Eu
ainda tinha de escrever o argumento. Estava no andar de cima, diante
da IBM. Sarah no quarto vizinho à direita. Jon lá embaixo, vendo
TV.
Eu
simplesmente me sentava ali. Já derrubara meia garrafa de vinho.
Nunca tivera problemas antes. Durante décadas, jamais tivera o
chamado bloqueio do escritor. Escrever sempre me fora fácil. As
palavras rolavam, enquanto eu bebia e ouvia rádio.
Eu
sabia que Jon estava à escuta, para ouvir o som da máquina de
escrever. Precisava bater alguma coisa. Iniciei uma carta para um
amigo que ensinava Inglês na Cal State Long Beach. Nós nos
correspondíamos há algumas décadas.
Comecei:
Olá,
Harry:
Como
vai indo? Os bichinhos vão correndo bem. Tive uma ressaca braba
outro dia, cheguei ao hipódromo pra segunda corrida, papei dez
mangos numa pule de 10 por um. Não uso mais o Racing Form. Vejo todo
mundo lendo-o e quase todo mundo perde. Tenho um novo sistema, claro,
que não posso te contar. Sabe como é, se a literatura for pro
beleléu, acho que posso me virar na pista. Merda. Vou te contar meu
sistema. Por que não? Tá legal. Compro o jornal, qualquer jornal.
Tento comprar um jornal diferente todo dia, só pra dar uma sacudida
nos deuses. Depois, nesse jornal, escolho qualquer azarão. Aí
relaciono os números dele em ordem. Digamos que a corrida seja de
oito cavalos. No meu programa, eu marco na frente de cada cavalo a
sua cotação. Exemplo:
cavalo
1.7
cavalo
2.3
cavalo
3.5
cavalo
4.1
cavalo
5.2
cavalo
6.4
cavalo
7.8
cavalo
8.6
O
sistema? Bem, você pega a cotação do cavalo que vem abaixo do
número do azarão. Se tem mais de uma, a gente pega a menor. Por
exemplo, o cavalo 1, número 7, pagando 4 por 1, é melhor que o
cavalo 6, número 4, pagando 3 por 1. Há uma exceção neste
sistema. Se o cavalo 4 paga menos que o 1, ou seja, 4/5 ou menos, a
gente salta a corrida se não há nada contra isso. O motivo é que
as apostas apenas em favoritos sempre mostram uma perda.
Bolei
esse sistema porque, quando estava no ginásio, fiz o R.O.T.C.[1], e
a gente tinha de ler o Manual de Armas, e nesse livro grossão tinha
um pouco sobre artilharia. Agora, lembre que isso foi em 1936, muito
antes do radar e dos mecanismos de orientação. Na verdade, o livro
provavelmente fora escrito para a Primeira Guerra Mundial, embora
possa ter sido compilado um pouco depois, não tenho certeza. De
qualquer modo, eles calculavam a queda da granada de artilharia por
consenso. O Capitão perguntava: – Tudo bem, Larry, a que distância
você acha que está o inimigo?
– 625
metros, senhor.
– Mike?
– 400
metros, senhor.
– Barney?
– 100
metros, senhor.
– Slim?
– 800
metros, senhor.
– Bill?
– 300
metros.
Aí
o Capitão somava os metros e dividia pelo número dos caras
consultados. Neste caso, a resposta seria 445 metros. Eles mandavam a
granada e geralmente explodiam uma grande proporção do inimigo.
Décadas
depois, eu estava sentado na pista um dia, e me veio à memória o
Manual de Armas, e eu pensei: por que não aplicar o sistema da
Artilharia aos cavalos? Esse sistema tem funcionado para mim a maior
parte do tempo, mas o problema estava e está na natureza humana: a
gente se chateia com a rotina e parte pra outra. Eu devo ter pelo
menos 25 sistemas, todos baseados em algum tipo de lógica maluca.
Não gosto de ficar parado numa coisa só.
Agora
você pergunta: como diabos eu acertei numa aposta de 10 por 1 na
segunda corrida naquele dia? Bem, é o seguinte, eu anoto o número
do azarão antes dos scratches. Esse cavalo era número 16 antes dos
scratches. Quando foi cotado a 10 por 1, curiosamente, foi a maior
queda dos sorteios do azarão. Uma raridade, é verdade, mas lá
estava. E quando essas coisas acontecem, fazem a gente se sentir
muito estranho mesmo. Tipo talvez haja uma chance às vezes. Bem,
espero que você esteja legal, e que suas estudantes não te deixem
com muita tesão, ou talvez que deixem.
Escuta,
é verdade que Celine e Hemingway morreram no mesmo dia?
Espero
que você esteja bem...
