quinta-feira, 4 de maio de 2023

Piloto de Guerra | II


Acordo do meu sonho. O Comandante me surpreende com uma estranha proposta:
Se essa missão o aborrece demais, se você não se sentir muito em forma, posso…
Ora, meu Comandante!
O Comandante sabe muito bem que tal proposta é absurda. Mas, quando uma tripulação não volta, ele se lembra da gravidade dos rostos na hora da partida. Interpreta essa gravidade como sinal de um pressentimento. Culpa-se por tê-la negligenciado.
O escrúpulo do Comandante me faz pensar no Israel. Eu estava fumando antes de ontem, na janela da sala de informações. Quando vi o Israel da minha janela, ele andava rapidamente. Seu nariz estava vermelho. Um nariz grande, bem judeu e bem vermelho. Fiquei bruscamente chocado com o nariz vermelho do Israel.
Eu tinha por esse Israel, cujo nariz estava observando, uma profunda amizade. Era um dos camaradas pilotos mais corajosos do grupo. Um dos mais corajosos e um dos mais modestos. Tinham-lhe falado tanto da prudência judia que ele devia tomar sua coragem por prudência. É prudente ser vencedor.
Então, reparei no seu nariz grande e vermelho, que brilhou apenas um instante, dada a rapidez dos passos que levavam Israel e seu nariz. Sem querer zombar, voltei-me a Gavoille:
Por que ele está fazendo aquele nariz?
Foi a mãe dele quem o fez — respondeu Gavoille.
Mas acrescentou:
Estranha essa missão em baixa altitude. — E saiu.
Ah!
E, claro, eu me lembrei, à noite, quando deixamos de esperar o retorno do Israel, daquele nariz que, plantado num rosto totalmente impassível, exprimia, com uma espécie de gênio próprio, a mais pesada das preocupações. Se eu precisasse ter ordenado a partida do Israel, a imagem daquele nariz me teria perseguido muito tempo, como uma recriminação. Israel, decerto, nada respondera à ordem de partida, senão: “Positivo, Comandante. Sim senhor, Comandante”. Israel, decerto, não tremera um único músculo do rosto. Mas, devagar, insidiosa e traiçoeiramente, seu nariz acendeu. Israel poderia contrair os traços de seu rosto, mas não a cor de seu nariz. E seu nariz abusara daquela cor para manifestar-se, por sua conta, no silêncio. O nariz, à revelia de Israel, exprimira ao comandante sua forte desaprovação.
Talvez seja por isso que o Comandante não goste de mandar partir os que imagina estarem assolados de pressentimentos. Os pressentimentos quase sempre enganam, mas dão às ordens de guerra um tom de condenação. Alias é um chefe, não um juiz.
Assim, outro dia, a respeito do suboficial T.
Tanto quanto Israel era corajoso, T. era acessível ao medo. É o único homem que conheci que experimentou de fato o medo. Quando se dava a T. uma ordem de guerra, provocava-se nele uma estranha ascensão de vertigem. Era alguma coisa simples, inexorável e lenta. T. enrijecia lentamente dos pés à cabeça. Seu rosto ficava como que lavado de qualquer expressão. E seus olhos começavam a luzir.
Ao contrário do Israel, cujo nariz me parecera tão aflito, aflito pela provável morte do Israel e ao mesmo tempo muito irritado, T. não formava movimentos interiores. Ele não reagia: ele entrava em mutação. Quando se terminava de falar com T., descobria-se ter simplesmente acendido nele a angústia. A angústia começava por expandir em seu rosto uma espécie de claridade uniforme. T., desde então, ficava como que fora de alcance. Sentia-se aumentar entre o universo e ele um deserto de indiferença. Em lugar algum, jamais conheci, em ninguém no mundo, essa forma de êxtase.
Nunca deveria tê-lo deixado partir naquele dia — dizia mais tarde o Comandante.
Naquele dia, quando o Comandante anunciara a partida a T., ele não havia somente empalidecido, mas também começara a sorrir. Simplesmente sorrir. Assim fazem, talvez, os supliciados quando o carrasco, realmente, passa dos limites.
Você não está bem. Vou substituí-lo…
Não, não Comandante. Já que é a minha vez, é a minha vez.
E T., em continência diante do Comandante, olhava para a frente, sem um movimento.
Mas se você não se sente seguro de si…
É minha vez, Comandante, é minha vez.
Vejamos, T…
Comandante…
O homem parecia um bloco. E Alias:
Então o deixei partir.
O que se seguiu nunca teve explicação. T., metralhador a bordo do aparelho, sofreu a tentativa de ataque por parte de um caça inimigo. Mas as metralhadoras do caça tendo travado, este deu meia-volta. O piloto e T. se falaram até quando próximos do terreno da base, sem que o piloto notasse nada de anormal. Mas a cinco minutos da chegada, não teve mais resposta.
E encontramos T. à noite, com o crânio fraturado pela empenagem do avião. Ele saltara de paraquedas em condições desastrosas, em plena velocidade, e isso sobre território amigo, quando nenhum perigo o ameaçava mais. A passagem do caça funcionara como um apelo irresistível.

