“Foi
ali que mataram o filho da rainha da Inglaterra.”
“Posso
tirar uma foto sua?”
“Sim,
general.”
Tirei
a câmera da pasta e bati uma foto de dona Romilda.
“O
senhor vai ao churrasco que vou oferecer no fim de semana?”
“Se
puder, vou.”
“Quantos
bois devo matar? Dois?”
“Vai
muita gente?”
“Umas
duzentas pessoas.”
“Creio
que dois é o suficiente.”
“O
senhor está examinando o problema da minha casa na São Clemente? A
casa é minha e eles não querem sair de lá.”
“Estou
vendo. Tenho que ir.”
“Sábado.
Na fazenda. Não é nesse, no outro sábado.”
“Eu
irei, dona Romilda.”
Entrei
no prédio do meu escritório, peguei o elevador.
Cristina
estava me esperando.
“Copia
esta foto, por favor.”
“O
senhor está gostando dessa digital?”
“É
boa, pequena, fácil de carregar. Mas não vou me desfazer da minha
Leica do tempo do Onça. Nem da Pentax.”
“Tem
muita coisa na sua agenda”, disse Cristina, ao sair da minha sala.
Agenda.
Coisas pendentes. A agenda sempre me deixava abatido, como se eu
começasse o dia fazendo uma hemodiálise. Uma maneira de aliviar
esse sofrimento era abrir a gaveta e consultar o meu extrato
bancário. Dava um certo alívio ver meus fundos de investimento
aumentando todo mês. O problema é que eu não sabia o que fazer com
aquele dinheiro todo guardado num banco. Podia comprar imóveis,
ações, ouro, mandar o dinheiro para um paraíso fiscal, mas isso
iria criar mais agendas. Não aguentava outra agenda.
“Quer
marcar a reunião com a Ceteagá? É a única urgente”, Cristina
perguntou, pelo interfone.
“Não,
vê se eles podem amanhã. Ou outro dia.”
Eu
precisava de umas férias.
Depois
do almoço, Cristina entrou na minha sala.
“A
foto está pronta, imprimi na laser nova. Ficou muito boa. É a dona
Romilda, não é?”
“Você
a conhece?”
“Ela
me alertou outro dia para não ir ao Wagner. Cuidado, eles fazem
tráfico de órgãos lá. Agora evito que a dona Romilda me veja
entrando no Wagner, se ele souber o que ela anda dizendo vai ficar
furioso, o senhor sabe como são os cabeleireiros. Mas eu gosto da
dona Romilda, ela é a única pessoa bem-humorada que conheço.
Sempre que me vê diz, bom dia, princesa.”
“Hoje
ela me disse que mataram o filho da rainha da Inglaterra na frente do
banco.”
“Para
mim dona Romilda falou que o príncipe foi morto naquele prédio
grande, com grades. Matar o príncipe na porta do banco não tem
muita lógica. Mas o prédio tem muitos apartamentos, de todos os
tamanhos, de quatro quartos, de dois, conjugados com kitchenette,
entra e sai gente a toda hora, você se perde nos corredores, de tão
grande. Um lugar melhor para matar o filho da rainha da Inglaterra.
Posso dar o retrato para ela?”
“Acha
uma boa ideia?”
“O
retrato ficou tão bom... Quando fui almoçar, eu a encontrei e lhe
disse que o meu chefe tinha tirado uma foto dela.”
“O
que foi que ela disse?”
“Perguntou:
uma foto nua?”
“Ela
pensa que alguém ia tirar uma foto dela nua?”
“O
senhor talvez fizesse uma foto dessas.”
“Dona
Romilda disse isso?”
“Eu
é que estou dizendo. O senhor gosta tanto de fotografia que isso não
me parece impossível. E uma foto nua dela seria uma maravilha.”
“Mas
eu não faço fotos de mulheres nuas.”
“A
dela seria uma beleza. Um bom começo.”
“Ela
iria gritar, quando eu passasse na rua: o general tirou minha foto
nua.”
“Ela
não grita nunca. Fala sempre num tom de voz educado. E além disso,
ninguém ia acreditar. Outro dia ela me disse, estou com todas as
minhas joias, meus diamantes, rubis neste saco. O Guilherme, ao meu
lado, não acreditou. Ninguém acredita nela. A dona Romilda nos
levou até a praça para mostrar os escargôs que criava e iam lhe
dar muito dinheiro. Moça, o Guilherme disse, isso aí são lesmas.”
