Ilustração:
Guillaume Poux
O
ano inteiro, Zira pensava no desfile de Carnaval. Não havia nada
mais importante em sua vida, afinal ela era madrinha da bateria da
escola de samba do morro. O Carnaval acontecia em fevereiro ou na
primeira quinzena de março. Pouco depois, em abril, Zira começava a
planejar a sua fantasia para o desfile do ano seguinte. O patrono da
escola, que gostava de recitar versos e tinha sido docente de um
colégio da prefeitura antes de se tornar um poderoso banqueiro do
bicho, conhecido como Chico Professor, dava o dinheiro para ela
comprar tecido, sapatos, enfeites, o que fosse preciso. O patrono era
um mão-aberta.
Quem
fazia a sua fantasia era a irmã, Das Dores, que trabalhava num
importante ateliê de costura da zona sul, cujas freguesas eram
madames ricas, daquelas que só andam de carro com motorista. Ganhava
um bom dinheiro, tanto que mudou do morro para uma casa na Tijuca.
O
Carnaval naquele ano ia ser em fevereiro, mas Zira já tinha a sua
fantasia pronta no início de janeiro.
Ela
não mostrava para ninguém antes do desfile, gostava de surpreender
a turma, a sua fantasia era sempre a mais bonita. As outras,
principalmente os destaques, que desfilavam em cima dos carros
alegóricos, e as duas porta-bandeiras, pediam a Das Dores para bolar
e costurar também os trajes delas, mas Das Dores se desculpava,
dizia que trabalhava muito no ateliê da zona sul e não tinha tempo.
Na verdade Das Dores fazia isso porque sabia que a irmã não
gostaria que ela costurasse para as outras, queria ser a única a se
apresentar daquela maneira deslumbrante.
Os
ensaios, a preparação para o desfile, naquele ano tinham uma
importância muito grande, pois a escola subira para o Grupo
Especial. O barracão da escola fervilhava com a agitação de
dezenas de costureiras, carpinteiros, eletricistas, bombeiros,
artistas plásticos, técnicos em efeitos especiais, que trabalhavam
fazendo as fantasias das alas e construindo os carros alegóricos com
suas figuras gigantescas. Josias, o carnavalesco que organizava o
desfile, criara as fantasias das alas, as alegorias e o enredo da
escola, cujo tema era a proteção da flora e da fauna do Brasil, não
arredaria pé do barracão nem se sua mãe morresse. Dormia poucas
horas durante a noite, numa cama de armar, e tinha pesadelos em que
levava uma nota que rebaixaria a escola, num dos muitos quesitos
avaliados pelos jurados. Acordava espavorido gritando frases como “a
harmonia derrubou a gente, o enredo levou zero, a bateria se ferrou,
o tucano se esborrachou no chão.” Um dos integrantes da escola,
vestido de tucano, ia voar sobre a passarela no dia do desfile.
Na
quadra, os ensaios aconteciam diariamente. O samba-enredo da escola,
de autoria de Dedé, Zaqueu Boca Larga, Zé Crioulo e Alfinete,
escolhido depois de uma renhida disputa entre quatro finalistas, era
muito bonito, fácil de ser acompanhado em coro pela arquibancada.
Coreógrafos exercitavam os movimentos da dança da comissão de
frente, um grupo de bailarinos com fantasias de pássaros e animais
selvagens.
Como
sempre acontecia na época do Carnaval, grã-finas da zona sul
frequentavam os ensaios. Naquele ano, como a escola subira para o
Grupo Especial e ia desfilar na Sapucaí, o número das granfas
aumentara muito. Zira sabia que elas não estavam nem aí para o
samba ou para a escola, queriam aparecer na televisão nem que fosse
por um segundo, algumas desfilavam em várias escolas, era isso que
elas queriam, aparecer na televisão, curtir a folia e cafungar pó
do bom, para elas era barato.
