domingo, 4 de junho de 2023

Herança

Ilustração: Leya Mira Brander

Havia um homem. Sua mulher, as meninas. E, um dia, em seu trabalho de sempre, deu-se a notícia: ele chefiaria, por mais de um ano, a equipe numa outra cidade, longe, longe…
E lá estavam no aeroporto, de partida, sob o trovejar dos aviões, ele e os empregados, no burburinho da expectativa. As famílias se dispersavam nos corredores, hora de alargamentos. Sorria-se, chorava-se, todos presos à raridade do momento — e tão mal-aparelhados para vivê-lo!
Ao homem, o desafio inesperado. Podia ter dito, Não; mas era uma renda boa, para o futuro das meninas, um melhoramento na casa, os brincos que a mulher merecia. Nem partira e o coração já pedia o regresso, o voo pleno só com elas, companheira e filhas. A mulher nada dizia, seus olhos vermelhos já o haviam dito; as meninas davam adeus a ele; a maior, fingindo-se de forte, Tchau, pai; a menor, Tchau, papai, agarrava-se ao seu pescoço, Volta logo!; e a ele ocorriam somente as óbvias palavras, Obedeçam a sua mãe, as outras, singulares, não as encontrava, nem precisava, aquele aumento de alma era só para ser sentido.
De repente, às alturas, o azul macio acolhendo seu olhar. A claridade excessiva. Era dolorido aquele ir, a movediça solidão. Mas, aos poucos, o mundo se recompunha. O que vinha — ele via pela janela — era também a vida, na sua variedade: a terra ondulante em meio ao esgarçado das nuvens, com seus quadros de verde, o colear de um rio, um ajuntamento de casas, as paisagens se fazendo à sua vista — e, ali, mais à frente, de novo o verde dos campos, as cidades abertas aos ares, tudo tão quente na memória, entranhando-se.
Ele encolhido e o silêncio como brisa deslizando em seu rosto, enquanto lá fora as turbinas do avião rugiam. Engendrava na imaginação as coisas vindouras, que chegasse logo a manhã para iniciar a empreitada. Entre o fechar-abrir dos olhos as roças amarelas lá embaixo, os dentes sadios da filha maior, os bois minúsculos espetados nos campos, o sorriso da caçula, as grandes montanhas encolhidas, os óculos escuros da mulher, o sol a se derramar no horizonte — os bens coletivos, e os dele, pessoais, se alternando no esfumaçado ver.
Então uns cochilos, o serviço de bordo, a revista para se distrair; e, quando menos se deu por si, a chegada. Mas já?
Um salto e logo a noite na cidade estranha, a avenida lagunar de veículos, os prédios no escuro, o hotel desperto, de renovados hóspedes, de entra-e-sai, o seu vulto no quarto, o luminoso num acende-apaga, o sonho do dia seguinte.
E eis o dia seguinte, estalando de novo, o sol em sua hora suave, os empregados à espera das ordens, Vamos começar.
O homem diante das contrariedades: o terreno mal preparado, nada de nada à sua mão, o alvoroço na obra pelos desentendimentos, tudo novo — a começar pelo ar raro, difícil de sorver —, ele e os demais, desenraizados. Mas os minutos pingavam sem que se percebesse o rio que formariam ao fim do dia, quando chegavam à sua foz — e tudo o que haviam vivido estaria ali, minuto concentrado na lembrança. E, na lembrança, fluíam as palavras, Mais pra direita, Tragam a betoneira, Cuidado, e o que delas resultava: o mínimo progresso.
Era o que tinham. E iam tendo mais, a cada dia, até a manhã em que caminharam, surpresos, sobre os alicerces, a obra como uma criança a se erguer. A construção saltava do desenho para o espaço da verdade, pequena ainda, mas prometendo vastidão, e o homem na gerência dos problemas, os esperados, os imprevistos. Não estava pronto para o mundo que participava dele, obrigatório, além de sua missão: os funcionários reclamavam; faltavam capacetes adequados, conforto, comida boa. Vinham à sua porta desfiar as mazelas: Estrepei o pé num ferro; Sumiu dinheiro da minha carteira; Estão desperdiçando argamassa…
E ele, de nervos justos, sem milagres de pães ou de peixes para oferecer aos companheiros.
Valia o sacrifício? Não valia.
A família soterrada na memória. Recuperava-a, ao telefone: a mulher, Estamos com saudades; as meninas, a maior, Oi, pai; a menor, Oi, papai, quando você volta?.
E então, valia!
Assim ele seguiu — e também seus subordinados — em espremidos sofrimentos, em horas calmas que se esticavam como elásticos. As nuvens se moviam tão lentas, nem se percebia as suas novas configurações. Sob o sol, no canteiro da obra, em contínuo movimento, a orquestração, Essa viga pra lá; Falta cal aqui; Está no prumo?
