quarta-feira, 7 de junho de 2023

O corredor

O corredor fez a curva devagar, vendo patos se reunirem perto da ponte para pedestres onde uma garota espalhava migalhas de pão. A pista seguia aproximadamente o contorno da lagoa, traçando meandros entre as árvores. O corredor escutava sua própria respiração ritmada. Era jovem e sabia que podia correr mais depressa, mas não queria estragar a sensação de esforço suave ao entardecer, todos os rumores e ruídos do dia a se escoar num fluxo constante de suor.
Os carros deslizavam pela avenida. A garota pegava fragmentos de pão que lhe dava o pai e jogava-os por cima do parapeito, mantendo a mão espalmada como se estivesse sinalizando o número cinco. O corredor diminuiu a velocidade ao entrar na ponte. Havia duas mulheres trinta metros à sua frente, andando por uma pista que levava à rua. Um pombo atravessou a grama com passos rápidos quando o corredor se aproximou, inclinando o corpo na curva. O sol estava entre as árvores do outro lado da avenida.
Ele havia percorrido um quarto da pista do lado oeste da lagoa quando um carro saiu do asfalto, subindo no gramado. Uma brisa soprou, e o corredor levantou os braços, sentindo o ar entrar em sua camiseta. Um homem saltou do carro, apressado. O corredor passou por um casal de velhos sentado num banco. Eles estavam juntando os cadernos de um jornal, preparando-se para ir embora. As salgueirinhas estavam começando a florescer ao longo da margem do lago. Ele pensou em dar mais quatro voltas, chegando quase ao limite de sua resistência. Havia uma turbulência lá atrás, olhando por cima do ombro direito, um salto para outro nível. Olhou para trás enquanto corria, e viu o casal de velhos se levantar do banco, sem se dar conta de nada, e então o carro parado no gramado, fora do lugar, e uma mulher em pé sobre uma toalha olhando em direção ao carro, as mãos levantadas, emoldurando o rosto. Ele virou-se para a frente e passou pela placa que avisava que o parque fechava quando o sol se punha, embora não houvesse portões, nenhuma maneira eficaz de impedir que as pessoas entrassem. O fechamento do parque era algo puramente mental.
O carro era velho, cheio de contusões, o para-lama traseiro direito pintado de um tom de cobre à prova de ferrugem, e então o corredor ouviu os estampidos em staccato do cano de escape quando o carro deu a partida e saiu.
O corredor contornou a extremidade sul da lagoa, olhando para dois garotos de bicicleta para ver se seus rostos davam algum sinal do que estava acontecendo. Os garotos passaram por ele, um de cada lado, e dos fones de um deles vazou um pouco de música. Ele viu a garota e o pai na extremidade da ponte. Uma linha de luz crespa roçou a superfície da água. O corredor viu que a mulher no gramado estava virada para o outro lado agora, olhando para a avenida, e havia três ou quatro pessoas olhando na mesma direção, e outras apenas levando seus cães para passear. Viu carros passando na avenida em direção ao norte.
A mulher era um vulto baixo e largo grudado à toalha. Ela virou-se para umas pessoas que vinham em sua direção e começou a chamá-las, sem compreender que sabiam que ela estava angustiada. Agora as pessoas estavam agrupadas em torno da toalha, e o corredor viu que tentavam acalmar a mulher com gestos. A voz dela era áspera e pastosa, gaga, ofegante, uma voz danificada. O corredor não conseguia entender o que ela dizia.
No início de uma pequena elevação, o caminho estava macio e úmido. O pai olhou para a elevação, com a mão estendida, virada para cima, e a garota escolheu pedaços de pão e virou-se para o parapeito. O rosto dela ficou tenso de antecipação. O corredor aproximou-se da ponte. Um dos homens perto da toalha desceu a pista e correu em direção aos degraus que davam na rua. Ele mantinha a mão no bolso para impedir que alguma coisa saísse dele. A garota queria que o pai olhasse para ela enquanto ela jogava os farelos na água.
Dez passos largos depois da ponte, o corredor viu uma mulher se aproximando dele numa trajetória angular. Ela tinha a cabeça inclinada, como um turista prestes a pedir uma informação. Ele parou, mas não por completo, virando-se pouco a pouco para que os dois pudessem continuar a encarar-se enquanto ele retrocedia lentamente na pista, as pernas ainda se movendo num ritmo de corrida.
Disse a mulher, num tom simpático: “Você viu o que aconteceu?”.