Acabado
o Carnaval, as vadias, com seus peitos de silicone, não dariam mais
as caras na escola. E havia também as gringas, louras desengonçadas
que saíam direto do avião para o desfile, um horror, mas o seu
Chico Professor dizia que Mangueira, Portela, Imperatriz, Mocidade,
Salgueiro, Beija-Flor e todas as outras grandes aceitavam as
turistas, e que a escola dele ia jogar igual. Muitas escolas haviam
subido para o Grupo Especial e sido rebaixadas logo no primeiro
desfile. Seu Chico Professor queria de todas as maneiras evitar essa
catástrofe.
A
madrinha da bateria não tinha dúvidas de que as câmeras da TV iam
notar a presença dela e já sonhava com isso. Ela assistia todos os
anos ao desfile do Grupo Especial, era um espetáculo maravilhoso, a
todo instante as madrinhas da bateria apareciam na tela, o corpo, os
gestos, os passos, o rosto sorridente, o mundo inteiro via aquilo,
era por isso que mulheres importantes, artistas e modelos famosas, se
fosse preciso vendiam a própria mãe para serem madrinhas da bateria
de uma grande escola.
Ela
logo antipatizou com uma das paraquedistas granfas da zona sul que
compareciam todos os dias aos ensaios da escola, uma dona alta que
usava um short curto que deixava à mostra suas coxas lindas e sua
bunda perfeita, redonda, durinha, e cobria os peitos empinados com um
bustiê transparente que deslizava a todo instante, mostrando os
biquinhos cor-de-rosa. A dona ostentava um corpo de marombeira de
academia e ainda por cima bronzeara o corpo e sua pele irradiava um
brilho de caramelo. Zira tinha que admitir, era a bunda mais bonita
de todas e havia muitas outras bundas lindas rebolando na quadra, mas
não tanto quanto a dela.
A
marombeira ficava o tempo todo ensaiando com Cidinho, o principal
passista da escola. Cidinho não era mais namorado de Zira, mas mesmo
assim aquela situação a irritava, ainda mais quando soube que a
vadia se chamava Daiana e tinha trabalhado na televisão, numa
daquelas novelinhas da tarde, mas mesmo uma novelinha da tarde enche
a dona de importância. Muitas dessas fulanas, durante o Carnaval,
gostavam de se engraçar com um escurinho maneiro, e Cidinho era um
mulato bonito e dançando ficava ainda mais.
É
bem verdade que Cidinho não parecia interessado em namorar a granfa
e sim em ensinar a dona a dançar direito. Talvez fosse protegida de
Josias, o carnavalesco da escola, pois várias vezes Zira viu os três
conversando nos intervalos dos ensaios, Josias gesticulando muito,
como se estivesse dando instruções. Mas Josias era viado, não
estava interessado naquela dona nem em nenhuma outra, nem mesmo em
nenhum homem, só pensava no dia do desfile. Como todo mundo, ele
queria que a escola permanecesse no Grupo Especial, a glória para o
carnavalesco, para seu Chico Professor, os compositores, o mestre da
bateria, para todos os integrantes da escola, para toda a comunidade
do morro.
Um
dia, sua irmã Das Dores, que era muito escolada, vivia costurando
para as bacanas e sabia das coisas, foi assistir ao ensaio. Num dos
intervalos da bateria, chamou Zira para uma conversa.
“Não
estou gostando dos salamaleques para a tal de Daiana. Acho que ela
tem alguma cupincharia aqui na escola.”
“O
Cidinho vive pajeando ela.”
“Cidinho?
Alguém mandou ele fazer isso, ele não quer comer essa vadia, todo
mundo sabe que Cidinho é tarado pela filha da Zuleide.”
“Tarado
mesmo” disse Zira, “a menina tem só quatorze anos.”
“Homem
gosta de carne fresca.”
“Eu
tinha vinte e três anos quando ele me deixou. Minha carne não era
mais fresca?”
“Você
ficou muito bunduda. Essa mania de comer doce.”
“Bunduda?
Eu fiquei bunduda, Das Dores? O Cidinho me deixou porque eu fiquei
bunduda?”
“Os
homens estão mudando. Eles não gostam mais de bunda muito grande.
Continuam gostando de bunda, mas tem que ser uma bunda menor. Foram
essas revistas de mulher que inventaram isso. E não pode ser mole.”
“Puta
merda, Das Dores, minha bunda está grande e mole? