terça-feira, 6 de junho de 2023

O que é arte? | Capítulo II


Todo balé, circo, ópera, opereta, exposição, pintura, concerto, impressão de livro requer o esforço intenso de milhares e milhares de pessoas que trabalham obrigadas em tarefas que muitas vezes são prejudiciais ou humilhantes.
Não haveria problema se os próprios artistas fizessem todo o trabalho, mas não, eles precisam da ajuda de trabalhadores, não apenas para produzir arte, mas também para manter a própria existência — quase sempre luxuosa —, e conseguem isso de uma maneira ou de outra, sob forma de remuneração recebida de pessoas ricas ou de subsídios governamentais — que em nosso país, por exemplo, lhes são dados em milhões, para teatros, conservatórios, academias. E esse dinheiro é coletado do povo, cuja vaca tem de ser vendida para esse fim e que nunca se beneficia dos prazeres estéticos que a arte proporciona.
Pois isso era coerente em um artista grego ou romano, ou mesmo em um artista russo da primeira metade do século, quando havia escravos e era considerado correto, em sã consciência, fazer pessoas servirem ao prazer de alguém. Mas em nossa época, quando todos têm ao menos uma vaga noção de igualdade de direitos, é impossível fazer com que as pessoas trabalhem à força pela arte sem antes resolver esta questão: se é verdade que a arte é uma coisa tão boa e importante a ponto de redimir essa coerção.
Senão fica terrível pensar que é bem possível que cruéis sacrifícios estejam sendo oferecidos à arte, na forma de trabalho, vida e ânimo das pessoas, enquanto essa arte, além de não ser útil, é até mesmo danosa.
E, assim sendo, para uma sociedade no seio da qual emergem e recebem apoio obras de arte, é necessário saber se tudo o que passa por arte o é realmente, e se tudo que é arte é bom, como se pensa em nossa sociedade, e, se for bom, se é algo importante e digno dos sacrifícios que exige. E é ainda mais necessário para todo artista consciencioso saber isso, para que tenha confiança de que há um sentido em tudo o que faz e que não se trata de uma paixão do pequeno círculo de pessoas entre as quais ele vive, que suscita nele uma falsa segurança de que está fazendo uma coisa boa e o que recebe de outras pessoas para manter sua vida — geralmente muito luxuosa — será compensado pelas produções nas quais ele está trabalhando. Portanto, as respostas a essas questões são especialmente importantes para a nossa época.
O que é, então, essa arte que é considerada tão importante e necessária para a humanidade, cujos sacrifícios não apenas do trabalho e das vidas humanas, mas também da bondade, lhe são oferecidos?
O que é arte? Por que, até, fazer tal pergunta? Arte é arquitetura, escultura, pintura, música, poesia em todas as suas formas — essa é a resposta costumeira do homem comum, do amante da arte e mesmo do próprio artista, que supõe que aquilo que ele está falando é entendido muito claramente e da mesma maneira por todas as pessoas. Mas na arquitetura, podemos objetar, existem edifícios simples que não são obras de arte e edifícios que alegam serem obras de arte, mas são impróprios, feios, e portanto não podem ser considerados como tal. Qual é, então, o sinal de uma obra de arte?
É exatamente a mesma coisa na escultura, na música e na poesia. A arte em todas as suas formas beira, de um lado, o que é praticamente útil, e, do outro lado, as tentativas malsucedidas de fazer arte. Como separá-la de uma coisa e de outra? O homem medianamente instruído do nosso meio, e mesmo o artista que não seja especialmente preocupado com estética, não considerará essa questão difícil. Ele pensa que a resposta já foi encontrada há muito tempo e é do conhecimento de todos.
Arte é a atividade que manifesta a beleza”, tal homem comum responderá.
Mas, se a arte consiste nisso, então um balé ou uma ópera também são arte?”, perguntará você.
Sim”, responderá o homem comum, embora com certa insegurança. “Um bom balé e uma opereta graciosa também são arte, visto que manifestam beleza.”
Mas mesmo sem chegar a perguntar ao homem comum o que distingue o bom balé, ou a opereta graciosa da desgraciosa — uma questão que seria muito difícil para ele responder —, se você perguntar a esse homem se se pode considerar arte a atividade do figurinista e do cabeleireiro que adornam o corpo e a face das mulheres no balé ou na opereta, ou a atividade do alfaiate Worth, do perfumista ou do cozinheiro, ele, na maioria dos casos, negará que a atividade do alfaiate, do cabeleireiro, do figurinista e do cozinheiro pertençam ao reino da arte. Mas aqui o homem comum estará enganado, precisamente porque é um homem comum, não um especialista, e não estudou, portanto, as questões da estética. Se as tivesse estudado, ele veria no famoso Renan, em seu livro Marco Aurélio, uma discussão sobre o fato de ser arte a arte do costureiro, e sobre a insensibilidade e limitação das pessoas que não veem no traje de uma mulher um assunto da mais elevada arte. “C’est le grand art”, diz ele. E, mais que isso, o homem comum poderia aprender em muitos sistemas estéticos — por exemplo, na estética do erudito professor Kralik, Weltschönheit: Versuch einer allgemeinen Ästhetik, e em Les Problèmes de l’esthétique, de Guyau — que as artes do vestuário, do gosto e do tato são reconhecidas como arte.

