila e consegui o visto. Meu voo de volta seria à noite, então fui para a praia de Boa Viagem ver o mar. Fiquei sentada por horas contemplando o horizonte enquanto sentia uma sensação única de felicidade. Eu iria para os Estados Unidos apresentar minha pesquisa, encontraria interlocutoras.
Na verdade, era um misto de felicidade e ansiedade. Eu não fazia ideia de como era uma viagem internacional, e estava ansiosa para descobrir. Peguei o último voo para São Paulo e cheguei a Guarulhos de madrugada. Como não tinha dinheiro para táxi e os ônibus só recomeçariam a rodar às quatro e meia da manhã, cochilei no aeroporto mesmo. Essa sensação de solidão foi triste. Mesmo casada, raramente havia alguém para me esperar. Eu sentia muito a sua falta, vó, da minha mãe também. Eu tinha certeza de que vocês, se vivas, jamais teriam deixado eu dormir no saguão de um aeroporto. Mas sobretudo eu não me sentiria sozinha nem culpada por querer estudar e ir além da vida que haviam desenhado pra mim. Chorei quieta enquanto buscava uma posição confortável no banco, prometendo a mim mesma que faria tudo valer a pena.
No dia da viagem para os Estados Unidos, fui sozinha até o aeroporto. Estava insegura, com medo, teria de me virar com o inglês que aprendi em alguns anos de curso. Observava o que as pessoas faziam para fazer igual, tentava passar a ideia de que estava acostumada com tudo aquilo, mas por dentro sentia um pavor enorme. Mesmo assim, ergui a cabeça e fui.
Ao chegar à primeira de duas conexões, em Portland, uma senhora norte-americana se aproximou. Disse que tinha me visto no aeroporto de Guarulhos e comentado com o marido o quanto eu era bonita. Começamos a conversar, ela me perguntou o que eu faria no país, e ao saber disse com orgulho que a Universidade do Oregon era incrível e me desejou tudo de bom.
Ao desembarcar em Eugene, descobri que minha mala havia sido extraviada. Eis que a simpática senhora prontamente se ofereceu para me ajudar, uma verdadeira salvação, pois eu não tinha inglês bom o bastante para me comunicar com o funcionário da companhia aérea. Ela me passou o telefone dela, dizendo para procurá-la se não entregassem minha mala no hotel ainda naquele dia: se necessário, ela compraria roupas pra mim (eu já havia lhe dito que estava com meus dólares contados). Mas não foi preciso, horas mais tarde minha mala chegou no hotel, e deixei um recado de gratidão na secretária eletrônica dela, que foi um anjo em meu caminho — nem sequer lembro seu nome, mas jamais esquecerei o que fez por mim.
Apesar da minha insegurança, o encontro na universidade foi muito rico e produtivo, me senti acolhida pelas pesquisadoras, sobretudo por Margaret A. Simons, a Peg, uma das maiores estudiosas do pensamento de Beauvoir. Ela me deu vários livros e orientou minha pesquisa para uma outra direção. Estava acostumada com a hostilidade da academia, com professores dizendo que eu era “a menina que estudava gênero” ou “que não estudava filosofia pura”, até hoje me emociono só de lembrar daqueles dias em que fui tratada com carinho e respeito.
Essa experiência foi outro divisor de águas na minha vida, vó. Eu me senti forte para seguir e ir além: estudar as pesquisadoras negras. Quando concluí a graduação em 2012, com trinta e dois anos, já sabia o que faria no mestrado. Eu não pretendia mais olhar o mundo pelas frestas.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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