sexta-feira, 19 de maio de 2023

Madrinha da bateria

Ilustração: Guillaume Poux

O ano inteiro, Zira pensava no desfile de Carnaval. Não havia nada mais importante em sua vida, afinal ela era madrinha da bateria da escola de samba do morro. O Carnaval acontecia em fevereiro ou na primeira quinzena de março. Pouco depois, em abril, Zira começava a planejar a sua fantasia para o desfile do ano seguinte. O patrono da escola, que gostava de recitar versos e tinha sido docente de um colégio da prefeitura antes de se tornar um poderoso banqueiro do bicho, conhecido como Chico Professor, dava o dinheiro para ela comprar tecido, sapatos, enfeites, o que fosse preciso. O patrono era um mão-aberta.
Quem fazia a sua fantasia era a irmã, Das Dores, que trabalhava num importante ateliê de costura da zona sul, cujas freguesas eram madames ricas, daquelas que só andam de carro com motorista. Ganhava um bom dinheiro, tanto que mudou do morro para uma casa na Tijuca.
O Carnaval naquele ano ia ser em fevereiro, mas Zira já tinha a sua fantasia pronta no início de janeiro.
Ela não mostrava para ninguém antes do desfile, gostava de surpreender a turma, a sua fantasia era sempre a mais bonita. As outras, principalmente os destaques, que desfilavam em cima dos carros alegóricos, e as duas porta-bandeiras, pediam a Das Dores para bolar e costurar também os trajes delas, mas Das Dores se desculpava, dizia que trabalhava muito no ateliê da zona sul e não tinha tempo. Na verdade Das Dores fazia isso porque sabia que a irmã não gostaria que ela costurasse para as outras, queria ser a única a se apresentar daquela maneira deslumbrante.
Os ensaios, a preparação para o desfile, naquele ano tinham uma importância muito grande, pois a escola subira para o Grupo Especial. O barracão da escola fervilhava com a agitação de dezenas de costureiras, carpinteiros, eletricistas, bombeiros, artistas plásticos, técnicos em efeitos especiais, que trabalhavam fazendo as fantasias das alas e construindo os carros alegóricos com suas figuras gigantescas. Josias, o carnavalesco que organizava o desfile, criara as fantasias das alas, as alegorias e o enredo da escola, cujo tema era a proteção da flora e da fauna do Brasil, não arredaria pé do barracão nem se sua mãe morresse. Dormia poucas horas durante a noite, numa cama de armar, e tinha pesadelos em que levava uma nota que rebaixaria a escola, num dos muitos quesitos avaliados pelos jurados. Acordava espavorido gritando frases como “a harmonia derrubou a gente, o enredo levou zero, a bateria se ferrou, o tucano se esborrachou no chão.” Um dos integrantes da escola, vestido de tucano, ia voar sobre a passarela no dia do desfile.
Na quadra, os ensaios aconteciam diariamente. O samba-enredo da escola, de autoria de Dedé, Zaqueu Boca Larga, Zé Crioulo e Alfinete, escolhido depois de uma renhida disputa entre quatro finalistas, era muito bonito, fácil de ser acompanhado em coro pela arquibancada. Coreógrafos exercitavam os movimentos da dança da comissão de frente, um grupo de bailarinos com fantasias de pássaros e animais selvagens.
Como sempre acontecia na época do Carnaval, grã-finas da zona sul frequentavam os ensaios. Naquele ano, como a escola subira para o Grupo Especial e ia desfilar na Sapucaí, o número das granfas aumentara muito. Zira sabia que elas não estavam nem aí para o samba ou para a escola, queriam aparecer na televisão nem que fosse por um segundo, algumas desfilavam em várias escolas, era isso que elas queriam, aparecer na televisão, curtir a folia e cafungar pó do bom, para elas era barato.
Acabado o Carnaval, as vadias, com seus peitos de silicone, não dariam mais as caras na escola. E havia também as gringas, louras desengonçadas que saíam direto do avião para o desfile, um horror, mas o seu Chico Professor dizia que Mangueira, Portela, Imperatriz, Mocidade, Salgueiro, Beija-Flor e todas as outras grandes aceitavam as turistas, e que a escola dele ia jogar igual. Muitas escolas haviam subido para o Grupo Especial e sido rebaixadas logo no primeiro desfile. Seu Chico Professor queria de todas as maneiras evitar essa catástrofe.