Es folgt nun ein Fünfblatt von Künsten, die der subjektiven Sinnlichkeit entkeimen [Segue-se um quinteto de artes derivadas dos sentidos subjetivos]”, diz Kralik. “Sie sind die ästhetische Behandlung der fünf Sinne.”

Essas cinco artes são as seguintes:
Die Kunst des Geschmacksinns — a arte do sentido do gosto.
Die Kunst des Geruchsinns — a arte do sentido do olfato.
Die Kunst des Tastsinns — a arte do sentido do tato.
Die Kunst des Gehörsinns — a arte do sentido da audição.
Die Kunst des Gesichtsinns — a arte do sentido da visão.
Da primeira, die Kunst des Geschmacksinns, ele diz o seguinte:

Man hält zwar gewöhnlich nur zwei oder höchstens drei Sinne für würdig, den Stoff künstlerischer Behandlung abzugeben, aber ich glaube nur mit bedingtem Recht. Ich will kein allzu groβes Gewicht darauf legen, daβ der gemeine Sprachgebrauch manch andere Künste, wie zum Beispiel die Kochkunst, kennt.

E mais adiante:

Und es ist doch gewiss eine ästhetische Leistung, wenn es der Kochkunst gelingt aus einem tierischen Kadaver einen Gegenstand des Geschmacks in jedem Sinne zu machen. Der Grundsatz der Kunst des Geschmacksinns (die weiter ist als die sogenannte Kochkunst) ist also dieser: Es soll alles Geniessbare als Sinnbild einer Idee behandelt werden und in jedesmaligem Einklang zur auszudrückenden Idee.

Como Renan, o autor também reconhece uma Kostümkunst (arte do vestuário), e assim por diante.
A mesma opinião é mantida pelo escritor francês Guyau, que é muito considerado por alguns escritores de nossa época. Em seu livro Les Problèmes de l’esthétique, ele fala seriamente que os sentidos do tato, paladar e olfato dão ou podem dar impressões estéticas:

Si la couleur manque au toucher, il nous fournit en revanche une notion, que l’oeil seul ne peut nous donner et qui a une valeur esthétique considérable: celle du doux, du soyeux, du poli. Ce qui caractérise la beauté du velours, c’est la douceur au toucher non moins que son brillant. Dans l’idée que nous nous faisons de la beauté d’une femme, la velouté de sa peau entre comme élément essentiel.
Chacun de nous probablement avec un peu d’attention se rappellera des jouissances du goût, qui ont été des véritables jouissances esthétiques.

