domingo, 11 de junho de 2023

As rãs | 3



Professor, apressei-me em terminar a história de meu tio-avô só para poder contar com calma a de minha tia.
Ela nasceu em 13 de junho de 1937, no quinto dia do quinto mês lunar. Na infância, era chamada “Duanyang”, na idade adulta, Wan Coração. Esse nome, escolhido por meu tio-avô, respeitava a tradição local e ao mesmo tempo remetia a conotações mais profundas. Depois da morte do meu tio-avô, a bisavó adoeceu e faleceu em Pingdu. Por meio de agentes infiltrados, o destacamento militar de Jiaodong conseguiu resgatar minha tia-avó e minha tia do cativeiro. As duas foram levadas à Zona Liberada. Ali, minha tia passou a frequentar a Escola da Resistência Antijaponesa e minha tia-avó foi trabalhar como costureira de solas numa fábrica de calçados. Depois da Libertação, filhos de mártires como minha tia tinham inúmeras oportunidades de ascensão. Minha tia-avó, no entanto, jamais conseguiria viver longe da terra natal e minha tia não deixaria a mãe por nada. O diretor do distrito perguntou a minha tia que carreira ela gostaria de seguir. Ela respondeu que queria ter a mesma profissão do pai e, por isso, foi mandada para a Escola de Saúde Distrital. Formou-se com apenas dezesseis anos e começou a clinicar no posto de saúde da vila. Quando a Secretaria Distrital de Saúde abriu um curso de atualização em técnicas de parto, enviaram minha tia para participar. Foi então que se formou seu vínculo indissolúvel com essa profissão sagrada. Pelos seus cálculos, desde o primeiro parto em 4 de abril de 1953 até a Festa da Primavera do ano passado, ela trouxe ao mundo mais de dez mil crianças. Cada dois partos feitos em cooperação com outro profissional contam como um. Isso ela mesma disse ao senhor. Dez mil pode ser exagero, mas uns sete ou oito mil partos ela com certeza fez. Minha tia teve sete discípulas. Uma delas, a “Leoazinha”, de cabelo rebelde, nariz chato, boca reta e rosto cheio de espinhas, a idolatrava. Se minha tia lhe dissesse para matar alguém, ela pegaria a faca no mesmo instante e se lançaria à missão sem pensar duas vezes.
Como já disse, na primavera de 1953, as mulheres de nossa aldeia tinham muitas objeções ao parto moderno. E as “vovós” ainda andavam espalhando boatos maldosos. Minha tia contava então apenas dezessete anos de idade, mas, devido à extraordinária experiência que acumulara desde a infância, à qual se somava um histórico familiar que resplandecia como ouro, já era uma celebridade influente e respeitada no Nordeste de Gaomi. Naturalmente, ela também se destacava pela aparência. Esqueçamos a cabeça e o rosto, não mencionemos o nariz nem os olhos e falemos só dos dentes. Como vivíamos numa região de alto índice de flúor, todos os moradores locais, jovens e velhos, tinham dentes escuros. Quando criança, minha tia morou muito tempo na Zona Liberada de Jiaodong, bebeu água da montanha e aprendeu a escovar os dentes com o Exército da Oitava Rota. Talvez por isso seus dentes tenham escapado da contaminação. Minha tia tinha uns dentes brancos de fazer inveja a todos nós, especialmente às outras moças.
A primeira criança que minha tia trouxe ao mundo foi Chen Nariz. Jamais se conformou com isso. Dizia que o primeiro parto de sua vida deveria ter sido do filho de um revolucionário, nunca imaginou que seria de um filhote de latifundiário. Porém, como naquela época urgia mudar a situação e erradicar as técnicas obsoletas, ela nem teve tempo de pensar nessa questão.
Assim que soube que Ai Lian estava em trabalho de parto, minha tia pegou a bicicleta — coisa ainda rara naquela época — e saiu voando com a maleta de medicamentos nas costas. Em apenas dez minutos ela percorreu os seis quilômetros entre o posto de saúde e a aldeia. A mulher de Yuan Rosto, o secretário do Partido na aldeia, estava lavando roupa na beira do rio e viu minha tia passar a toda velocidade pela ponte estreita de pedra. Um cão que brincava ali pulou no rio, apavorado. Quando minha tia, com a maleta na mão, irrompeu na casa de Ai Lian, aquela construção de dois cômodos, a “vovó” Tian Guihua já estava lá. Era uma velha de cara chupada que na época passava dos sessenta anos. Agora já voltou ao pó, que descanse em paz! Tian Guihua era adepta da escola intervencionista. Assim que entrou pela porta, minha tia a viu montada sobre Ai Lian, comprimindo com força seu ventre avolumado. A velha sofria de bronquite crônica. Sua respiração chiada, misturada aos urros de porco agonizante vindos de Ai Lian, criava uma atmosfera de bravura trágica. Ajoelhado num canto, o latifundiário Chen Testa murmurava algo incompreensível enquanto batia a cabeça repetidas vezes contra a parede, parecia um besouro.
