segunda-feira, 26 de junho de 2023

Cartas para minha avó

Thulane nasceu em 8 de março de 2005, de parto normal. Foram nove meses tranquilos, mas você e minha mãe fizeram muita falta. Eu estava morando na casa dos meus sogros e a bebê parecia ter tanta pressa que quase nasceu em casa. Comecei a sentir as contrações, ligamos para meu médico e fomos para a Santa Casa. Logo que chegamos, minha bolsa estourou. Fui levada às pressas para a sala de parto e, após meia hora, ela nasceu.
Assim como você e minha mãe, não tive dificuldades para parir e amamentar. Tudo me pareceu muito tranquilo, vó. Tinha muito leite — igual minha mãe que, por conta da fartura, amamentou duas gêmeas, filhas de um casal vizinho, na ocasião do nascimento do Denis. Algumas vezes chorei por pensar que vocês não conheceriam a bisneta e neta e que Thulane tampouco conheceria o colo de Antônia e de Erani. Por sorte ela teve, e ainda tem, o colo da avó paterna.
Foi triste pensar que minha filha não se reconheceria nos olhos de vocês, que não seria benzida pela bisavó. Eu tinha medo de esquecer o que deveria ensiná-la, de ser sugada para uma vida sem rezas pra cobreiro nem álcool com arnica. Não me identificava com as mães do parquinho, e muitas me achavam louca quando eu perguntava se elas conheciam alguma benzedeira.
Fui tragada para a vida do Donald e da família dele, pois me sentia sem referências. Não que fosse ruim, mas me senti sem identidade, tratada como se minha família não existisse. E eu lutava para não esquecer de contar para Thulane tudo sobre a nossa família.
Quando ela completou dez meses, nós alugamos um apartamento pequeno no mesmo bairro dos meus sogros. Por mais que fosse bom ter apoio por perto, eu queria educar a minha filha com o pai, sem interferências diretas. E precisávamos de privacidade. Era um apartamento de um quarto, que coube à Thulane. Nós dormíamos na sala, em um sofá-cama. Achava importante que ela tivesse uma rotina, com hora pra dormir, comer e brincar. Ter um quarto só pra ela significava que isso podia ser feito.

Sabe, vó, eu sentia vergonha por não ter uma profissão. Quando levava Thulane ao pediatra, eu era a mãe, mãezinha. Pra família do Donald, eu era a mulher dele. Isso deveria bastar, eu pensava, mas não bastava, nem de longe. E eu me sentia ingrata por não me sentir completa, por desejar horas de sono sem interrupção, por querer sair para tomar cerveja com as minhas amigas. O primeiro ano de Thulane foi muito difícil pra mim. Eu fazia tudo o que era necessário, cuidava dela com todo o meu amor, mas não tinha ninguém pra me render enquanto eu desse um longo passeio sozinha.
Amava aquele ser humano pequeno, mas não me sentia inteira sendo alguém que precisava dormir pensando no que ia cozinhar no dia seguinte. Donald participava o máximo que podia, mas trabalhava fora dez horas por dia e eu precisava me ocupar dos afazeres domésticos. Passava o dia sozinha entre trocas de fraldas e a próxima amamentação. Mesmo infeliz, amamentei integralmente até os seis meses, preparei papinhas com legumes frescos, li sobre educação de filhos, mantive uma rotina bem organizada. Fiz o que pude.
Após muito procurar, encontrei uma benzedeira que atendia no Canal 5, no bairro da Aparecida, em Santos. Você ficará feliz em saber que levei Thulane algumas vezes lá e, em todas as vezes, eu sentia como se você estivesse ao meu lado. Eu sentia falta da minha mãe quando levava Thulane para tomar vacinas e me perguntava se saberia utilizar a técnica dela. Eu queria que ela estivesse se intrometendo na criação da minha filha do mesmo jeito que você se intrometeu na minha.
Eu gosto de mostrar fotos suas e da minha mãe pra ela e de contar histórias engraçadas sobre vocês, para que sempre estejam próximas de alguma maneira. Eu repudiava fortemente quando as pessoas diziam “Djamila não tem mãe, não tem avó”, porque eu tenho, sim, elas só não estão mais nesse plano. Dizer que eu não tenho avó é negar a sua influência na minha vida, o amor que me protegeu e curou, é negar parte de mim.
Há uma enorme diferença entre acostumar-se e aceitar. Passei a aceitar sua ausência física e carregar sua força, e falo de você com lágrimas de alegria e gratidão pela oportunidade do encontro, mas nunca me acostumei com sua ausência.
Quando Thulane tinha seis meses, ela teve uma infecção urinária. Eu a levei ao pediatra e ele receitou antibióticos. Ela teve uma reação forte, com vômitos e diarreias e eu não tive dúvidas: levei-a a uma homeopata, negra. Eu queria que minha filha tivesse contato com mulheres negras. Ela tinha na família do pai, claro, e na minha, mas eu sentia que era preciso mais. E foi ótimo, a médica era incrível e Thulane ficou sob os cuidados dela até os três anos, quando passei a trabalhar numa empresa portuária e o plano de saúde não cobria o consultório dela.
Frequentemente eu ia à casa das minhas amigas negras, em especial, à da minha grande amiga Flávia, que junto da mãe mimava muito a Thulane. Eu queria que minha filha fosse amada por mulheres como eu, que ela se sentisse preenchida de amor. Conviver com pessoas negras, num círculo de amor, era uma maneira de cuidar da saúde dela.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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