sábado, 3 de junho de 2023

Hollywood | 16


Eu ainda tinha de escrever o argumento. Estava no andar de cima, diante da IBM. Sarah no quarto vizinho à direita. Jon lá embaixo, vendo TV.
Eu simplesmente me sentava ali. Já derrubara meia garrafa de vinho. Nunca tivera problemas antes. Durante décadas, jamais tivera o chamado bloqueio do escritor. Escrever sempre me fora fácil. As palavras rolavam, enquanto eu bebia e ouvia rádio.
Eu sabia que Jon estava à escuta, para ouvir o som da máquina de escrever. Precisava bater alguma coisa. Iniciei uma carta para um amigo que ensinava Inglês na Cal State Long Beach. Nós nos correspondíamos há algumas décadas.
Comecei:

Olá, Harry:
Como vai indo? Os bichinhos vão correndo bem. Tive uma ressaca braba outro dia, cheguei ao hipódromo pra segunda corrida, papei dez mangos numa pule de 10 por um. Não uso mais o Racing Form. Vejo todo mundo lendo-o e quase todo mundo perde. Tenho um novo sistema, claro, que não posso te contar. Sabe como é, se a literatura for pro beleléu, acho que posso me virar na pista. Merda. Vou te contar meu sistema. Por que não? Tá legal. Compro o jornal, qualquer jornal. Tento comprar um jornal diferente todo dia, só pra dar uma sacudida nos deuses. Depois, nesse jornal, escolho qualquer azarão. Aí relaciono os números dele em ordem. Digamos que a corrida seja de oito cavalos. No meu programa, eu marco na frente de cada cavalo a sua cotação. Exemplo:

cavalo 1.7
cavalo 2.3
cavalo 3.5
cavalo 4.1
cavalo 5.2
cavalo 6.4
cavalo 7.8
cavalo 8.6

O sistema? Bem, você pega a cotação do cavalo que vem abaixo do número do azarão. Se tem mais de uma, a gente pega a menor. Por exemplo, o cavalo 1, número 7, pagando 4 por 1, é melhor que o cavalo 6, número 4, pagando 3 por 1. Há uma exceção neste sistema. Se o cavalo 4 paga menos que o 1, ou seja, 4/5 ou menos, a gente salta a corrida se não há nada contra isso. O motivo é que as apostas apenas em favoritos sempre mostram uma perda.
Bolei esse sistema porque, quando estava no ginásio, fiz o R.O.T.C.[1], e a gente tinha de ler o Manual de Armas, e nesse livro grossão tinha um pouco sobre artilharia. Agora, lembre que isso foi em 1936, muito antes do radar e dos mecanismos de orientação. Na verdade, o livro provavelmente fora escrito para a Primeira Guerra Mundial, embora possa ter sido compilado um pouco depois, não tenho certeza. De qualquer modo, eles calculavam a queda da granada de artilharia por consenso. O Capitão perguntava: – Tudo bem, Larry, a que distância você acha que está o inimigo?
625 metros, senhor.
Mike?
400 metros, senhor.
Barney?
100 metros, senhor.
Slim?
800 metros, senhor.
Bill?
300 metros.
Aí o Capitão somava os metros e dividia pelo número dos caras consultados. Neste caso, a resposta seria 445 metros. Eles mandavam a granada e geralmente explodiam uma grande proporção do inimigo.
Décadas depois, eu estava sentado na pista um dia, e me veio à memória o Manual de Armas, e eu pensei: por que não aplicar o sistema da Artilharia aos cavalos? Esse sistema tem funcionado para mim a maior parte do tempo, mas o problema estava e está na natureza humana: a gente se chateia com a rotina e parte pra outra. Eu devo ter pelo menos 25 sistemas, todos baseados em algum tipo de lógica maluca. Não gosto de ficar parado numa coisa só.
Agora você pergunta: como diabos eu acertei numa aposta de 10 por 1 na segunda corrida naquele dia? Bem, é o seguinte, eu anoto o número do azarão antes dos scratches. Esse cavalo era número 16 antes dos scratches. Quando foi cotado a 10 por 1, curiosamente, foi a maior queda dos sorteios do azarão. Uma raridade, é verdade, mas lá estava. E quando essas coisas acontecem, fazem a gente se sentir muito estranho mesmo. Tipo talvez haja uma chance às vezes. Bem, espero que você esteja legal, e que suas estudantes não te deixem com muita tesão, ou talvez que deixem.
Escuta, é verdade que Celine e Hemingway morreram no mesmo dia?
Espero que você esteja bem...
Mantenha-os chorando,