Fui muitas vezes à casa de Chen Nariz e conheço bem sua configuração. A construção de dois cômodos era voltada para o poente, as águas do telhado eram curtas e baixas, os quartos, pequenos. O fogão ficava de frente para a porta. Logo atrás do fogão, havia uma meia-parede de dois pés de altura e, atrás desta, um kang feito de tijolos de barro. Assim que entrou pela porta, minha tia viu o que se passava ali e foi tomada de uma raiva incontrolável. Ela mesma admite que perdeu as estribeiras. Largou a maleta e atirou-se como uma flecha sobre a velha, agarrou-a pelo braço e pelo ombro e puxou-a para trás com tanta força que a parteira caiu do kang, bateu com a cabeça no penico e espalhou urina pelo chão. O fedor impregnou a casa. Um filete de sangue escuro descia do corte na cabeça dela. Não era um ferimento grave, mas mesmo assim a velha abriu um berreiro descomunal. Qualquer um que ouvisse aquela gritaria entraria em pânico, menos minha tia, que já tinha visto de tudo e não se deixou impressionar.
A tia ficou em pé sobre o kang, calçou as luvas de borracha e disse a Ai Lian, com ar grave: “Pare com essa choradeira, não adianta nada. Se quiser viver, terá de obedecer às minhas ordens e fazer exatamente o que eu mandar”. Ela conseguiu calar Ai Lian, que obviamente conhecia seu brilhante histórico familiar e sua lendária experiência. “Você é uma gestante de idade avançada”, explicou-lhe minha tia, “o feto não está na posição correta. O normal é sair primeiro a cabeça, mas no seu caso está saindo primeiro a mão, a cabeça continua lá dentro.” Minha tia ainda viria a fazer muita troça de Chen Nariz, perguntando o que é que ele queria do mundo ao estender a mão para fora, antes mesmo da cabeça. “Queria comida, ué!”, respondia Chen Nariz.
Embora fosse o primeiro parto que fazia, minha tia conseguiu manter a cabeça fria. Sem entrar em pânico, soube aplicar o máximo de conhecimento dominando apenas metade da técnica. Era uma obstetra talentosa, mostrava tino e jeito no exercício da profissão. As mulheres que a viram em ação — seja como espectadoras, seja como pacientes — tinham profunda admiração por ela. Minha mãe costumava dizer: “As mãos de sua tia são diferentes. As mãos de pessoas comuns às vezes estão frias, às vezes quentes, às vezes duras, às vezes suadas… as da sua tia, em todas as estações do ano, estão frescas e macias, mas não macias de um jeito frouxo e sim… como é que se diz mesmo?”. Meu irmão que tinha estudo ajudava: “Como uma agulha envolta em algodão, a firmeza dentro da suavidade?”. Minha mãe dizia: “Isso mesmo. O frescor da sua mão não era uma frieza de gelo, mas sim um…”. O irmão letrado socorria novamente: “Um frescor imbuído de calor, um frescor de seda, de jade”. “Isso mesmo, isso mesmo”, dizia minha mãe, “o simples toque de sua mão aliviava a dor das pacientes.” Minha tia era praticamente idolatrada pelas mulheres da aldeia.
Ai Lian era uma mulher de sorte, mas antes de tudo era uma mulher inteligente. Assim que a mão da minha tia tocou sua barriga, ela recobrou as forças. Depois ainda diria a quem quisesse ouvir que minha tia tinha jeito de general. Em comparação com ela, a velha que chorava estendida no chão ao pé do penico parecia um palhaço. Ao notar a atitude científica e o comportamento digno da minha tia, Ai Lian se encheu de coragem, até a dor de entranhas se rasgando pareceu diminuir. Parou de chorar, obedeceu às ordens da médica, acompanhou seus movimentos e deu à luz um bebê narigudo.
Chen Nariz não respirou logo ao nascer; minha tia precisou virá-lo de cabeça para baixo e lhe dar umas palmadas nas costas e no peito até ele soltar um choro que parecia um miado de gato. “Como pode este menino ter um nariz tão grande?!”, exclamou minha tia. “Parece até americano! Estava feliz como um artesão que acaba de concluir sua primeira obra. Um sorriso luminoso abriu-se no rosto exausto da mãe. Minha tia tinha uma consciência de classe muito forte, mas, no momento em que retirou o bebê do canal de parto, esqueceu as classes e a luta de classes e experimentou uma felicidade que era pura e simplesmente um sentimento humano.
