segunda-feira, 5 de junho de 2023

As rãs | 2


Por que é que Chen Nariz tinha um nariz tão grande e tão diferente? Isso era uma coisa que só a mãe dele saberia explicar.
O pai de Chen Nariz, de nome Chen Testa, também chamado “Fronte”, era o único homem da aldeia com duas esposas. Lia bem e vinha de uma família que, antes da Libertação, possuía muitas terras, uma destilaria de aguardente e um comércio em Harbin. Sua primeira esposa, que era gente da nossa aldeia, deu a ele quatro meninas. Chen Testa fugiu antes da Libertação e, por volta de 1951, Yuan Rosto foi com dois milicianos até o Nordeste para trazê-lo de volta. Quando fugiu, Chen Testa foi sozinho, deixou para trás a esposa e as filhas. Quando voltou, veio com uma mulher loura, de olhos azuis, que aparentava trinta e poucos anos, chamada Ai Lian. Ela trazia no colo um cachorro malhado. Como seu primeiro casamento datava de antes da Libertação, Chen Testa ficou com duas esposas legítimas. Essa situação incomodava os solteirões miseráveis da aldeia, que sugeriam — meio de brincadeira, meio a sério — liberar uma das esposas para uso deles. Chen Testa fazia uma careta, não dava para saber se de riso ou de choro. De início, as duas esposas moravam juntas. Algum tempo depois, por causa do escarcéu que aprontavam com suas brigas, Yuan Rosto permitiu que a segunda esposa se instalasse numa ala de dois cômodos anexa à escola. A construção onde funcionava a escola tinha sido a destilaria dos Chen, a ala anexa também era parte da propriedade da família. Chen Testa fez um pacto com as mulheres para poder dormir alternadamente nas duas casas. O cachorro que a loura trouxe de Harbin morreu numa briga com os cães da aldeia. Ai Lian, grávida, enterrou o animal e, logo em seguida, teve Chen Nariz. Diziam que esse menino era a reencarnação do cachorro malhado. Talvez por isso tivesse um olfato tão apurado. Naquela época, minha tia já tinha feito o curso de atualização em técnica obstetrícia na sede do distrito para se tornar a parteira da aldeia em tempo integral. Corria o ano de 1953.
Naquele ano, os aldeões ainda eram muito resistentes à nova técnica, por causa dos rumores que as “vovós” parteiras andavam espalhando na surdina. Segundo elas, a nova técnica causava doença mental nos bebês. E por que diziam essas coisas? Porque, assim que se popularizasse, a novidade acabaria com seu ganha-pão. Quando faziam um parto, podiam se fartar de comer na casa da parturiente e ainda ganhavam, como gratificação, duas toalhas e dez ovos. Minha tia nutria pelas tais “vovós” um ódio de ranger os dentes. Dizia ter perdido a conta de quantas mães e bebês morreram nas mãos daquelas bruxas velhas. A descrição de minha tia gravou em nós uma imagem medonha. As “vovós” quase sempre deixavam as unhas bem compridas, os olhos faiscavam um brilho esverdeado de fogo-fátuo e a boca exalava um bafo fedorento. Minha tia contava que elas pressionavam a barriga da mulher com um pau de macarrão e tapavam-lhe a boca com um trapo, como se o bebê fosse sair por ali. Não tinham nenhum conhecimento de anatomia e desconheciam a fisiologia feminina. Em caso de dificuldade, as “vovós” introduziam a mão no canal de parto e puxavam com toda a força, chegavam a arrancar o feto junto com o útero. Por muito tempo, se me perguntassem que tipo de malfeitor eu mandaria para o paredão de fuzilamento, diria sem pestanejar: a “vovó” parteira. Só depois entendi o exagero da minha tia. Certamente existiram “vovós” bárbaras e ignorantes, mas também é certo que existiram outras mais experientes, que conheciam na própria carne os segredos do corpo feminino. Na verdade, minha avó também foi parteira. Ela era adepta da não intervenção. Acreditava que tudo acontece a seu tempo, abóbora madura cai sozinha. No seu entender, o papel da boa parteira era encorajar a mãe, esperar o bebê sair, cortar o cordão umbilical, passar cal na ferida, amarrar num pano e pronto. Mas minha avó não fazia muito sucesso como parteira. Deviam achá-la preguiçosa. Gostavam mesmo era daquelas “vovós” que metiam os pés pelas mãos, corriam pela casa aos berros e suavam como se elas é que estivessem parindo.