“É
tudo da mesma família.”
“Eram
só quatro lesmas, que estavam numa caixa com alface. Não eram
suficientes para fazer uma criação. Ela tem esse lado sonhador. O
Guilherme disse que essa coisa de comer escargô é um modismo
burguês que vai passar.”
“Esse
modismo tem pelo menos dois mil anos.”
“É
mesmo?”
“No
mínimo.”
“O
senhor já comeu?”
“Já.”
“Gostou?”
“Sim.”
“Acho
que eu ia ter nojo. Mas se um dia o senhor me levar para comer essa
coisa, eu como.”
Abri
a agenda.
“E
a foto da dona Romilda nua?” perguntou Cristina.
Não
respondi logo. A foto talvez valesse a pena, seria algo novo no meu
acervo de amador.
“Onde
é que eu posso fazer isso? Não tenho lugar, dona Cristina. Na minha
casa não pode ser.”
“Pode
ser na minha.”
“Onde
a senhora mora?”
“No
prédio cheio de corredores onde mataram o príncipe.”
“Foi
em frente ao banco.”
“Dona
Romilda inventou isso, tem cisma com o gerente, ele não gosta que
ela durma na porta do banco.”
“Em
que dia nós vamos fazer isso?”
“No
sábado. De tarde. Se o senhor puder, é claro.”
“Me
dá o número do seu apartamento.”
“Não,
é uma kitchenette.”
“Tem
uma cama, não tem? Uma foto nua dela, para ficar boa, tem que ser
deitada. Quer dizer, vou fazer uma em pé, também. A senhora leva a
dona Romilda para o seu apartamento e eu encontro vocês lá. Quatro
horas, está bem?”
O
ideal para fazer aquela foto seria lá pelas ou 7. Eu levaria também
os flashes, caso não tivesse uma janela dando uma luz boa da rua. E
como garantia, a Leica, que me dava mais mobilidade. A digital não
era uma máquina para fotos artísticas.
O
prédio era mesmo grande e cheio de corredores, mas acabei achando o
apartamento.
Cristina
e dona Romilda, com o enorme saco que sempre carregava, estavam na
sala me esperando.
“General,
que bom ver o senhor novamente.”
“Vamos
fazer a foto?”
“Pelada?”
“A
senhora se incomoda?”
“Já
fiz foto pelada para a Playboy. O senhor não viu?”
“Eu
não leio a Playboy!”
Dona
Romilda tirou a roupa.
“A
senhora sabe quantos quilos pesa, dona Romilda?”
“Não
sei, princesa.”
“Deve
ser uns cem quilos. Tenho uma balança no banheiro, vou trazer para
cá.”
Pesamos
dona Romilda.
“Errei
por pouco. Cento e dez. Não dá uma fotografia deslumbrante,
doutor?”
A
cama estava arrumada, com uma colcha vermelha.
“Deita
aí na cama, dona Romilda.”
“Eu
não deito em colcha vermelha.”
“Por
quê?”
“Não
é bom. Maus espíritos atacam a gente.”
“A
senhora tem outra colcha, dona Cristina?”
“Pode
ser branca, dona Romilda?”
“Pode.”
“Acho
que branca é até melhor, cria um bom contraste. Muda a colcha, por
favor.”
Cristina
trocou a colcha.
“Fico
com as pernas abertas?”, perguntou dona Romilda, deitando na cama.
“Espera
um pouco. Preciso colocar os filtros na máquina, fazer o
enquadramento, ver a luz. Não demora muito.”
Pela
janela entrava uma luz boa, de fim de tarde.
“General,
eles não querem devolver a minha mansão da São Clemente. A Rosinha
diz que a casa é dela. Mas a casa é minha, quem me deu a casa foi a
rainha da Inglaterra, que morou lá.”
“Vou
ver o que posso fazer”
“E
fala com o Vítor para parar de fazer propostas indecentes para mim.
Já estou com dois filhos dele na barriga.”
“Eu
falo.”
Coloquei
a Pentax num tripé.
“Fecha
as pernas, por favor, e fica deitada quieta. Dona Cristina, põe uns
travesseiros sob a cabeça e as costas dela, para o tórax ficar um
pouquinho levantado. Me arranja um livro.”
“Qualquer
livro?”
“A
senhora tem um livro de arte?”
“Que
arte?”
“Tem
que ser um livro grande.”
Este
serve?”
“Serve.
