Perguntaram
à preguiça:
– Preguiça, você quer mingau?
Ela disse bem devagar:
–
Queeeeero.
– Então vem buscar.
– Não quero mais nããão…
Num
dia de chuva dá muita preguiça. Quase não posso escrever. Foi na
viagem para um fim de semana em Friburgo. Chovia e na Parada Modelo
vi as preguiças. Era demais para mim e me deu um sono daqueles. Vi
as preguiças ensopadas mas ali imóveis, morrendo de preguiça. Um
cheiro bom de bicho vinha delas. Elas têm cor de pedra, quase cor de
nada.
Friburgo
é uma coisa. E a granja onde ficamos tem de tudo: cavalos, galinhas,
jabuticabeiras, margaridas, bananeiras, limões, rosas. Tem forno
onde se fazia pão. É um verdadeiro sítio. E a cidade tem um ar
fino. Fui à rodoviária onde comprei o Jornal do Brasil e li
Drummond. Comi steak au poivre feito em casa. Só que em vez
de steak era pernil de porco. Isso no sábado que é o meu
dia. De sexta para sábado sonhei tão verdadeiro que me levantei e
me vesti e me pintei. Quando descobri que era sonho voltei para a
cama, antes comendo porque estava com fome brava. Mas era homem com
que sonhei, mulher que sou. Sonhei que tinha encontro marcado e não
queria me atrasar. Estou a ver que quase conto o sonho, mas não
posso. É íntimo demais.
Já
vi vacas e um frango. De manhã comi ovos com bacon. Friburgo me
fascina. Tem casas cor-de-rosa e azul. A natureza fica tão tranquila
quando chove! Lembro-me das preguiças que continuam no mesmo lugar,
imóveis e ensopadas só para não terem trabalho de mudar. Eu
também. Hoje é meu dia de preguiça. Mas não vou dormir: quero
usufruir da granja e dos animais. O tempo aqui parou. Eu queria que o
fogão ainda funcionasse e se fizesse pão. Vi um cafeeiro e por isso
tomei café. O mundo está louco: isso eu vi no Jornal do Brasil.
E a Feira da Providência perdi por Friburgo. Esqueci de dizer que na
casa tinha cachorro: cruza de galgo com vira-lata, muito manso e
alegre. Vou interromper para tomar outro café. Volto já.
Voltei.
Meu rádio de pilha está ligado para Mozart que é alegre. Vi um
cavalo branco inteiramente nu. Parou de chover. É hora de trabalhar.
Mas nada tenho a dizer. O que dizer, meu Deus? Vou falar que colhi
uma margarida e coloquei-a no meu casaco de couro preto: oh, fiquei
linda. Estou com vontade de rever as preguiças e sentir o cheiro
morno delas. É outubro, mês neutro. Setembro é mês alegre como
maio. O cavalo só volve para dormir e eu também: resolvi que depois
do almoço vou dormir. Dormir é bom – que o digam as preguiças.
Meio-dia vou almoçar e ler o Complexo de Portnoy, livro
corajoso. E no meio adormeço.
Quando
acordar vou à cidade de novo. Eu queria visitar a Faculdade de
Letras. Mas não parece ter jeito não. Estou ligada a essa faculdade
e a Marly; grande poeta e pessoa das mais cultas que conheço. Quero
ir à cidade e estou com sono. Quero Coca-Cola para tirar o sono.
Quem me ensinou que Coca-Cola com café tira o sono foi João
Henrique. Diz que é chofer de caminhão que toma: João Henrique me
ensinou muita coisa. Sou grata a ele. Agora me lembro que Míriam
Bloch também me disse.
Fui
à cidade. Tinha um ajuntamento grande de pessoas. Perguntei o que
era. Informaram-me que estavam à procura de um esfaqueador que matou
seis mulheres e estava fugido no morro. Tive medo. Não quero morrer.
Morrer é ruim.
Fui
não sei para que para a Faculdade de Letras. Não quis visitar a
biblioteca. Não sou culta. A freira que me atendeu não sabia de
nada. Tinha uma aula de História de Arte. Não quis assistir: Chega
de arte, embora eu seja artista. Tenho vergonha de ser escritora –
não dá pé. Parece demais com coisa mental e não intuitiva.
É
lindo o anoitecer em Friburgo. Ouço também um batuque que vem de
uma vendinha que vende cachaça e alegra os homens. Aqui tudo é
alegre, menos o esfaqueamento. Será que a polícia já prendeu o
esfaqueador de mulheres? Só tomara
.A
natureza é tão preguiçosa. Os cavalos continuam comendo. Agora
estão relinchando. Ouço também os grilos. Ouço flauta doce, não
sei se Bach ou Vivaldi. São quatro horas da madrugada com silêncio.
Só agora estou ouvindo os sapos coaxarem. Já tomei café. Estou
fumando. Essa casa não tem quadros. Cabo Frio tinha: pudera: Scliar,
João Henrique, José de Dome. Scliar gosta de ocre, João Henrique
gosta de verde, José de Dome de amarelo. Mas aqui tem uma sopeira
muito bonita. Faz-me falta a máquina de escrever. Tenho duas: uma
Olivetti e uma Olympia. Prefiro a Olivetti que é mais dura e resiste
aos dedos. Todos estão dormindo. Menos eu. Tem aqui uma ferradura
para dar sorte. Os passarinhos com fome piando. Parece mentira de tão
bom que está aqui. Tenho um livro de Simenon – sou doida por ele:
o melhor é ler em francês, mas o que tenho aqui é português. Vou
citar um trecho: “Um largo feixe de luz atravessava o quarto,
iluminando uma fina poeira, como se de repente se descobrisse a vida
íntima do ar.” Não é bom?
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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