Minha tia era filha do meu tio-avô paterno. Ele foi médico do Exército da Oitava Rota. Era formado em medicina tradicional, mas, depois que entrou para o Exército, aprendeu medicina ocidental com Norman Bethune. Quando o dr. Bethune faleceu, meu tio-avô ficou tão triste que adoeceu gravemente, parecia à beira da morte, sentia saudades de casa e da mãe, dizia ele. Mandaram-no voltar para se tratar. Quando chegou em casa, minha bisavó ainda era viva. Assim que entrou pela porta, sentiu o cheiro de sopa de feijão-verde. Minha bisavó, mais que depressa, pegou uma panela e acendeu o fogo para esquentar a sopa, a nora fez menção de ajudar, mas minha bisavó a empurrou para o lado com a bengala. Sentado no batente, o tio-avô esperava ansioso. Minha tia conta que se lembra de ficar olhando para o pai sem dizer uma sílaba, escondida atrás da mãe. Desde pequena ela ouvia a mãe e a avó falarem do pai. Mas quando finalmente o viu, pareceu-lhe um completo estranho. Sentado na soleira, ele tinha o rosto pálido, o cabelo comprido e piolhos andando pelo pescoço. Vestia uma jaqueta tão puída que o enchimento de algodão escapava pelos furos. A avó da minha tia, ou seja, minha bisavó, abanava o fogo e chorava. A comida ficou pronta. Sem conseguir esperar mais, meu tio-avô segurou a tigela de sopa escaldante com as duas mãos e quis beber tudo de uma vez. Minha bisavó disse: “Filho, não se afobe, tem mais na panela”. Minha tia conta que as mãos dele tremiam. Tão logo terminou a primeira tigela, serviu-se outra vez. Quando terminou a segunda tigela, já não tremia. O suor corria-lhe pelas têmporas. Aos poucos, os olhos recobraram a vivacidade e o rosto corou. A barriga produzia um barulho estranho, como se uma pedra de moinho girasse ali dentro. Um par de horas mais tarde, ainda segundo diz minha tia, ele correu para o banheiro com uma diarreia tão forte que parecia que o intestino ia sair também. Depois foi melhorando e, passados dois meses, tinha recobrado o vigor, estava ligeiro como um dragão e esperto como um tigre.
Disse à minha tia que eu havia lido uma história parecida na Crônica indiscreta dos mandarins. “Que livro é esse?”, ela me perguntou. É uma obra-prima da literatura clássica, respondi. Ela me olhou com firmeza e disse: “Se até uma obra clássica registra um caso desses, por que você ainda duvida?!”.
Depois que se recuperou, meu tio-avô queria voltar aos montes Taihang para se reunir ao Exército. Minha bisavó interveio: “Filho, já não me resta muito tempo de vida, deixe para ir depois de me ver bem sepultada”. Como minha tia-avó tinha vergonha de falar, encarregou a filha de dizer: “Pai, minha mãe falou que se você quiser ir embora, pode ir, mas antes tem que me dar um irmãozinho”.
Nessa época, veio gente do distrito militar de Jiaodong chamar meu tio-avô para se juntar a eles. Como discípulo de Norman Bethune, meu tio-avô tinha muita fama. “Pertenço à região militar de Jinchaji”, disse ele. Os de Jiaodong retrucaram: “Somos todos comunistas, que diferença faz? Precisamos de uma pessoa como você por aqui, queremos que fique de qualquer maneira”. O comandante Xu acrescentou: “Se recusar o tapete vermelho, irá amarrado mesmo. Mas como não batemos sem assoprar, depois ganhará um banquete!”. E assim meu tio-avô ficou em Jiaodong, onde fundou o Hospital Secreto Xihai do Exército da Oitava Rota.
Esse hospital era tão secreto que funcionava no subterrâneo. Eram várias salas interligadas por túneis, tinha quartos para assepsia, tratamento, cirurgia, enfermaria. Tudo isso se conserva até hoje, num local próximo à cidade de Laizhou. Uma senhora de oitenta e oito anos, Wang Xiulan, foi enfermeira quando meu tio-avô trabalhava lá e ainda está viva. A saída de muitas enfermarias dava em poços artesianos. Certa vez, uma moça foi ao poço buscar água, mas o balde, estranhamente, ficou preso. A moça olhou para baixo e, num buraco na parede do poço, um jovem soldado ferido lhe fazia uma careta engraçada.