A madrinha da bateria não tinha dúvidas de que as câmeras da TV iam notar a presença dela e já sonhava com isso. Ela assistia todos os anos ao desfile do Grupo Especial, era um espetáculo maravilhoso, a todo instante as madrinhas da bateria apareciam na tela, o corpo, os gestos, os passos, o rosto sorridente, o mundo inteiro via aquilo, era por isso que mulheres importantes, artistas e modelos famosas, se fosse preciso vendiam a própria mãe para serem madrinhas da bateria de uma grande escola.
Ela logo antipatizou com uma das paraquedistas granfas da zona sul que compareciam todos os dias aos ensaios da escola, uma dona alta que usava um short curto que deixava à mostra suas coxas lindas e sua bunda perfeita, redonda, durinha, e cobria os peitos empinados com um bustiê transparente que deslizava a todo instante, mostrando os biquinhos cor-de-rosa. A dona ostentava um corpo de marombeira de academia e ainda por cima bronzeara o corpo e sua pele irradiava um brilho de caramelo. Zira tinha que admitir, era a bunda mais bonita de todas e havia muitas outras bundas lindas rebolando na quadra, mas não tanto quanto a dela.
A marombeira ficava o tempo todo ensaiando com Cidinho, o principal passista da escola. Cidinho não era mais namorado de Zira, mas mesmo assim aquela situação a irritava, ainda mais quando soube que a vadia se chamava Daiana e tinha trabalhado na televisão, numa daquelas novelinhas da tarde, mas mesmo uma novelinha da tarde enche a dona de importância. Muitas dessas fulanas, durante o Carnaval, gostavam de se engraçar com um escurinho maneiro, e Cidinho era um mulato bonito e dançando ficava ainda mais.
É bem verdade que Cidinho não parecia interessado em namorar a granfa e sim em ensinar a dona a dançar direito. Talvez fosse protegida de Josias, o carnavalesco da escola, pois várias vezes Zira viu os três conversando nos intervalos dos ensaios, Josias gesticulando muito, como se estivesse dando instruções. Mas Josias era viado, não estava interessado naquela dona nem em nenhuma outra, nem mesmo em nenhum homem, só pensava no dia do desfile. Como todo mundo, ele queria que a escola permanecesse no Grupo Especial, a glória para o carnavalesco, para seu Chico Professor, os compositores, o mestre da bateria, para todos os integrantes da escola, para toda a comunidade do morro.
Um dia, sua irmã Das Dores, que era muito escolada, vivia costurando para as bacanas e sabia das coisas, foi assistir ao ensaio. Num dos intervalos da bateria, chamou Zira para uma conversa.
Não estou gostando dos salamaleques para a tal de Daiana. Acho que ela tem alguma cupincharia aqui na escola.”
O Cidinho vive pajeando ela.”
Cidinho? Alguém mandou ele fazer isso, ele não quer comer essa vadia, todo mundo sabe que Cidinho é tarado pela filha da Zuleide.”
Tarado mesmo” disse Zira, “a menina tem só quatorze anos.”
Homem gosta de carne fresca.”
Eu tinha vinte e três anos quando ele me deixou. Minha carne não era mais fresca?”
Você ficou muito bunduda. Essa mania de comer doce.”
Bunduda? Eu fiquei bunduda, Das Dores? O Cidinho me deixou porque eu fiquei bunduda?”
Os homens estão mudando. Eles não gostam mais de bunda muito grande. Continuam gostando de bunda, mas tem que ser uma bunda menor. Foram essas revistas de mulher que inventaram isso. E não pode ser mole.”
Puta merda, Das Dores, minha bunda está grande e mole? Você é minha irmã e me diz uma coisa dessas? Quer me derrubar?”
Quero que você abra o olho. Pára de comer Sonho de valsa, você tem mania de Sonho de valsa, chocolate é uma merda. Outro dia, quando estava experimentando a sua fantasia, você comeu uma caixa de Bis inteira.”
Eu ando estressada, meu namoro com o Rubinho não está funcionando.”
O Rubinho não se chamava Rubinho, era um apelido que lhe haviam pespegado porque ele tinha a cara e o corpo do Barrichello dos carros de corrida.
Claro, você namora um barbeiro que nem dançar sabe, que desfila marchando feito paulista.”
Rubinho é muito bom para mim.”
Um homem tem que ser mais que isso.”