Mantenha-os
chorando,
seu
Henry
Chinaski
Tirei
o papel da máquina, dobrei-o, escrevi o endereço à mão no
envelope, enfiei a carta, peguei um selo, e lá estava: meu trabalho
daquela noite. Fiquei ali sentado, acabei o resto da garrafa de
vinho, abri outra e desci.
Jon
desligara a TV e estava lá sentado. Levei dois copos e me sentei
junto dele.
– A
máquina parecia quente – disse Jon.
– Jon,
eu estava escrevendo uma carta.
– Uma
carta?
– Tome
um trago.
– Tudo
bem.
Tomamos
um.
– Jon,
você me pagou pra escrever essa porra desse argumento...
– Mas
é claro....
– Eu
não posso escrever. Estou lá em cima tentando escrever o troço e
você aqui embaixo esperando o som da máquina de escrever. É
difícil...
– Eu
podia ir pra algum lugar à noite.
– Não,
escuta, você vai ter de se mudar! Não posso continuar desse jeito!
Desculpe, cara, eu sou um cachorro, um mau caráter, um cachorro mau
caráter! Os cachorros têm caráter? De qualquer modo, você vai ter
de arranjar um lugar pra morar. Eu não posso escrever desse jeito,
não sou homem bastante.
– Eu
compreendo.
– Compreende?
– É
claro. Mas ia ter de mudar de qualquer jeito.
– Quê?
– François
está voltando. Concluiu o negócio dele na França. Vamos encontrar
um lugar, nós dois. Estou procurando. Na verdade, acho que achei um
lugar hoje. Só não queria chatear você com tudo isso.
– Mas
vocês podem...?
– A
gente tem dinheiro. Estamos consolidando nossos recursos.
– Nossa,
então me perdoa por querer jogar você na rua?
– Não
tem nada pra perdoar. Eu só estava preocupado em como dizer a você
que tinha de me mudar.
– Você
não enrolaria um velho bêbado, enrolaria?
– Não.
Mas você escreveu alguma coisa?
– Muito
pouco...
– Posso
ver?
– Claro,
chapa.
Subi,
peguei as páginas, coloquei-as na mesa de café. Depois voltei lá
pra cima, fui para o quarto.
– Venha,
Sarah, vamos comemorar!
– Comemorar
o quê?
– Jon
vai se mudar. Vou poder voltar a escrever!
– Você
ofendeu ele?
– Acho
que não. Sabe, François está voltando, os dois precisam encontrar
um lugar.
Descemos.
Sarah pegou outro copo. Jon estava mergulhado no argumento.
Riu
quando me viu.
– Essa
coisa está sensacional, porra! Eu sabia que ia ser!
– Você
não enrolaria um velho bêbado, enrolaria?
– Não.
Nunca.
Sarah
sentou-se e bebemos em silêncio.
Jon
falou:
– Usei
o telefone de Wenner Zergog pra chamar François. Descobri que ele
fodeu tudo. Entrou em cana. Recebeu o salário de alguns dias, depois
foi em cana. A mesma velha história…
– Que
história? – perguntou Sarah.
– Ele
é um grande ator, mas de vez em quando pira. Esquece o argumento e a
cena que devia fazer e faz a seu modo. É uma doença, eu acho. Deve
ter feito isso de novo.
– Que
é que ele faz? – perguntei.
– É
sempre a mesma coisa. Vai bem por um tempo. Depois não segue a
direção. Eu digo a ele: “Você vai até ali e diz sua fala.”
Ele não vai. Vai pra outro lugar e diz outra fala. E eu pergunto a
ele: “Por que você faz isso?”. E ele responde: “Não sei. Não
faço ideia”. Uma vez a gente estava filmando e ele saiu, baixou as
calças e se curvou. Não usava cueca.
– Porra
– eu disse.
– Oh,
ele diz coisas tipo “Não devemos apressar o processo natural da
morte”. Ou: “Todas as vidas humanas me diminuem”.
– Parece
um cara do caralho.
– E
é...
Bebemos
até as primeiras horas da manhã, bem avançado nas primeiras horas
da manhã.
Acordei
lá pelo meio-dia e desci e bati na porta de Jon. Não houve
resposta. Abri a porta. Ele se fora. Deixara um bilhete.
Queridos
Hank e Sarah:
Muito
obrigado por todos os drinques e tudo. Eu me senti um hóspede
privilegiado.
Hank,
seu argumento é uma justificação de minha crença em você. É
mais que isso. Por favor, continue.
Telefono
breve pra você pra dizer onde estou e meu telefone.
Este
é um dia maravilhoso. Aniversário de Mozart. Haverá música linda
o dia todo…
seu
Jon
O
bilhete me fez sentir muito mal e bem ao mesmo tempo, que era como eu
me sentia a maior parte do tempo mesmo. Subi, mijei, escovei os
dentes e voltei pra cama com Sarah.
Charles Bukowski, in Hollywood
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