segunda-feira, 10 de julho de 2023

Cartas para minha avó

Thulane tinha acabado de completar três anos e eu trabalhava numa empresa do porto. A geração do meu pai foi a última de estivadores antes da privatização, coisa contra a qual meu pai lutou de forma contundente. Lembro de acompanhá-lo nas manifestações quando criança, para repetir o que os sindicalistas gritavam: “O porto é do povo, o porto é do povo!”. Não fazia a mínima ideia do que aquilo significava, mas meu pai sempre fez questão de nos envolver politicamente.
Adorava ir às manifestações principalmente porque, ao final, meu pai nos levava ao Pastel Carioca, uma pastelaria tradicional no centro de Santos. Também guardo memórias carinhosas das idas ao Sindicato dos Estivadores para ajudar a envelopar informes sobre a Chapa da qual meu pai era diretor, ou das idas ao Partido Comunista. Apesar de algumas tarefas serem chatas para uma criança, tudo acabaria em pastel depois.
Adorava quando as pessoas me abordavam na rua e perguntavam: “Você é a filha do Joaquinzinho, diretor do sindicato?”, e eu sempre respondia orgulhosamente que sim. Trabalhar ali no porto me trazia muitas lembranças.
Entre uma busca e outra aqui na internet, descobri que haviam construído um campus de humanas da Universidade Federal de São Paulo. Ficava em Guarulhos, mas achei que podia ser interessante tentar, sobretudo quando vi que havia curso de Filosofia. Descobrir aquele curso foi como despertar. Lembrei das vezes em que meu pai leu livros de filosofia pra mim, da estante velha de mogno que ficava em seu quarto, das muitas obras que fui obrigada a ler. Lembrei que eu gostava de estudar, dos anos em que trabalhei na Casa de Cultura da Mulher Negra, uma organização feminista negra, um divisor de águas na minha vida. Também me veio à memória a biblioteca Carolina Maria de Jesus, com os livros de Bell Hooks e os artigos de Sueli Carneiro. Fui invadida por aquele mesmo sentimento que tive quando ganhei As novas vestes do rei do meu pai. Olhar aquele aviso de inscrição para o vestibular foi como ver uma faísca de algo que eu já havia sido.
Lembro exatamente que o prazo final de inscrição seria na sexta-feira daquela semana. Nos meus horários de almoço, namorava aquela informação. A sexta-feira chegou e, apesar de ter ensaiado ir ao banco no meu horário de almoço para pagar a inscrição, tive medo. Terminei o expediente, bati o ponto e fui pra casa. Passei o fim de semana sonhando com aquela informação enquanto cozinhava e ensinava minha filha a usar o banheiro.
Na segunda-feira seguinte, resignada, voltei ao trabalho. Evitei navegar na internet, não queria ter que me confrontar com a minha fraqueza, mas em um momento livre voltei ao site da universidade. Qual foi minha surpresa quando vi que as inscrições haviam sido prorrogadas mais uma semana. Só podia ser um sinal, pensei. Mesmo assim, passei a semana apreensiva, questionando se deveria ou não me inscrever.
Quando a sexta-feira chegou, eu precisava novamente tomar uma decisão. Imprimi o boleto sem que os outros funcionários vissem — não era permitido imprimir coisas pessoais — e saí para almoçar. Na volta, tomei coragem e passei no banco. O valor que eu tinha na conta era exatamente o valor da inscrição. Paguei, não disse nada a ninguém, e aguardei o dia da prova. Era uma época pré-Enem, seriam três dias de provas e eu precisaria me ausentar do trabalho. Conversei com o meu chefe e ele me liberou no período da tarde durante os três dias seguintes. Em casa, eu disse que havia ganhado a inscrição do pessoal da Educafro, cursinho pré-vestibular para jovens de comunidades periféricas do qual fui coordenadora de núcleo por anos. Minha justificativa era que eu iria fazer a prova para incentivar os alunos. Eu sabia que não poderia dizer que tinha intenção real de cursar Filosofia em Guarulhos, e não queria adiantar problemas — eu poderia não passar e essa conversa nunca precisaria ocorrer. Fazia mais de dez anos que havia terminado o ensino médio e se zerasse alguma questão, seria automaticamente desclassificada.
Até aquele momento, eu tinha contado sobre meus planos para três pessoas: Vivi, Cleide e Jaque, minhas companheiras de trabalho. Eu era secretária do diretor da empresa e de dois gerentes. Vivi trabalhava no almoxarifado e Cleide e Jaque na limpeza. Nós nos tornamos inseparáveis, saíamos juntas, sempre sentávamos na mesma mesa nos eventos da empresa. Elas foram meu porto seguro naquele momento, me incentivando, dizendo que eu deveria fazer o curso caso passasse. No dia em que o resultado seria divulgado, elas apareciam na minha sala de vez em quando para me perguntar se já havia saído. Com o coração disparado, acessei o site da universidade. Ao ver meu nome na lista de aprovados, tive uma sensação ambígua: fiquei feliz por ter conseguido, mas ao mesmo tempo nervosa, temia não poder fazer o curso. Enquanto Vivi, Cleide e Jaque comemoravam, eu pensava: “Passei, e agora?”.
Eu tinha alguns dias para me decidir, até a data da matrícula. Nesses dias, quando eu saía do trabalho, eu ia caminhar pela orla da praia, perto do mar. Ficava pensando que se vocês fossem vivas, não me deixariam sequer cogitar não estudar, brigariam pra ver quem cuidaria da Thulane. Você foi empregada doméstica, minha mãe foi empregada doméstica. Minha entrada na faculdade de Filosofia romperia com um ciclo de exclusão.