E ele conta como um copo de leite tomado nas montanhas lhe deu prazer estético.
Assim a ideia de arte como manifestação da beleza não é de modo algum tão simples quanto parece, especialmente agora que nossos sentidos de tato, paladar e olfato foram incluídos nela pelos estetas mais recentes.
Mas o homem comum não sabe, ou não quer saber disso, e está firmemente convencido de que todas as questões da arte são resolvidas, de maneira simples e clara, pelo reconhecimento da beleza como conteúdo da arte. Para ele, parece claro e compreensível que a arte seja manifestação da beleza; e pela beleza todas as questões da arte lhe são explicadas.
Mas o que é essa beleza que, na sua opinião, forma o conteúdo da arte? Como defini-la?
Como acontece com tudo, quanto mais vago e confuso o conceito expressado por uma palavra, maior a pose e segurança com que as pessoas a usam, fazendo de conta que o que se entende por essa palavra é tão simples e claro que nem vale a pena falar sobre o que ela realmente significa. Esse é o modo como as pessoas geralmente agem com respeito às questões de superstição religiosa, e é como elas agem, hoje em dia, com respeito ao conceito de beleza. Assume-se que todo mundo sabe e entende o que a palavra “beleza” significa. E, no entanto, isso não acontece de fato. Mesmo hoje, depois que montanhas de livros foram escritas sobre esse assunto pelos homens mais cultos e profundos, no período de 150 anos — desde 1750, quando Baumgarten fundou a estética —, a questão sobre o que a beleza é permanece inteiramente aberta, e cada nova obra de estética a resolve de uma nova maneira. Um dos últimos livros que me calhou de ler, sobre estética, é um livrozinho agradável de Julius Mithalter, chamado Rätsel des Schönen [O enigma do belo]. Esse título expressa corretamente o estado da questão sobre o que é a beleza. Milhares de eruditos a vêm discutindo por 150 anos, e o significado da palavra “beleza” continua sendo um enigma. Os alemães solucionam esse enigma à sua própria moda, ainda que de centenas de formas diferentes; os estetas-psicologistas, sobretudo os ingleses da escola Herbert Spencer-Grant Allen, também cada qual a seu modo; os ecléticos franceses e os seguidores de Guyau e Taine, também cada um do seu jeito — e todos esses homens conhecem as soluções anteriores de Baumgarten, Kant, Schelling, Schiller, Fichte, Winckelmann, Lessing, Hegel, Schopenhauer, Hartmann, Schassler, Cousin, Lévêque e outros.
O que, então, é esse estranho conceito de beleza, que parece tão compreensível para aqueles que não pensam sobre o que estão dizendo, enquanto que, por 150 anos, filósofos de várias nações e das mais variadas tendências foram incapazes de concordar sobre sua definição? O que é esse conceito de beleza, sobre o qual se baseia a doutrina reinante da arte?
Em russo, com a palavra krasota [beleza] queremos dizer somente o que é agradável aos olhos, embora ultimamente as pessoas tenham começado a falar de uma ação que é nekrasivy [não bela, isto é, má] ou de uma música que é krasivaya [bela], um termo não realmente russo.
Um homem russo do povo, que não conheça línguas estrangeiras, não o entenderá se você lhe disser que alguém que deu sua última peça de roupa a um outro, ou algo assim, agiu krasivo, ou que ao enganar um outro ele agiu nekrasivo, ou que uma canção é krasivaya. Em russo, uma ação pode ser gentil e boa, cruel e má; uma música pode ser agradável e boa, desagradável e ruim, mas nunca podem ser belas ou feias.
Um homem, um cavalo, uma casa, uma vista, um movimento podem ser belos, mas sobre ações, pensamentos, caráter, música, podemos dizer que são bons, se gostamos muito deles, ou não bons, se não gostamos; só podemos dizer “belo” para aquilo que é agradável à nossa visão. Dessa forma, a palavra e o conceito “bom” abrangem dentro de si o conceito “belo”, mas não vice-versa: o conceito “belo” não cobre o conceito “bom”. Se disséssemos, de um objeto valorizado por sua aparência, que ele é “bom”, estaríamos com isso dizendo que esse objeto é também belo; mas se disséssemos que ele é “belo”, isso de maneira nenhuma indicaria que o objeto é bom.
Tal é o significado atribuído às palavras e conceitos “bom” e “belo” pela língua russa e, portanto, pelo senso comum do povo russo.
Em todas as línguas europeias, ou seja, as línguas daqueles povos entre os quais a doutrina da beleza como essência da arte se espalhou, as palavras beau, schön, beautiful, bello, conquanto mantenham o sentido de beleza da forma, também passaram a significar “bom-dade” — ou seja, passaram a substituir a palavra “bom”.
De forma que essas línguas, hoje, empregam muito naturalmente expressões como belle âme [bela alma], schöne Gedanken [belo pensamento], beautiful deed [belo feito], e no entanto elas não têm uma palavra própria para definir beleza da forma e precisam usar combinações de palavras como beau par la forme, e assim por diante.
Observando o significado que a palavra “beleza”, ou “o belo”, tem na língua russa e nas línguas dos povos entre os quais a teoria da estética se estabeleceu, vemos que a palavra “beleza” é dotada, por esses povos, de um significado especial, o significado do “bem”.
A coisa notável é que, como nós, russos, começamos a adotar cada vez mais a visão europeia da arte, a mesma evolução começou a ocorrer em nossa língua também, e as pessoas falam e escrevem com total segurança, sem surpreender ninguém, de bela música e ações e mesmo pensamentos feios, enquanto que há quarenta anos, na minha juventude, as expressões “bela música” e “ações feias” não somente não estavam em uso, como também eram incompreensíveis. Evidentemente, esse novo significado com o qual o pensamento europeu dotou a beleza está começando a ser usado pela sociedade russa também.
O que é esse significado? O que é, então, a beleza tal como compreendida pelo povo europeu?
Para responder a essa questão, vou citar pelo menos algumas daquelas definições de beleza mais largamente disseminadas nos sistemas estéticos existentes. Peço especialmente ao leitor para não se aborrecer e ler o que vai citado aqui, ou, o que seria melhor ainda, ler alguma obra sobre estética. Sem mencionar as volumosas obras alemãs, algumas boas opções para esse fim são o livro alemão de Kralik, o inglês de Knight[11] e o francês de Lévêque. É necessário ler alguma coisa sobre estética para formar uma ideia pessoal da diversidade de julgamentos e da terrível indefinição que reina nessa esfera de opinião, para não confiar nas palavras de outrem nesse assunto importante.
Eis aqui, por exemplo, o que o esteta alemão Schassler diz sobre o caráter de toda a pesquisa estética, no prefácio de seu famoso e completo livro sobre o tema:

