Os
irmãos Roberto, que você conhece e admira, estudam a urbanização
de Cabo Frio. A cidade foi descoberta há alguns anos por moradores
do Rio, e de então para cá vive ameaçada de transformar-se numa
outra coisa qualquer, em que a terra vale ouro, mas a paisagem e a
vida não valem nada. Ainda agora, a nova tevê anuncia que suas
transmissões estão sendo perfeitamente captadas em Cabo Frio. A
existência de aparelhos dessa natureza pelo litoral fluminense afora
dá ideia do progresso que ruge por lá — e das providências que é
preciso tomar. O ideal seria que não se “urbanizasse” um
aglomerado urbano; que o deixássemos simplesmente viver, melhorando
apenas as condições locais, e não promovendo uma expansão que
cria condições novas e maiores problemas — mas já que a situação
existe, e precisa ser reparada, desejemos boa sorte aos simpáticos
irmãos Roberto, em seus desvelos cabistas.
Não
precisarei pedir-lhes carinho pelo Arraial do Cabo, vizinho à
cidade. Têm gosto bastante para defendê-lo, impedindo que ali
brotoeje alguma Palm Beach. Vive no Arraial uma população de
pescadores que conserva traços culturais característicos, ora
estudados por uma equipe de etnólogos do Museu Nacional. Encontro
por acaso d. Heloísa Alberto Torres, e essa ilustre amiga me diz
apressadamente: “Estou de passagem no Rio, e quero voltar logo para
a minha aldeia do Cabo, onde o trabalho é uma delícia”.
Convivendo com aquela gente simples, os “museus” (como lhes
chamam os nativos do Cabo) procedem a um inquérito sobre o
comportamento social dos pescadores, antes que o funcionamento de uma
fábrica de álcalis determine ali transformações profundas nos
costumes.
D.
Heloísa conduz esse inquérito com aquele “senso do humano” que,
segundo Métraux, deve assinalar o bom etnólogo, espécie de
cientista que finge não ter ciência, para surpreender a limpidez
das manifestações primitivas do homem. E uma de suas alegrias, no
Arraial, é o convívio com as crianças que, entre outras coisas,
lhe ministram noções de “etiqueta do Cabo”.
(A
etiqueta não é privilégio de camadas altamente civilizadas, que na
realidade a partilham com os povos mais primitivos; há apenas
diversidade formal de ritos, como assinalam os manuais de
antropologia cultural.)
Os
meninos de nove a doze anos, que d. Heloísa convida para sua casa,
recusam-se, polida mas terminantemente, a aceitar qualquer coisa à
mesa, em contraste com a gulodice dos meninos cariocas.
— Assim
eu fico desapontada com vocês — queixa-se a etnóloga. — Outro
dia fui à casa do Sebastião e lá aceitei um café. Será que fiz
mal?
Um
garoto responde, de cabeça baixa, sem inflexão:
— Fez
sim, senhora.
— Eu
não devia ter aceitado?
— Não
devia não senhora.
— Por
quê?
— Pra
mostrá que tem educação.
D.
Heloísa recolhe o ensinamento, mas deseja aprofundá-lo:
— Então
a gente nunca deve aceitar a comida que nos oferecem?
— Não
deve não senhora.
— Nunca,
nunca?
— Oferecendo
três vezes, pode aceitá.
— Ah!
Mas
a regra exige tato na aplicação:
— Tonico,
já convidei você três vezes a comer esse doce, e você está
quieto!
— Ah,
mas não é desse jeito não — esclarece Tonico.
— Bem,
vocês já me explicaram como é que uma pessoa mostra que tem
educação, na casa dos outros. Agora quero saber de que maneira
vocês, em casa, mostram a mesma coisa, diante dos seus pais.
— Com
o pai é assim. O pai zanga com a gente, xinga, pode até batê. A
gente não diz nada.
— E
vocês, meninos, uns com os outros, como é que mostram que têm
educação?
Eles
refletem longamente.
— Ah,
isso é muito difícil!
Por
favor, não me bulam no Arraial do Cabo, amigos.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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