A
velha freira levantou-se ao raiar do dia, sentindo dores em todas as
juntas. Levantava-se ao raiar do dia desde seus tempos de postulante,
rezava ajoelhada em soalhos de madeira de lei. Antes de mais nada
levantou a persiana. Lá está o mundo, maçãzinhas verdes e doenças
infecciosas. Faixas de luz atravessavam o quarto, banhando a textura
da madeira num tom antigo e luminoso de ocre, um desenho e uma
coloração tão profundamente prazerosos que ela foi obrigada a
desviar a vista, para que não ficasse fascinada como uma menina.
Ajoelhou-se nas dobras da camisola branca, tecido lavado incontáveis
vezes, batido em água ensaboada, até ficar duro, cartilaginoso. E o
corpo sob o pano, aquela coisa raquítica que ela arrastava pelo
mundo afora, quase todo branco como giz, e mãos manchadas, de veias
saltadas, e cabelos cortados rente, finos e grisalhos como o linho, e
olhos azuis como o aço — houve tempo em que muitos meninos e
meninas viam aqueles olhos nos sonhos. Ela fez o sinal da cruz,
murmurando as palavras apropriadas. Amém, palavra antiga, remonta ao
grego e ao hebraico, assim seja — tocando o peito para completar a
cruz em forma de corpo. A mais breve das preces cotidianas, e no
entanto garante três anos de indulgência, sete se você mergulhar a
mão em água benta antes de marcar o corpo. A oração é uma
estratégia prática, que permite ganhar uma vantagem temporária nos
mercados de capitais do Pecado e da Remissão.
Fez
sua oblação matinal e pôs-se de pé. Diante da pia esfregou as
mãos repetidamente com um sabão pardo grosseiro. Como podem as mãos
ficar limpas se o sabão é sujo? Essa era uma pergunta recorrente em
toda a sua vida. Mas se você limpa o sabão com água sanitária,
com que limpar a garrafa de água sanitária? Se você usar Ajax para
limpar a garrafa, como limpar a caixa de Ajax? Os micróbios têm
personalidade própria. Cada objeto contém ameaças de diversos
tipos insidiosos. E as perguntas se sucedem, numa série infinita.
Uma
hora depois ela estava de véu e hábito, sentada no banco do carona
de um furgão preto que seguia para o sul, afastando-se do distrito
da escola, passando pelo monstro de concreto da via expressa e
chegando às ruas perdidas, um território de prédios queimados e
almas sem dono. Grace Fahey dirigia, uma jovem freira com trajes
seculares. Todas as freiras do convento usavam blusas e saias
normais, menos a irmã Edgar, que tinha permissão da ordem para
continuar usando os velhos trajes com nomes misteriosos, o véu, o
cinto, o hábito. Ela sabia que circulavam histórias sobre seu
passado, de que ela girava o rosário de contas grossas e acertava a
boca dos meninos com o crucifixo de ferro. Naquele tempo as coisas
eram mais simples. As roupas tinham várias camadas, a vida não.
Porém Edgar parara de bater nos alunos havia muitos anos, mesmo
antes de ficar velha demais para dar aula. Sabia que as irmãs
trocavam cochichos sobre a sua severidade, deliciadas, com um misto
de vergonha e admiração. Uma demonstração de poder tão
escancarada vinda de uma mulherzinha com físico de passarinho e
cheiro de sabão. Edgar parara de bater nas crianças quando o bairro
mudou e o rosto dos alunos ficou mais escuro. Toda aquela indignação
virtuosa desapareceu de sua alma. Como poderia bater numa criança
que não era como ela?
[…]
Don DeLillo, in O anjo Esmeralda
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