É difícil achar, em qualquer outra área da ciência filosófica, métodos de pesquisa e exposição toscos em nível de contradição, tal como se encontra na estética. Por um lado, sofisticada produção de frases sem nenhum conteúdo, distinguidas em sua maioria por uma total superficialidade unilateral; por outro lado, juntamente com toda a sua inegável profundidade de pesquisa e riqueza de conteúdo, uma repulsiva deselegância da terminologia filosófica, que veste as coisas mais simples com trajes de cientificidade abstrata, como se as tornasse assim dignas de entrar nas brilhantes mansões do sistema; e, finalmente, entre esses dois métodos de pesquisa e exposição, existe um terceiro como que formando uma transcrição de um ao outro, um método que consiste em ecletismo, ostentando aqui sua bela construção de frase, ali sua cientificidade pedante... Uma forma de exposição que não incorra em nenhum desses três defeitos, mas seja verdadeiramente concreta e, ao mesmo tempo, que tenha conteúdo substancial, e que expresse isso em uma linguagem filosófica clara e popular, em nenhum lugar será mais difícil de encontrar do que na área de estética.

Basta ler o livro do próprio Schassler para ficar convencido da exatidão de seu julgamento.
O escritor francês Véron, no prefácio de seu bom livro sobre estética, diz sobre o mesmo assunto:

Il n’y a pas de Science qui ait été de plus, que l’esthétique, livrée aux réveries des métaphysiciens. Depuis Platon jusqu’aux doctrines officielles de nos jours, on a fait de l’art je ne sais quel amalgame de fantaisies quintessenciées et de mystères transcendentaux, qui trouvent leur expression suprême dans la conception absolue du beau idéal prototype immuable et divin des choses réelles.

Esse julgamento está mais do que correto, como se convencerá o leitor se se der ao trabalho de ler as definições de beleza, a seguir, que copiei dos principais escritores sobre estética.
Não citarei definições de beleza atribuídas aos antigos — de Sócrates, Platão, Aristóteles até Plotino — porque, de fato, o conceito de beleza separado do bem, que constitui a base e o objetivo da estética de nossos dias, não existia entre os antigos. Ao transferir juízos de beleza dos antigos para nossos próprios conceitos de beleza, como é geralmente feito na estética, damos a suas palavras um significado que elas não tinham (a esse respeito, veja o excelente livro de Bénard, L’Esthétique d’Aristote, e o Geschichte der Ästhetik im Altertum, de Walter).

Leon Tolstói, in O que é arte?

Nenhum comentário:

Postar um comentário