Põe, por favor, o livro sobre o púbis dela.”
“Para
que esse livro, general?”
“É
um toque artístico, dona Romilda.”
“Mas
eu quero tirar uma foto com as pernas abertas.”
“As
outras a gente tira como a senhora quiser. Mas primeiro esta, com o
livro.”
Dona
Romilda ficou imóvel na cama, pensativa, mas tranquila, com o livro
sobre o púbis.
“Dá
uma olhada aqui no visor, dona Cristina.”
“Que
coisa linda”, disse Cristina. “Não pensei que ela tivesse tantas
curvas. Vai ser uma foto de museu internacional.”
Bati
outras fotos, dona Romilda de pernas abertas, de bruços, de lado, em
posição fetal. Usei também a Leica.
“Está
encerrada a sessão, sobrou apenas um filme. Muito obrigado, dona
Romilda.”
“Vai
sair na Playboy?”
“Não
garanto.”
“Estou
com fome.”
“Vou
fazer um sanduíche para a senhora”, disse Cristina.
“Quero
com cerveja.”
“O
senhor também quer um sanduíche?”
“Não,
dona Cristina, estou sem fome.”
“Dona
Romilda, por favor, vista a sua roupa, aqui em casa ninguém come
pelado.”
“É
a sua religião?”
“É
a minha religião.”
“Religião
eu respeito”, disse dona Romilda se vestindo.
“Só
tenho essa garrafa de cerveja.”
“Uma
garrafa está bom.”
Dona
Romilda comeu o sanduíche e bebeu a cerveja, em pequenos goles.
“Esse
sanduíche era do quê?”
“Peito
de peru defumado.”
“Roubaram
também a minha criação de perus. Eram mais de mil. Foi a Rosinha.”
“Quanto
estou lhe devendo pelo seu trabalho?”
“Não
foi trabalho nenhum, general.”
“Leva
isto aqui”, eu disse, colocando algum dinheiro na saca dela.
“Dá
para pagar o advogado?”
“Não
é para o advogado, é para a senhora. Deixa que eu falo com o
advogado. Não fica mostrando o dinheiro para os outros, promete?”
“Prometo,
general.”
“A
senhora já pode ir. Muito obrigado, dona Romilda.”
“Vou
levá-la até lá embaixo, para o porteiro não criar caso.”
Cristina
saiu com dona Romilda. Quando voltou, eu estava tirando a Pentax do
tripé.
“Acabaram
as fotos?”
“Acabaram.”
“Não
sobrou um filme? O senhor falou que sobrou um filme.”
Cristina
trocou a colcha branca e colocou de volta a colcha vermelha. Então
me olhou um longo tempo.
Depois,
subitamente, tirou a sua roupa e ficou inteiramente nua.
“Agora
é a minha vez. O senhor está ruborizado? Nunca pensei que você se
ruborizasse. Posso chamá-lo de você? Quando estiver nua, é claro.”
“Não
estou ruborizado.”
“Então?
Vamos fazer as fotos, ou você prefere fazer outra coisa?”
“A
senhora tem o corpo muito bonito.”
“Nunca
percebeu antes? Também você não olhava direito para mim. Só
olhava para a agenda. Só me chamava de senhora, dona Cristina, como
se eu fosse uma velha. Vamos ou não vamos tirar as fotos? Ou você
prefere fazer alguma coisa antes?”
“As
fotos podem ficar para depois.”
Deitamos,
nus, sobre a colcha vermelha.
“Estava
me guardando para você, nenhum homem me toca há muito tempo”
disse Cristina, além de outras palavras e gemidos.
Depois...
depois não fiz as fotos, anoitecera e eu não ia estragar a imagem
daquele corpo bonito usando os flashes medíocres da Pentax. Não
existe nada pior para uma foto do que luz artificial deficiente.
“Eu
sempre gostei muito de você. Espero que você agora também goste um
pouco de mim.”
“Sem
dúvida. Tenho de ir embora. Já está tarde.”
“Eu
sei.”
“Vou
me vestir, está bem?”
“Está
mal, mas o que posso fazer?”
Cristina,
que permanecera nua, me deu um beijo furioso na porta do apartamento
quando saí.
Na
rua peguei o carro, apreensivo. Nunca havia feito, em um só dia,
tantas coisas das quais me arrependeria.
Pensei
no meu extrato bancário. Mas continuei preocupado.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
Nenhum comentário:
Postar um comentário