Chorei muitas vezes enquanto passeava olhando o mar, querendo que minhas lágrimas se confundissem com o infinito.
Um dia, fui levar minha filha ao Aquário. Enquanto ela corria encantada vendo os peixes e algas marinhas, eu pensava em qual decisão tomar. Em dado momento, avistei as arraias em um aquário muito grande. Enormes e belas, nadando lindamente. Fiquei hipnotizada por alguns minutos assistindo àquela cena, encantada com as grandes barbatanas que pareciam asas. Enquanto nadavam, pareciam voar. Após um tempo, concluí que, apesar da beleza do ato, por mais que o nado simulasse um lindo voo, nas condições em que se encontravam elas somente poderiam voar dentro das dimensões do aquário. Havia quem as alimentasse, quem cuidasse delas, e isso poderia fazê-las acreditar que estavam seguras, no melhor lugar possível. Mas o lugar delas era o mar.
No dia que tomei a decisão, lembro de ter dito em casa: “Minha avó não teve oportunidade de estudar, minha mãe não teve oportunidade de estudar. Eu estou quebrando esse ciclo agora!”. De alguma maneira, sei que vocês estavam ali comigo, me encorajando a tomar uma das melhores decisões na minha vida, para espanto daqueles que julgavam que era incompatível ser mãe e estudar numa outra cidade — cheguei a ouvir de uma pessoa da família do Donald que eu já tinha provado que era inteligente ao passar, e não precisava ir estudar.
O próximo passo seria contar no trabalho. Fiquei ensaiando idas e vindas ao escritório do gerente. Até que um dia, Vivi me olhou e disse: “Chega, Djamila, você vai contar agora”. Nervosa, fui até ele. Contei dos meus planos, perguntei se ele poderia me mandar embora para que eu recebesse seguro-desemprego, porque era fundamental eu conseguir me sustentar, ao menos nos primeiros meses. O gerente disse que se eu fosse estudar Logística, ele certamente poderia me ajudar, pois eu estaria no ramo da empresa. Mas por que Filosofia? Eu iria passar fome e teria que vender brincos na praia para sobreviver, ele vaticinou. “É um sonho sem sentido. Veja, meu sonho era ser médico, mas não consegui realizar, então cursei Administração de Empresas e hoje trabalho aqui. Nem sempre é possível fazer o que se quer.”
Essa última frase soou como uma afronta. Como se eu não soubesse, como se as mulheres da minha família não soubessem, como o fato de vir de uma linhagem de empregadas domésticas não tivesse me ensinado que não podemos fazer o que a gente quer. Minha mãe gostaria de ter sido jogadora de basquete, você, eu não sei, vó, não tive a oportunidade de perguntar, mas eu tenho certeza de que você não gostaria de ter tido sua infância roubada para trabalhar fora. Como se as pessoas negras, historicamente, não soubessem que não é possível fazer o que se quer por conta do racismo, que mata não apenas sonhos, mas vidas. Ele, um homem branco privilegiado, cujo rosto continha os traços do poder, estava me dizendo que não era possível fazer o que eu queria. Minha vontade foi responder: “Ora, se você, mesmo privilegiado, não conseguiu fazer o que queria, o problema é seu, não acha? Por que quer democratizar frustações?”.
Engoli o meu ímpeto típico de dona Erani e, com um sorriso falso, disse que não me importaria de vender brincos na praia. Ele não quis me mandar embora, disse que eu precisava treinar uma nova pessoa para o meu lugar e que, por ora, eu poderia sair do trabalho mais cedo, às 17h, para ir à faculdade. O que ele não havia entendido é que a faculdade ficava a três horas e meia de Santos.
Fiz isso nos primeiros meses, e você pode imaginar o meu cansaço. Chegava em Santos de madrugada, acordava às 6h, levava minha filha para a escola, ia trabalhar, saía às 17h, chegava na faculdade às 20h30, 21h, para começar tudo outra vez. Até que um dia, ao chegar na faculdade mais uma vez na hora do intervalo e perceber que não estava entendendo nada, pegando somente a parte final das aulas, desabei.
Estava me sentindo burra, não compreendia o que meus professores diziam, não conseguia acompanhar as aulas e entendi que precisava me dedicar inteiramente; era preciso sair do trabalho. Como o gerente se recusou a me mandar embora, pedi demissão. Eu só receberia o mês trabalhado e teria que me virar. Em casa, não foi fácil. Apesar de contrariado, Donald me ajudou. Passei a morar com Dara em São Paulo durante a semana e voltava às sextas-feiras para Santos, pois sempre tínhamos uma janela de aulas. Geralmente, eu ia às terças e voltava às sextas.
Fui obrigada a ouvir muitos absurdos de familiares e colegas de faculdade. Ninguém hesitava em dizer que eu havia “abandonado” minha filha com o pai — como se ele não fosse também responsável por ela. Também havia a pressão de ser a única aluna negra da turma, e intimidada por estar em um lugar feito para expulsar pessoas como eu.
Quando Thulane chorava de saudade de mim, faziam questão de me avisar em alto e bom som, e meu coração se apertava ainda mais. Como ler Prolegômenos de Kant consumida pela culpa? Até que um dia, no apartamento da minha irmã, comecei a chorar, pensando que eu era uma mãe ruim, que estava sendo egoísta. Dara olhou fundo nos meus olhos e falou com a voz firme, quase me dando uma bronca: “Para de chorar! Você está estudando, você não abandonou sua filha. Se a mãe fosse viva daria dois tapas na sua cara pra você acordar!”.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

Nenhum comentário:

Postar um comentário