Antes do ensaio recomeçar, ela foi falar com seu Vavá, o mestre da bateria. Seu Vavá tinha mais de sessenta anos, talvez mais de setenta, era daqueles crioulos de pele esticada que nunca ficam de cabelo branco, muito respeitado, entre outras coisas tinha inventado uma batida para o surdo repicador que as baterias de todas as escolas copiaram. Teve convite das grandes, mas seu Chico Professor cobriu as ofertas, mesmo sabendo que seu Vavá amava a escola e não mudaria de camisa. Ia ser enterrado com ela.
Seu Vavá, eu estou indo bem?”
Qual o problema?”
Tenho minhas responsabilidades, como madrinha da bateria. Quero saber se estou bem.”
Minha filha, não leve a mal, mas a madrinha da bateria tem uma responsabilidade relativa. Não se preocupe, a bateria está firme, nem a pior trovoada cheia de raios pode atrapalhar. Faça o seu trabalho.”
O ensaio recomeçou e Zira foi para a frente da bateria. Mas enquanto dançava, pensava com amargura no que Das Dores lhe havia dito e também na conversa com seu Vavá.
Estava dançando quando Tiziu, o garçom que servia o seu Chico Professor, veio lhe dizer que o patrono queria falar com ela no camarote da quadra.
Como é, Zira, tudo em cima?”
Tudo em cima, seu Chico Professor.”
Olha, Zira, eu gostaria de ver a sua fantasia.”
Ela está muito bonita. Foi Das Dores que fez. Ninguém costura melhor do que a Das Dores.”
Eu sei. É pena que ela seja tão difícil, a sua irmã. Eu pedi para ela fazer uma roupa para minha patroa e ela se desculpou dizendo que não tinha tempo. Você acredita?”
É mesmo?”
É. Não gostei, sabe? Mas deixa isso pra lá. Não pedi que você viesse aqui para falar disso. Foi para dizer que quero ver a sua fantasia.”
Eu nunca mostro para ninguém antes do desfile, o senhor sabe disso, acho que dá azar.”
Olha, minha filha, vai dar azar, e muito azar, se você não me mostrar. Amanhã de manhã. Só eu é que vou ver. Passa na minha casa de manhã, lá pelas dez, entendeu? Agora, volta para a frente da bateria.”
Ela ficou acordada o resto da noite, preocupada, pensando em tudo o que estava acontecendo, cheia de maus pressentimentos. Acendeu uma vela e rezou ajoelhada na frente da imagem de são Jorge sobre a cômoda do seu quarto.
De manhã, Zira embrulhou cuidadosamente a fantasia com um plástico e foi para a casa do patrono, que ficava longe de onde ela morava.
A patroa não está” disse seu Chico Professor, “vamos lá para dentro, pro quarto.”
Foram para o quarto.
Anda, veste a fantasia. Tem um espelho grande na porta desse armário.”
Hesitante, ela desembrulhou a fantasia.
Quando estiver pronta, me chame”, disse seu Chico Professor, saindo do quarto.
Zira se vestiu na frente do espelho. Era uma fantasia linda, a mais linda de todas as que Das Dores fizera para ela.
Estou pronta”, disse ela, abrindo a porta.
Seu Chico Professor bebia uma cerveja, sentado numa poltrona da sala.
Vem aqui, fica em pé na minha frente.”
Ela se postou na frente do patrono imóvel.
Anda para lá e para cá”, disse ele.
Zira obedeceu.
Seu Chico Professor se levantou, foi à cozinha e voltou com outra lata de cerveja na mão.
Minha filha, nós somos amigos, não somos?”
Somos, sim.”
E o que é que queremos, mais do que tudo no mundo?”
Mais do que tudo?”
Mais do que tudo.”
Saúde?”
Não, Zira, não. O que queremos mais do que tudo, tudo, tudo, é o bem da nossa escola.”
Ah, é claro, eu estava pensando...”
A nossa escola tem que crescer, chegar ao cume, ganhar um dia o desfile do Grupo Especial. Você concorda?”
Sim, senhor.”