Não. Só vi o carro. Uns dois segundos.”
Eu vi o homem.”
O que aconteceu?”
Eu estava saindo com a minha amiga que mora logo ali. Nós ouvimos o carro quando ele passou por cima do meio-fio. Meio que subiu no gramado. O pai salta e pega o menininho. Ninguém teve tempo de reagir. Eles entram no carro e vão embora. Eu só consegui dizer ‘Evelyn’. Ela na mesma hora saiu procurando um telefone.”
Agora ele estava correndo sem sair do lugar e a mulher chegou mais perto, uma mulher de meia-idade com um sorriso involuntário.
Eu conheço você do elevador”, disse ela.
Como a senhora sabe que era o pai?”
Isso vive acontecendo, não é? Eles têm filhos quando ainda não estão preparados. Não sabem no que estão se metendo. Aí é uma encrenca depois da outra. Depois se separam, ou então o pai tem problema com a polícia. Não é isso que a gente vê o tempo todo? Ele está desempregado, vive se drogando. Um dia resolve que tem direito de passar mais tempo com o filho. Quer guarda compartilhada. Fica uns dias pensando nisso. Aí vai falar com a mãe, os dois discutem e ele quebra a mobília. A mãe consegue uma medida cautelar. O pai não pode chegar perto do filho.”
Eles olharam em direção à elevação, onde a mulher, em pé sobre a toalha, gesticulava. Outra mulher segurava alguns dos pertences dela, um suéter, uma bolsa de pano grande. Um cachorro saiu correndo atrás das gaivotas perto da pista, as gaivotas bateram asas e pousaram de novo em outro ponto mais adiante.
Veja só o barrigão dela. Essas coisas vivem acontecendo, cada vez mais. Moças muito jovens. Elas não conseguem se conter. Estão predispostas a cair nessa. Você está morando no prédio há quanto tempo?”
Quatro meses.”
Tem uns que já entram atirando. Nem são legalmente casados. Não dá pra achar que os pais se separam e tudo vai dar certo. Não é fácil criar um filho mesmo tendo recursos.”
Mas a senhora não tem como ter certeza, não é?”
Eu vi os dois e vi o menino.”
Ela disse alguma coisa?”
Nem deu tempo. Ele agarrou o menino e voltou pra dentro do carro. Acho que ela ficou totalmente paralisada.”
Tinha mais alguém no carro?”
Não. Ele largou o menino no banco e foi embora. Eu vi tudo. Ele queria guarda compartilhada e a mãe disse que não.”
A mulher insistia, apertando a vista por causa do sol, e o corredor lembrou que já a vira uma vez na lavanderia, dobrando roupas com o mesmo olhar ofuscado.
Está certo que a mulher está muito abalada”, disse ele. “Mas não sei se eles eram ou não legalmente casados, ou separados, nem estou sabendo de medida cautelar.”
Quantos anos você tem?”, ela perguntou.
Vinte e três.”
Então você não sabe.”
Ele surpreendeu-se com o tom de aspereza na voz dela. Corria sem sair do lugar, despreparado, suando em bicas, sentindo o calor elevar-se do peito. Um carro de polícia subiu o meio-fio e todas as pessoas em torno da toalha viraram-se para olhar. A mulher quase desabou quando o policial saltou do carro. Ele caminhou no seu ritmo tranquilo habitual em direção ao grupo. A mulher parecia querer cair, afundar na toalha e desaparecer. Um som brotou dela, uma desolação, e todos se aproximaram mais, estendendo as mãos.
O corredor aproveitou o momento para interromper o diálogo. Retomou sua corrida, tentando recuperar a rima entre passo e respiração. Passou um trem de serviço atrás das árvores do outro lado da lagoa, com um apito grave e animal. O corredor fez a curva larga da extremidade sul, intranquilo. Viu a garota seguindo o pai numa pista estreita que levava para fora do parque. Viu um segundo carro de polícia parado no gramado à sua esquerda, mais ao longe. O aglomerado estava se dispersando. Ele passou pela ponte, tentando localizar a mulher com quem havia conversado. Os patos traçavam linhas sinuosas na água em direção aos farelos de pão espalhados.
Mais duas voltas e pronto.
Aumentou a velocidade, ainda tentando manter uma cadência. O primeiro carro de polícia saiu levando a mulher. O corredor viu que a outra extremidade da lagoa estava vazia agora, mergulhando numa sombra profunda. Fez a curva, sabendo que não devia ter interrompido a conversa de modo tão abrupto, mesmo tendo a mulher sido ríspida com ele. Um cone de trânsito destacava-se do trecho raso da lagoa. O corredor aproximou-se da ponte.
