Thulane
nasceu em 8 de março de 2005, de parto normal. Foram nove meses
tranquilos, mas você e minha mãe fizeram muita falta. Eu estava
morando na casa dos meus sogros e a bebê parecia ter tanta pressa
que quase nasceu em casa. Comecei a sentir as contrações, ligamos
para meu médico e fomos para a Santa Casa. Logo que chegamos, minha
bolsa estourou. Fui levada às pressas para a sala de parto e, após
meia hora, ela nasceu.
Assim
como você e minha mãe, não tive dificuldades para parir e
amamentar. Tudo me pareceu muito tranquilo, vó. Tinha muito leite —
igual minha mãe que, por conta da fartura, amamentou duas gêmeas,
filhas de um casal vizinho, na ocasião do nascimento do Denis.
Algumas vezes chorei por pensar que vocês não conheceriam a bisneta
e neta e que Thulane tampouco conheceria o colo de Antônia e de
Erani. Por sorte ela teve, e ainda tem, o colo da avó paterna.
Foi
triste pensar que minha filha não se reconheceria nos olhos de
vocês, que não seria benzida pela bisavó. Eu tinha medo de
esquecer o que deveria ensiná-la, de ser sugada para uma vida sem
rezas pra cobreiro nem álcool com arnica. Não me identificava com
as mães do parquinho, e muitas me achavam louca quando eu perguntava
se elas conheciam alguma benzedeira.
Fui
tragada para a vida do Donald e da família dele, pois me sentia sem
referências. Não que fosse ruim, mas me senti sem identidade,
tratada como se minha família não existisse. E eu lutava para não
esquecer de contar para Thulane tudo sobre a nossa família.
Quando
ela completou dez meses, nós alugamos um apartamento pequeno no
mesmo bairro dos meus sogros. Por mais que fosse bom ter apoio por
perto, eu queria educar a minha filha com o pai, sem interferências
diretas. E precisávamos de privacidade. Era um apartamento de um
quarto, que coube à Thulane. Nós dormíamos na sala, em um
sofá-cama. Achava importante que ela tivesse uma rotina, com hora
pra dormir, comer e brincar. Ter um quarto só pra ela significava
que isso podia ser feito.
Sabe,
vó, eu sentia vergonha por não ter uma profissão. Quando levava
Thulane ao pediatra, eu era a mãe, mãezinha. Pra família do
Donald, eu era a mulher dele. Isso deveria bastar, eu pensava, mas
não bastava, nem de longe. E eu me sentia ingrata por não me sentir
completa, por desejar horas de sono sem interrupção, por querer
sair para tomar cerveja com as minhas amigas. O primeiro ano de
Thulane foi muito difícil pra mim. Eu fazia tudo o que era
necessário, cuidava dela com todo o meu amor, mas não tinha ninguém
pra me render enquanto eu desse um longo passeio sozinha.
Amava
aquele ser humano pequeno, mas não me sentia inteira sendo alguém
que precisava dormir pensando no que ia cozinhar no dia seguinte.
Donald participava o máximo que podia, mas trabalhava fora dez horas
por dia e eu precisava me ocupar dos afazeres domésticos. Passava o
dia sozinha entre trocas de fraldas e a próxima amamentação. Mesmo
infeliz, amamentei integralmente até os seis meses, preparei
papinhas com legumes frescos, li sobre educação de filhos, mantive
uma rotina bem organizada. Fiz o que pude.
Após
muito procurar, encontrei uma benzedeira que atendia no Canal 5, no
bairro da Aparecida, em Santos. Você ficará feliz em saber que
levei Thulane algumas vezes lá e, em todas as vezes, eu sentia como
se você estivesse ao meu lado. Eu sentia falta da minha mãe quando
levava Thulane para tomar vacinas e me perguntava se saberia utilizar
a técnica dela. Eu queria que ela estivesse se intrometendo na
criação da minha filha do mesmo jeito que você se intrometeu na
minha.
Eu
gosto de mostrar fotos suas e da minha mãe pra ela e de contar
histórias engraçadas sobre vocês, para que sempre estejam próximas
de alguma maneira. Eu repudiava fortemente quando as pessoas diziam
“Djamila não tem mãe, não tem avó”, porque eu tenho, sim,
elas só não estão mais nesse plano. Dizer que eu não tenho avó é
negar a sua influência na minha vida, o amor que me protegeu e
curou, é negar parte de mim.
Há
uma enorme diferença entre acostumar-se e aceitar. Passei a aceitar
sua ausência física e carregar sua força, e falo de você com
lágrimas de alegria e gratidão pela oportunidade do encontro, mas
nunca me acostumei com sua ausência.
Quando
Thulane tinha seis meses, ela teve uma infecção urinária. Eu a
levei ao pediatra e ele receitou antibióticos. Ela teve uma reação
forte, com vômitos e diarreias e eu não tive dúvidas: levei-a a
uma homeopata, negra. Eu queria que minha filha tivesse contato com
mulheres negras. Ela tinha na família do pai, claro, e na minha, mas
eu sentia que era preciso mais. E foi ótimo, a médica era incrível
e Thulane ficou sob os cuidados dela até os três anos, quando
passei a trabalhar numa empresa portuária e o plano de saúde não
cobria o consultório dela.
Frequentemente
eu ia à casa das minhas amigas negras, em especial, à da minha
grande amiga Flávia, que junto da mãe mimava muito a Thulane. Eu
queria que minha filha fosse amada por mulheres como eu, que ela se
sentisse preenchida de amor. Conviver com pessoas negras, num círculo
de amor, era uma maneira de cuidar da saúde dela.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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