sábado, 8 de julho de 2023

A propósito da neve úmida[1]

[…]
Já naquela época, eu começava a experimentar os acessos daqueles prazeres de que falei no primeiro capítulo. Mas, depois da história com o oficial, algo começou a me atrair ainda mais para a Avenida Névski: era lá que eu o via com mais frequência, lá podia admirá-lo. Ele também frequentava o lugar de preferência nos feriados. Embora ele também saísse do caminho diante de generais e pessoas de alta posição e também serpenteasse como uma enguia entre eles, quando se tratava de alguém como eu, ou mesmo um pouco melhor, ele simplesmente o esmagava; caminhava diretamente para essa pessoa, como se na sua frente houvesse um espaço vazio, e nunca cedia passagem. Eu me embriagava com a minha raiva, observando-o, e... todas as vezes cedia-lhe o caminho, furioso. Torturava-me ver que nem mesmo na rua eu conseguia ser igual a ele. “Por que você é o primeiro a se desviar?”, implicava eu comigo mesmo, numa histeria furiosa, quando me acontecia acordar antes das três da manhã. “Por que tem de ser você e não ele? Pois não existe lei para isso, isso não está escrito em nenhum lugar. Então, que haja igualdade, como acontece geralmente quando pessoas educadas se encontram: ele cede até a metade, você também cede até a metade, e os dois passam, respeitando-se mutuamente”. Mas isso não acontecia, e era eu que acabava cedendo a passagem; quanto a ele, nem notava o fato. E, de repente, uma ideia mais que espantosa me veio à cabeça: “E se”, pensei, “se eu cruzo com ele e não cedo o caminho? Intencionalmente não me desvio do caminho, nem que tenha de empurrá-lo? Que tal, hein?” Essa ideia audaciosa aos poucos tomou conta de mim, a ponto de não me dar mais sossego. Sonhava constantemente com isso e de maneira terrível e intencional passei a ir com mais frequência à Avenida Névski, para imaginar mais claramente como eu procederia quando fosse executar aquilo. Estava animadíssimo. Cada vez mais o que me propunha a fazer me parecia mais plausível e possível. “É evidente que não vou dar um encontrão para valer”, pensava eu, já antecipadamente mais bondoso devido à alegria, “simplesmente não vou chegar para o lado e vou esbarrar nele sem lhe causar muita dor, ombro com ombro, o bastante para ficar dentro das normas da decência de maneira que ele se choque comigo na mesma medida que eu me chocar com ele”. Finalmente, decidi-me por completo. Os preparativos, no entanto, exigiram muito tempo. Antes de mais nada, durante a execução do plano eu teria de estar com a melhor aparência possível, e para isso precisava de me preocupar com minha roupa. “Se por acaso acontecer um escândalo público (e o público lá é superflu – a condessa costuma ir lá, o príncipe D. também, toda a literatura frequenta o lugar), é preciso estar bem vestido; isso causa boa impressão e imediatamente nos colocará de certa forma em pé de igualdade aos olhos da alta sociedade.” Com essa finalidade, pedi um adiantamento do meu salário e comprei um par de luvas pretas e um chapéu decente na loja de Tchúrkin. As luvas pretas me pareceram respeitáveis e de bom tom, mais do que as cor de limão que eu andara namorando antes. “É uma cor gritante demais, parece que a pessoa quer muito aparecer” – e não levei as cor de limão. Já tinha preparado muito tempo antes uma boa camisa com abotoaduras brancas, de marfim. Mas meu capote exigiu mais tempo. Até que o meu não era tão ruim e aquecia bem; mas era acolchoado com algodão e a gola era de pele de guaxinim, o que o tornava a coisa mais parecida possível com um sobretudo de lacaio. Era necessário, custasse o que custasse, substituir aquela gola por uma de castor, como as que os oficiais usam. Para isso eu passei a frequentar o Mercado dos Estrangeiros e, após algumas tentativas, fixei-me numa pele de castor alemã barata. Esses castores alemães, embora se gastem muito rapidamente e logo adquiram um aspecto lastimável, têm uma aparência bastante decente quando novos; eu precisava dele para uma única ocasião. Perguntei o preço: mesmo assim era caro. Depois de muito refletir, resolvi vender minha gola de guaxinim. O que faltava, e que para mim era uma soma bem considerável, resolvi pedir emprestado a Anton Antônytch Sétotchkin, meu chefe de seção, homem pacífico, embora sério e prático, que não emprestava dinheiro a ninguém, mas a quem, na ocasião do meu ingresso, eu tinha sido especialmente recomendado pela pessoa importante que me arranjara aquele emprego. Eu estava sofrendo terrivelmente. Pedir dinheiro a Anton Antônytch me parecia uma coisa monstruosa e indigna. Cheguei a ficar umas três noites sem dormir; aliás, de maneira geral, naquela época eu dormia pouco, sentia-me febril; meu coração às vezes parecia que ia parar, ou de repente começava a saltar, saltar, saltar... Anton Antônytch a princípio admirou-se, depois franziu o rosto, refletiu e acabou por emprestar-me o dinheiro, exigindo de mim um recibo que lhe dava o direito de receber o que me fora emprestado dentro de duas semanas, descontando-o do meu salário. Desse modo, tudo estava finalmente preparado: a bela gola de castor passou a reinar no lugar do miserável guaxinim, e comecei aos pouquinhos a executar o meu plano. Não era possível decidir-me de chofre, de maneira mal pensada; era necessário elaborar o plano com competência, pouco a pouco. Mas confesso que, depois de inúmeras tentativas, quase entrei em desespero: simplesmente não havia meio de darmos o encontrão! Com todos os preparativos que eu fazia, com toda a determinação que colocava na coisa, parecia que logo-logo haveríamos de nos esbarrar – mas, novamente, eu cedia o caminho e ele passava sem me notar. Ao me aproximar dele, eu chegava até a rezar para que Deus me desse firmeza. Certa vez, eu já me decidira definitivamente a enfrentá-lo, mas no final das contas caí bem aos seus pés, porque no último instante, a menos de um palmo de distância dele, faltou-me coragem. Ele passou por cima de mim com a maior tranquilidade e eu voei para o lado, como uma bola. Naquela noite, novamente fiquei doente, febril, e tive delírios. E, de repente, tudo terminou da melhor maneira possível. Na véspera, à noite, eu havia decidido desistir definitivamente da execução do meu plano e deixar tudo para trás e, com esse objetivo, fui pela última vez à Avenida Névski, só para verificar como deixaria tudo para trás. De repente, a três passos do meu inimigo, repentinamente me decidi, fechei os olhos e – nós nos chocamos fortemente, ombro contra ombro! Eu não cedi nem uma polegada e passei por ele como um igual! Ele nem ao menos se virou e fingiu que não notara, mas foi somente fingimento, estou certo disso. Até hoje tenho certeza disso! Claro está que eu sofri mais, pois ele era mais forte, mas não era isso que importava. O importante foi que consegui o meu objetivo, mantive a minha dignidade, não cedi nem um passo e, à vista de todos, me comportei com ele como uma pessoa do mesmo nível social. Voltei para casa sentindo-me completamente vingado de tudo. Estava na maior alegria. Sentia-me vitorioso e cantava árias italianas. Evidentemente, não vou contar aos senhores o que se passou comigo três dias depois. Se leram a primeira parte, “O subsolo”, serão capazes de adivinhar sozinhos. Aquele oficial foi transferido mais tarde, nem sei para onde. Faz agora uns catorze anos que não o vejo. Que estará fazendo agora o meu querido amigo? Em quem estará pisando?

Dostoiévski, in Notas do Subsolo

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