domingo, 25 de junho de 2023

Me olvidé de vivir

(Cenário: Madri, julho, 39 graus, fim de tarde, o calor emana do asfalto, o protagonista tenta se recuperar de uma virose, mas a cada quatro minutos seu corpo grita que precisa de cama, banheiro e remédio para enjoo.)
(Pensamentos do protagonista enquanto caminha: vou pegar o metrô. Não, não vou dar conta. Aquilo vai chacoalhar e eu vou vomitar. Será possível que vou ter que pagar um táxi? Um táxi até o hotel vai dar mais de dez euros. Mas não vai ter jeito. Vou pegar um táxi.)
(Primeira tentativa de pegar um táxi, o taxista não viu; segunda tentativa de pegar um táxi, estava cheio; terceira tentativa de pegar um táxi, o taxista para.)
(Dentro do táxi: o taxista tinha seus 50 e muitos, um cabelo desgrenhado e uma camisa inexplicável. O homem estava comendo um tipo qualquer de salame, fatiado numa bandeja de isopor, cujo cheiro se espalhava pelo carro, a música estava alta, parecia ser Julio Iglesias.)
(Diálogo: buenas tardes, buenas tardes, por favor, voy a Chamartín, Avenida de América, derecha o izquierda? 41, no sé, bámos, si necessário yo travesso la calle, no se puede cruzar, lo bemos adelante, solo bámos porque no me siento muy bien, bámos.)
(Tipo de condução: aqueles motoristas que brecam de forma violenta, arremessando os passageiros para a frente, depois arrancam de forma violenta, fazendo com que os passageiros batam as costas no encosto do banco e assim, sucessivamente, como se fosse uma montanha-russa.)
(Trilha sonora: De tanto jugar con los sentimientos, viviendo de aplausos envueltos en sueños, de tanto gritar mis canciones al viento, ya no soy como ayer, ya no se lo que siento, ME OLVIDÉ DE VIVIR, ME OLVIDÉ DE VIVIR, ME OLVIDÉ DE VIVIR.)
(Contexto geral: muito calor, muito enjoo, muito cheiro de salame, condução aos trancos, Julio Iglesias gritando que esqueceu de viver, o protagonista suando frio, com a cabeça apoiada na janela aberta tentando fugir do cheiro, da música, precavendo-se de um vômito eventual.)
(Decurso de tempo: passam-se doze minutos do mais intenso desconforto, que pareceram cerca de quatro horas para o protagonista, que agarra-se à porta do carro, quase como uma lagartixa fixada à parede.)
(De tannnnnnto cantarle al amor y la vvvvvvida, me quede sin amor una noche de un díííía, de tanto jugar con quien yo más queríaaaaaa, perdí sin querer lo mejor que teníaaaaaa, ME OLVIDÉ DE VIVIIIIIR, ME OLVIDÉ DE VIVIIIIIIR, ME OLVIDÉ DE VIVIIIIIIR.)
(Diálogo: acá, acá está bien, pero estamos en 18, vas en 41, no no, está perfecto, voy a bajar, está muy bien, son 11,80 euros, acá, 15, perfecto, no preciso de cambio(!), gracias, gracias, hasta luego.)
(O protagonista desce do táxi, vai cambaleando até uma mureta, senta-se, coloca a cabeça entre as mãos, respira fundo, limpa o suor da testa, sente uma leve brisa, sente frio, sente calor, sente raiva, permanece na mureta por vinte minutos, depois caminha até o 41.)

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

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