A alta competência do meu tio-avô na área médica logo se tornou conhecida por toda Jiaodong. Foi ele que retirou a bala alojada sob a escápula do comandante Xu e salvou a mulher e o filho do comissário Li num parto difícil. Até mesmo o comandante Sugitani, que chefiou as tropas japonesas em Pingdu, já tinha ouvido falar nele. Sugitani saiu com os soldados para uma missão de “limpeza”, mas o cavalo importado que montava se feriu numa mina terrestre. O comandante japonês abandonou a montaria e fugiu. Meu tio-avô fez uma cirurgia no animal, que se recuperou bem e virou montaria do comandante Xia. Com saudades do antigo dono, o cavalo partiu a corda com os dentes e voltou para Pingdu. Ao ver seu precioso animal de volta, o comandante Sugitani ficou muito surpreso e mandou seus informantes investigarem. Assim, o japonês ficou sabendo que o Exército da Oitava Rota construíra um hospital secreto debaixo do seu bigode e que o diretor desse hospital era Wan Seis Vísceras, o excelente médico que salvara seu cavalo da morte. O comandante Sugitani também tinha estudado medicina. Atraído pela afinidade, queria que meu tio-avô fosse trabalhar com ele. Para isso, Sugitani pensou num ardil que tinha aprendido no Romance dos três reinos: mandaria sequestrar minha bisavó, minha tia-avó e minha tia na aldeia, levaria as três como reféns para Pingdu e depois enviaria uma carta a meu tio-avô.
Meu tio-avô era um comunista convicto. Quando terminou de ler a mensagem de Sugitani, amassou a carta e jogou-a no lixo. Men, o comissário do hospital, pegou a carta do lixo e mandou-a para o distrito militar. O comandante Xu e o comissário Li escreveram uma resposta conjunta a Sugitani, rechaçando sua falta de dignidade. Se ele ousasse tocar num fio de cabelo das três familiares do dr. Wan, escreveram eles, todo o destacamento de Jiaodong cairia sobre Pingdu.
Minha tia conta que passou três meses com minha tia-avó e minha bisavó em Pingdu. Tinham o que comer e o que beber, não foram maltratadas. O comandante Sugitani era um jovem de belas feições, usava óculos de armação branca, tinha um bigode fino, demonstrava grande polidez e era fluente em chinês. Chamava minha bisavó de senhora, minha tia-avó de cunhada e minha tia de sobrinha. Minha tia não teve má impressão dele. Naturalmente, essas coisas ela só contava em particular, para pessoas da família. Em público era diferente, dizia que sofreram horrores nas mãos dos japoneses, que foram torturadas no interrogatório, mas não cederam.
Professor, eu poderia continuar a história do meu tio-avô por mais três dias e três noites e ainda assim não conseguiria terminá-la, vamos deixar essa conversa para outro dia. Só preciso contar como meu tio-avô morreu. Minha tia diz que ele morreu envenenado por gás letal jogado pelo inimigo enquanto fazia uma cirurgia no subterrâneo. O necrológio do Comitê Consultivo Político Distrital também diz a mesma coisa. Mas tem gente que conta, à boca miúda, que meu tio-avô amarrou oito granadas na cintura, montou um burro e foi sozinho adentrar os portões de Pingdu, com a intenção de resgatar, num ato heroico, a mulher, a filha e a mãe. Infelizmente, ele pisou por distração numa mina plantada pelos milicianos locais. Quem espalhava essa história era Xiao Lábio Superior, que tinha sido padioleiro no Hospital Xihai. Era um sujeito esquisito. Depois da Libertação, virou zelador do armazém de grãos da comuna e gozou de uma fama momentânea ao inventar um raticida especial. Quando o nome dele saiu no jornal, trocaram o ideograma de “lábio” por “puro”. Depois, descobriram que o principal componente do tal raticida especial era um agrotóxico fortíssimo, de uso proibido pelo governo. Xiao Lábio Superior odiava minha tia, por isso não dá para acreditar no que ele diz. “Seu tio-avô”, ele me contou, “desobedecendo a ordens superiores, abandonou os pacientes no hospital e decidiu bancar o herói. Antes de sair, enxugou duas jarras de aguardente para tomar coragem. Bebeu até ficar tonto. Saiu trocando as pernas e pisou numa mina instalada por sua própria gente.” Xiao Lábio Superior mostrava os dentes amarelos, deliciando-se com a desgraça alheia: “Seu tio-avô e o burro voaram pelos ares, recolheram os pedaços deles em dois balaios. Ali dentro tinha braço de gente junto com casco de burro. Despejaram tudo misturado assim mesmo no caixão. Mas era um caixão dos bons, confiscado de uma família rica da vila”. Contei essa história a minha tia. Ela arregalou seus olhos amendoados e rosnou: “Um dia ainda vou capar essa besta com minhas próprias mãos”.
Filho”, disse-me num tom firme, “você pode desconfiar de tudo, menos de uma coisa: seu tio-avô foi um herói da resistência aos japoneses, um mártir da revolução. Está sepultado no Cemitério dos Heróis, seus pertences estão expostos no Museu dos Mártires: o bisturi que usava nas cirurgias e um par de botas de couro da Inglaterra, que ganhou do próprio dr. Bethune no leito de morte.

Mo Yan, in As rãs

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