Quando entendeu que era pai de um menino, Chen Testa levantou-se do canto. Sem saber o que fazer, dava voltas no espaço exíguo ao lado do fogão. Duas lágrimas espessas escorreram de seus olhos encovados. Estava tomado de um êxtase que não conseguia expressar em palavras. Queria falar um monte de coisas, mas não se atrevia, falaria de ancestrais, de continuidade do clã e de tudo o que, vindo da boca de alguém como ele, soaria como ofensa grave.
Uma criança com um nariz grande assim bem que podia ser chamada de Nariz!”, disse minha tia.
Ela falou de brincadeira, mas Chen Testa acatou como se fosse um édito imperial: “Obrigado, muito obrigado pela escolha do nome!”, dizia ele entre uma reverência e outra: “Nariz está bem, vai se chamar Chen Nariz”.
Em meio à profusão de agradecimentos de Chen Testa e à enxurrada de lágrimas de Ai Lian, minha tia arrumou sua maleta e preparou-se para sair. Nesse instante, viu Tian Guihua encostada à parede, de frente para o penico quebrado, parecia dormir. Minha tia não sabia desde quando ela estava naquela posição, e não se lembrava muito bem em que momento cessara aquele choro medonho. Chegou a pensar que estava morta, mas, assim que percebeu um brilho esverdeado no fundo de seus olhos de gato, soube que a velha ainda vivia. Uma onda de ira varreu o coração da minha tia. “O que é que ainda está fazendo aqui?”, perguntou. “Fiz metade do trabalho”, respondeu a velha, “você fez a outra metade; de costume só peço uma toalha e cinco ovos, mas, como quebrei a cabeça por sua causa, e se não a denuncio é só em consideração a sua mãe, você me deve uma toalha para o curativo e cinco ovos para restaurar minha saúde.” Só então minha tia se deu conta de que a “vovó” queria cobrar seu pagamento. Ficou furiosa. “Você não tem vergonha? Não tem um pingo de vergonha?” Minha tia rosnava. “Que metade do trabalho que nada! Se te deixasse fazer o trabalho todo, teríamos dois cadáveres aqui. Sua bruxa velha, você acha que a vagina de uma mulher é como um cu de galinha? É só apertar com força que o ovo pula para fora? Chama isso de parto? Não é parto, não, isso é assassinato! E ainda quer me denunciar?” Minha tia acertou um chute no queixo da velha. “E ainda quer toalha, quer ovo!” Deu-lhe mais um chute, dessa vez na bunda. Depois, segurando a maleta numa das mãos, agarrou a velha pelo coque e arrastou-a até o pátio. Chen Testa foi atrás para apartar, minha tia vociferou: “Volte já para dentro! Vá cuidar da sua mulher!”.
Era a primeira vez na vida que ela batia em alguém. Jamais imaginara ser tão boa nisso. Minha tia mirou mais uma vez o traseiro da velha e desferiu outro chute. Tian Guihua rolou por terra, ergueu-se, sentou-se e pôs-se a bater com as mãos no chão, gritando aos quatro ventos: “Socorro! Ela vai me matar! A filha bandida de Wan Seis Vísceras vai me matar…”.
Caía a tarde, era a hora do sol poente, do lusco-fusco, da brisa amena. A maioria dos moradores da aldeia, com a tigela nas mãos, jantava em pé na frente de suas casas. Ouvindo aquele pampeiro, as pessoas logo acorreram ao local. Também acudiram o secretário do Partido, Yuan Rosto, e o chefe da brigada de produção, Lü Dente, que era parente distante de Tian Guihua e por isso mesmo tinha sua imparcialidade comprometida. Foi ele que interveio: “Wan Coração, uma moça jovem como você não tem vergonha de bater numa senhora idosa?”.
E quem era ele para falar?”, minha tia nos dizia. “Era um animal que vivia batendo na mulher e ainda queria me dar lição de moral?”
Que senhora que nada! Isso aí é um demônio, uma peste!”, retrucou minha tia. “Pergunte a ela o que ela fez!”
Quantos morreram em suas mãos? Se eu tivesse uma arma, estourava seus miolos agora mesmo!” Estendeu o braço direito com o dedo indicador, imitando o cano de uma arma apontada para a cabeça da parteira. Ao falar, minha tia usava expressões de gente velha, apesar de ser uma mocinha de dezessete anos, o que fez muita gente rir.
Lü Dente ainda queria argumentar em favor de Tian Guihua, mas o secretário Yuan falou: “A dra. Wan tem razão, é preciso punir com rigor essas bruxas que brincam com vidas humanas! Tian Guihua, pare de se fazer de vítima! A surra que levou ainda foi pouca, você merecia ir para a cadeia! De agora em diante, quem for ter filho deverá procurar a dra. Wan! Tian Guihua, se ousar fazer mais um parto, eu arranco essas suas patas de cadela!”.
Segundo minha tia, Yuan Rosto podia não ter cultura, mas era um homem de visão e sabia agir com justiça, era um bom dirigente.

Mo Yan, in As rãs

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