terça-feira, 13 de junho de 2023

O anjo Esmeralda

A velha freira levantou-se ao raiar do dia, sentindo dores em todas as juntas. Levantava-se ao raiar do dia desde seus tempos de postulante, rezava ajoelhada em soalhos de madeira de lei. Antes de mais nada levantou a persiana. Lá está o mundo, maçãzinhas verdes e doenças infecciosas. Faixas de luz atravessavam o quarto, banhando a textura da madeira num tom antigo e luminoso de ocre, um desenho e uma coloração tão profundamente prazerosos que ela foi obrigada a desviar a vista, para que não ficasse fascinada como uma menina. Ajoelhou-se nas dobras da camisola branca, tecido lavado incontáveis vezes, batido em água ensaboada, até ficar duro, cartilaginoso. E o corpo sob o pano, aquela coisa raquítica que ela arrastava pelo mundo afora, quase todo branco como giz, e mãos manchadas, de veias saltadas, e cabelos cortados rente, finos e grisalhos como o linho, e olhos azuis como o aço — houve tempo em que muitos meninos e meninas viam aqueles olhos nos sonhos. Ela fez o sinal da cruz, murmurando as palavras apropriadas. Amém, palavra antiga, remonta ao grego e ao hebraico, assim seja — tocando o peito para completar a cruz em forma de corpo. A mais breve das preces cotidianas, e no entanto garante três anos de indulgência, sete se você mergulhar a mão em água benta antes de marcar o corpo. A oração é uma estratégia prática, que permite ganhar uma vantagem temporária nos mercados de capitais do Pecado e da Remissão.
Fez sua oblação matinal e pôs-se de pé. Diante da pia esfregou as mãos repetidamente com um sabão pardo grosseiro. Como podem as mãos ficar limpas se o sabão é sujo? Essa era uma pergunta recorrente em toda a sua vida. Mas se você limpa o sabão com água sanitária, com que limpar a garrafa de água sanitária? Se você usar Ajax para limpar a garrafa, como limpar a caixa de Ajax? Os micróbios têm personalidade própria. Cada objeto contém ameaças de diversos tipos insidiosos. E as perguntas se sucedem, numa série infinita.
Uma hora depois ela estava de véu e hábito, sentada no banco do carona de um furgão preto que seguia para o sul, afastando-se do distrito da escola, passando pelo monstro de concreto da via expressa e chegando às ruas perdidas, um território de prédios queimados e almas sem dono. Grace Fahey dirigia, uma jovem freira com trajes seculares. Todas as freiras do convento usavam blusas e saias normais, menos a irmã Edgar, que tinha permissão da ordem para continuar usando os velhos trajes com nomes misteriosos, o véu, o cinto, o hábito. Ela sabia que circulavam histórias sobre seu passado, de que ela girava o rosário de contas grossas e acertava a boca dos meninos com o crucifixo de ferro. Naquele tempo as coisas eram mais simples. As roupas tinham várias camadas, a vida não. Porém Edgar parara de bater nos alunos havia muitos anos, mesmo antes de ficar velha demais para dar aula. Sabia que as irmãs trocavam cochichos sobre a sua severidade, deliciadas, com um misto de vergonha e admiração. Uma demonstração de poder tão escancarada vinda de uma mulherzinha com físico de passarinho e cheiro de sabão. Edgar parara de bater nas crianças quando o bairro mudou e o rosto dos alunos ficou mais escuro. Toda aquela indignação virtuosa desapareceu de sua alma. Como poderia bater numa criança que não era como ela?
[…]

Don DeLillo, in O anjo Esmeralda

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