O nosso Carnaval é o maior espetáculo do mundo, não existe nada igual, em lugar nenhum do planeta, quem diz isso não sou eu, são os estrangeiros, que assistem bestificados. E a cada ano os carros alegóricos são mais grandiosos, os efeitos especiais são mais rebuscados, consta que uma das grandes mandou buscar secretamente um especialista de um grande estúdio de Hollywood. Essa coisa tecnológica para mim não vale nada, mas deixa o público embasbacado, temos que fazer o mesmo. O importante, sei que pareço um cara da velha guarda dizendo isso, o importante são os trezentos percussionistas da bateria, são as alas com fantasias luxuosas desfilando harmonicamente, são os destaques e as passistas com sua nudez, é o samba cantado e no pé, isso é que empolga a avenida, influencia os jurados, deixa boquiaberta a galera das arquibancadas e também os que estão assistindo na televisão. O nosso desfile vai ser assistido por milhões na televisão, milhões, você sabia?”
Sabia, sim senhor.”
E já há algum tempo as madrinhas das baterias são mulheres que impressionam pela beleza, dançam com os seios, as coxas, o corpo aparecendo em todo o seu esplendor. Não leve a mal, mas a sua fantasia, minha querida, parece a de um daqueles destaques mais idosos que desfilam sobre os carros. Olha, nem os seus braços aparecem por inteiro. Só vemos a cor e o brilho do tecido e das pedrarias. A madrinha da bateria deve exibir a cintilância da sua nudez. Você está me entendendo? Todas as madrinhas do Grupo Especial desfilam assim. Você quer o bem da escola, não quer?”
Sim”, murmurou Zira.
Não leve a mal, mas você vai deixar de ser a madrinha da bateria.”
Lívida, Zira sentiu que ia desmaiar, mas conseguiu ficar de pé. Seu Chico Professor percebeu, levantou-se da poltrona e pôs carinhosamente o braço sobre o ombro da moça.
Minha filha, você vai desfilar como destaque, todo mundo quer ser destaque, aparece na televisão quase tanto quanto a madrinha da bateria. O Brasil, de norte a sul, vai ver você, o mundo vai ver você em sua esplêndida fantasia.”
O senhor já escolheu a nova madrinha?”, perguntou Zira, com a voz embargada. Seu coração doía, sua cabeça rodopiava.
Já. Aquela moça, Daiana. Amanhã ela assume o seu lugar. O Josias disse que ela vai dar conta do recado.”
E o mestre, o seu Vavá?”
Seu Vavá acha que madrinha da bateria é uma firula. Sai na primeira página dos jornais, mas ele acha que é uma firula. Não está interessado. Você sabe como ele é, um velho turrão, eu não quero discutir com seu Vavá.”
Essa moça não sabe dançar...” A voz de Zira quase não se ouvia.
Minha filha, qualquer mulher na frente da bateria sabe dançar, o ritmo entra direto na veia. Você sabe disso. Quer tomar uma cerveja?”
Não, senhor, muito obrigada.”
O Josias foi instruído para colocar você num dos carros.”
Sim, senhor. Posso ir?”
Seu Chico Professor levou-a até a porta.
Sei que você ficou triste, mas, Zira, é para o bem da escola, estamos fazendo o que precisa ser feito e você será sempre um dos nossos destaques, vai desfilar sobre o carro alegórico mais bonito, prometo isso a você, e sempre pagarei a sua fantasia, a Das Dores pode fazer a fantasia mais cara do mundo que eu pago, eu prometo.”
Zira só foi chorar quando chegou na rua. Soluçava tão alto enquanto caminhava, abatida, que as pessoas que passavam olhavam curiosas para ela.
Foi diretamente para a barbearia do Rubinho. Não havia nenhum cliente e o namorado lia o Jornal dos Sports sentado na cadeira do barbeiro.
Não, você está maluca, porra, de jeito nenhum”, disse Rubinho quando ouviu o pedido de Zira.
Então eu vou me matar”, ela disse, entre soluços.
Rubinho abraçou-a, comovido.
Quando, no dia seguinte, Zira chegou na quadra, Daiana assumira o posto de madrinha da bateria e dançava, isolada, na frente dos percussionistas. A filha da puta aprendeu a dançar, pensou Zira. Ou então estava acontecendo aquela coisa sobre o poder do som da bateria, que seu Chico Professor dissera. Direto na veia.
Seja o que Deus quiser, pensou Zira, indo para junto de Daiana, que sorriu e continuou dançando, feliz. Então, tirou a navalha de dentro da blusa e deu duas navalhadas fundas em Daiana, uma no rosto e outra no pescoço.
Zira não ouviu os gritos nem sentiu as mãos das pessoas que a agarravam e arrastavam, nada, apenas o gosto do sangue que esguichara sobre a sua boca.

Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas

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