* * *

Vão se vestir — disse-nos o Comandante —, e estejam no ar às cinco e meia.
Até logo, Comandante.
O comandante responde com um gesto vago. Superstição? Como meu cigarro está apagado e vasculho em vão meus bolsos: Por que você nunca tem fósforos? Exatamente. E passo pela porta, com esse adeus, perguntando-me: “Por que nunca tenho fósforos?”.
A missão o aborrece — observa Dutertre. — Eu penso: “Ele não se lixa”. Mas não é em Alias que estou pensando, fazendo essa tirada injusta. Estou chocado com uma evidência que ninguém confessa: a vida do Espírito é intermitente. A vida da Inteligência, somente esta, é permanente, ou quase. Há poucas variações em minhas faculdades de análise. Mas o Espírito não considera os objetos, considera o sentido que os liga entre si. O rosto que é lido através deles. E o Espírito passa da plena visão à cegueira absoluta. Quem ama sua morada, chega a hora em que não vê ali nada além da junção de objetos disparatados. Quem ama sua mulher, chega a hora em que só vê no amor preocupações, contrariedades e obrigações. Quem apreciava certa música, chega a hora em que ela nada lhe significa. Chega a hora, como agora, em que não entendo mais meu país. Um país não é a soma de terras, costumes, materiais, que minha inteligência sempre consegue apreender. É um Ser. E chega a hora em que estou cego aos Seres.
O comandante Alias passou a noite com o general discutindo lógica pura. A lógica pura arruína a vida do Espírito. Depois, ele se esgotou, na estrada, contra imensos engarrafamentos. Depois, ele encontrou, chegando ao Grupo, cem dificuldades materiais daquelas que nos roem pouco a pouco, como os mil efeitos do desmoronamento incontrolável de uma montanha. Ele enfim nos convocou para lançar-nos numa missão impossível. Somos objetos da incoerência geral. Não somos, para ele, Saint-Exupéry ou Dutertre, dotados de um modo particular de ver as coisas ou de não ver, de pensar, andar, beber, sorrir. Somos pedaços de uma grande construção cujo encaixe leva-se mais tempo, mais silêncio e mais recuo para descobrir. Se fosse acometido de um tique, Alias só teria observado o tique. Não expediria, a Arras, senão a imagem de um tique. Na balbúrdia dos problemas que se apresentam, no imbróglio, nós mesmos estamos divididos em pedaços. Essa voz. Aquele nariz. Esse tique. E pedaços não comovem.
Não se trata aqui do Comandante Alias, mas de todos os homens. Durante os preparativos de enterro, amamos o morto, não estamos em contato com a morte. A morte é uma coisa grande. É uma nova rede de relações com as ideias, os objetos, os costumes do morto. Ela é um novo arranjo do mundo. Nada mudou aparentemente, mas tudo mudou. As páginas do livro são as mesmas, mas não o sentido do livro. Precisamos, para sentir a morte, imaginar as horas em que temos necessidade do morto. Então, ele nos faz falta. Imaginar as horas em que ele precisaria de nós. Mas ele não precisa mais de nós. Imaginar a hora da visita amiga. E descobri-la oca. É preciso ver a vida em perspectiva. Mas não há perspectiva nem espaço no dia em que se enterra. O morto está ainda em pedaços. O dia em que se enterra, nós nos dispersamos em repisamentos, nas mãos de amigos verdadeiros ou falsos a apertar, nas preocupações materiais. O morto morrerá só amanhã, no silêncio. Mostrar-se-á para nós em sua plenitude, para ser arrancado, em sua plenitude, da nossa substância. Então gritaremos por aquele que se vai, e que não podemos reter.
Não gosto das gravuras de Épinal sobre a guerra. O guerreiro rude aparece secando uma lágrima e dissimulando sua emoção com suas tiradas violentas. É falso. O guerreiro rude nada dissimula. Se solta uma tirada, é que está pensando numa tirada.
A qualidade do homem não está em questão. O comandante Alias é perfeitamente sensível. Se não voltarmos, talvez ele sofra mais do que qualquer outro. Com a condição de que se trate de nós e não de uma soma de detalhes diversos. Com a condição de que essa reconstrução lhe seja permitida pelo silêncio. Pois se, esta noite, o guardião que nos persegue obrigar o Grupo a se mudar novamente, uma roda de caminhão quebrada, numa avalanche de problemas, adiará nossa morte. E Alias se esquecerá de sofrer por isso.
Assim eu, que parto em missão, não penso em luta do Ocidente contra o nazismo. Penso em detalhes imediatos. Imagino o absurdo de um sobrevoo sobre Arras a setecentos metros. Na vacuidade das informações que desejam obter de nós. Na lentidão de uniformizar-se como uma toalete para um carrasco. E depois nas minhas luvas. Diabos, onde enfiei as luvas? Perdi minhas luvas.
Não vejo mais a catedral que habito.
Estou me vestindo para o culto de um deus morto.

Antoine de Saint-Exupery, in Piloto de Guerra

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