Após os primeiros passos da última volta, começou a subir a elevação, e foi lentamente diminuindo o ritmo, por fim caminhando. Um policial estava encostado na porta do carro, conversando com a última testemunha, um homem que estava de costas para o corredor. Carros passavam em alta velocidade, alguns já com os faróis ligados. O policial levantou a vista de seu caderno quando o corredor se aproximou.
Desculpe interromper, seu guarda. Eu só estou curioso pra saber o que a mulher disse. Foi o marido dela, alguém que ela conhecia, que pegou o menino?”
O que foi que você viu?”
Só o carro. Azul, com um para-lama de outra cor. Quatro portas. Não vi as placas nem reparei na marca. Vi o homem só de relance, andando meio que agachado.”
O policial voltou a olhar para o caderno.
Era um desconhecido”, informou o policial. “Foi a única coisa que ela disse pra nós.”
O outro homem, a testemunha, havia se virado parcialmente, e agora os três formavam um círculo irregular, constrangido, em que ninguém olhava nos olhos de ninguém. O corredor sentiu que havia se metido numa rivalidade de dimensões delicadas. Acenou com a cabeça, para ninguém em particular, e retomou a pista em torno da lagoa. Recomeçou a correr, de um modo meio aleatório, batendo os cotovelos. Um grupo de gaivotas permanecia imóvel sobre a água.
O corredor chegou ao final da corrida. Parou e curvou-se para a frente, com as mãos nas cadeiras. Depois de alguns instantes, começou a andar pela pista. O carro de polícia tinha ido embora, deixando marcas de pneus na grama, três grupos de curvas que formavam estrias de terra grossa. O corredor saiu do parque para a rua, atravessou a passarela e seguiu em direção a uma fileira de lojas iluminadas. Não deveria ter questionado a versão da mulher, por mais rígida e implacável que fosse. Ela só tivera a intenção de protegê-los a ambos. O que seria melhor acreditar, que fora o pai quem viera pegar o próprio filho ou um homem saído do nada, de um espaço onírico? O corredor procurou a mulher nos bancos à frente do prédio em que ambos moravam, onde muitas vezes as pessoas ficavam sentadas nas tardes quentes. Ela havia tentado estender o evento no tempo, torná-lo reconhecível. Você preferia acreditar num vulto aleatório, um homem além do imaginável? Encontrou a mulher sentada à sombra de um corniso numa área à direita da entrada.
Procurei a senhora lá no parque”, disse ele.
Não consigo parar de pensar nessa história.”
Eu falei com um policial.”
Porque vendo a coisa acontecer, não consegui entender direito. Uma coisa tão maluca. Ver o menino nas mãos daquele homem. Acho que foi mais violento do que se tivesse havido um tiroteio. A pobre da mulher vendo a coisa acontecer. Como ela podia imaginar? Eu me senti tão impotente, tão estranha. Aí vi você chegando perto e pensei, preciso falar com alguém. Sei que falei bobagem.”
A senhora estava perfeitamente controlada.”
Eu estava aqui pensando que não tem como questionar os dados. O carro, o homem, a mãe, o menino. São as peças. Mas como é que elas se encaixam? Porque agora, depois que tive um tempo pra pensar, não tem explicação. É como se um buraco se abrisse no ar. Não faz o menor sentido. Essa noite não vou conseguir dormir, de jeito nenhum. Com essa coisa horrível, monstruosa.”
Ela identificou o homem. Era mesmo o pai. Ela deu os detalhes à polícia. Foi tudo quase exatamente como a senhora falou.”
A mulher encarou-o cautelosa. De repente ele se viu tal como estava sendo visto, suado e ofegante, um personagem de caricatura, com um short laranja e uma camiseta regata rasgada e desbotada, e sentiu um distanciamento da cena, como se a estivesse assistindo escondido em algum lugar. A mulher exibia aquele sorriso estranho, doído. Ele recuou um pouco, depois se inclinou para trocar um aperto de mãos com ela. Foi assim que se despediram.
Ele entrou no saguão branco. O eco da corrida zumbia em seu corpo. Ficou esperando, numa névoa de cansaço e sede. O elevador chegou e a porta se abriu. Ele subiu sozinho, atravessando as entranhas do edifício.

Don DeLillo, in O Anjo Esmeralda

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