E os dias se iam, quase sem se ver os avanços; mas estes se fazendo até serem vistos, de longe: a construção.
As agruras aguardavam à porta para entrar. E entraram. Primeiro a chuva, desenglobada dos céus, espalhando estragos. O grupo inteiro diante das paredes desfeitas, sem poder refazê-las. Depois, o desassossego de todos, em uníssono. E os contratempos vindo nas notícias: a caçula pegara catapora, andava chorosa, aulas perdidas, chamando por ele. A maior estava indo mal nas provas, o que era estranho, ela tão estudiosa; Está crescendo, a mulher sussurrara ao telefone, devia ser a idade, a ebulição dos hormônios.
A chuva, numa hora amainava; noutra, recrudescia, encharcando os desejos. O dia seco de contentamentos. À noite, telefonava para casa; a mulher, Tudo bem, ela tá melhor agora, e ele, esforçando-se para lhe extrair os detalhes, e a mulher, para escondê-los, dizia só o mínimo: Vou passar o telefone pra ela, e a voz triste da menor, Tô cansada de ficar na cama, papai!; e ele, Aguenta mais um pouco; Você vai me trazer um brinquedo?; Vou, o que você quer? E depois a maior, com medo de ser repreendida, Oi, pai!, mas ele, desarmado, só pedindo, Ajude sua mãe; e ela, Estou ajudando. Ao final das ligações, ele sufocado por aquele sentimento, de querê-las, ali da distância, mais do que junto delas, no frente a frente. E a promessa, para si mesmo, de dizer a cada uma, dali em diante, o que sentia, a sua verdade, na hora em que a vivesse.
Ficou naquele seu jeito: amargo com o céu, que só vertia chuva, impedindo o retorno às obras.
E, então, deu-se a estiagem. O sol que antes sufocava, agora era bem-vindo. Os trabalhadores em um contagioso reânimo, Já dá pra recomeçar! Vamos, vamos!, e todos indo. A construção a se reconstruir.
O homem se recolhia no quarto, o telefone trazendo a família de volta. Mais atento com a menor, Ela está bem?, e a mulher, Ainda não sarou, mas melhorou, e a maior?, Está estudando pra recuperação; as meias respostas, a mulher tão frágil, e ele, Logo, eu volto, é questão de dias, o triste de estar ausente quando ela mais precisava.
A obra se abria, pelo empenho dos trabalhadores. O edifício se arvorava mais e mais, multiplicando-se em paredes, agigantando-se e, de súbito, a vez do acabamento. A última demão!
Veio o foguetório de inauguração, veio o presidente da companhia, para o discurso, para o prêmio — a remuneração prometida, e paga, ali mesmo, para que pudessem gastá-la. E aí o homem foi às compras, em busca de lembranças para a família.
No dia seguinte, as etapas ao avesso: malas fechadas, chaves entregues, o hotel para trás, à frente a avenida lagunar ensolarada de automóveis, o aeroporto, a última chamada para o embarque. O homem de novo à janela, despegando-se da terra. As velocidades em desacordo. A do pensamento, ele já com mulher e filhas, nos abraços e constrangimentos. A do avião, na sua rapidez enganosa; ele a ver tudo devagarzinho, passando lá embaixo. A chegada demorando. Ainda não?
O pouso na pista. O coração a se debater no peito. Os empregados, ante à esteira giratória, à espera das malas, maior a bagagem dentro deles, já sem nuvens nos olhos. Procuravam os parentes, na força desse retorno, enquanto passavam pelo portão, desembarcados — nova hora de alargamentos. Uns sorrisos de cumplicidade, abraços e beijos efusivos na imaginação mais do que em presença. A vida, à margem, agora retomada…
E o homem, o mesmo, o de sempre, como se possível… A mulher e as filhas, os gestos contidos no início, e, aos poucos, a expansão. Como se em redescoberta, precisavam acomodar os sentimentos, cortar suas pontas, para o encaixe. Mediam-se em excessos, no cimentado instante, a se reconhecerem, lentamente.
Quando deu por si, o homem estava em casa. Abriu a mala. Venham, disse, Eu trouxe presentes… E, a cada uma, distribuiu a súbita alegria. A mulher e as filhas, no seu entorno, rasgavam euforicamente os papéis de embrulho. Ele as sobrevoou, no acelerado do olhar, com as lembranças nas mãos. O seu legado estava todo ali, naquele momento que usufruía junto delas.

João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda

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