seu
Henry Chinaski

Tirei o papel da máquina, dobrei-o, escrevi o endereço à mão no envelope, enfiei a carta, peguei um selo, e lá estava: meu trabalho daquela noite. Fiquei ali sentado, acabei o resto da garrafa de vinho, abri outra e desci.
Jon desligara a TV e estava lá sentado. Levei dois copos e me sentei junto dele.
A máquina parecia quente – disse Jon.
Jon, eu estava escrevendo uma carta.
Uma carta?
Tome um trago.
Tudo bem.
Tomamos um.
Jon, você me pagou pra escrever essa porra desse argumento...
Mas é claro....
Eu não posso escrever. Estou lá em cima tentando escrever o troço e você aqui embaixo esperando o som da máquina de escrever. É difícil...
Eu podia ir pra algum lugar à noite.
Não, escuta, você vai ter de se mudar! Não posso continuar desse jeito! Desculpe, cara, eu sou um cachorro, um mau caráter, um cachorro mau caráter! Os cachorros têm caráter? De qualquer modo, você vai ter de arranjar um lugar pra morar. Eu não posso escrever desse jeito, não sou homem bastante.
Eu compreendo.
Compreende?
É claro. Mas ia ter de mudar de qualquer jeito.
Quê?
François está voltando. Concluiu o negócio dele na França. Vamos encontrar um lugar, nós dois. Estou procurando. Na verdade, acho que achei um lugar hoje. Só não queria chatear você com tudo isso.
Mas vocês podem...?
A gente tem dinheiro. Estamos consolidando nossos recursos.
Nossa, então me perdoa por querer jogar você na rua?
Não tem nada pra perdoar. Eu só estava preocupado em como dizer a você que tinha de me mudar.
Você não enrolaria um velho bêbado, enrolaria?
Não. Mas você escreveu alguma coisa?
Muito pouco...
Posso ver?
Claro, chapa.
Subi, peguei as páginas, coloquei-as na mesa de café. Depois voltei lá pra cima, fui para o quarto.
Venha, Sarah, vamos comemorar!
Comemorar o quê?
Jon vai se mudar. Vou poder voltar a escrever!
Você ofendeu ele?
Acho que não. Sabe, François está voltando, os dois precisam encontrar um lugar.
Descemos. Sarah pegou outro copo. Jon estava mergulhado no argumento.
Riu quando me viu.
Essa coisa está sensacional, porra! Eu sabia que ia ser!
Você não enrolaria um velho bêbado, enrolaria?
Não. Nunca.
Sarah sentou-se e bebemos em silêncio.
Jon falou:
Usei o telefone de Wenner Zergog pra chamar François. Descobri que ele fodeu tudo. Entrou em cana. Recebeu o salário de alguns dias, depois foi em cana. A mesma velha história…
Que história? – perguntou Sarah.
Ele é um grande ator, mas de vez em quando pira. Esquece o argumento e a cena que devia fazer e faz a seu modo. É uma doença, eu acho. Deve ter feito isso de novo.
Que é que ele faz? – perguntei.
É sempre a mesma coisa. Vai bem por um tempo. Depois não segue a direção. Eu digo a ele: “Você vai até ali e diz sua fala.” Ele não vai. Vai pra outro lugar e diz outra fala. E eu pergunto a ele: “Por que você faz isso?”. E ele responde: “Não sei. Não faço ideia”. Uma vez a gente estava filmando e ele saiu, baixou as calças e se curvou. Não usava cueca.
Porra – eu disse.
Oh, ele diz coisas tipo “Não devemos apressar o processo natural da morte”. Ou: “Todas as vidas humanas me diminuem”.
Parece um cara do caralho.
E é...
Bebemos até as primeiras horas da manhã, bem avançado nas primeiras horas da manhã.
Acordei lá pelo meio-dia e desci e bati na porta de Jon. Não houve resposta. Abri a porta. Ele se fora. Deixara um bilhete.

Queridos Hank e Sarah:
Muito obrigado por todos os drinques e tudo. Eu me senti um hóspede privilegiado.
Hank, seu argumento é uma justificação de minha crença em você. É mais que isso. Por favor, continue.
Telefono breve pra você pra dizer onde estou e meu telefone.
Este é um dia maravilhoso. Aniversário de Mozart. Haverá música linda o dia todo…

seu
Jon

O bilhete me fez sentir muito mal e bem ao mesmo tempo, que era como eu me sentia a maior parte do tempo mesmo. Subi, mijei, escovei os dentes e voltei pra cama com Sarah.

Charles Bukowski, in Hollywood

Nenhum comentário:

Postar um comentário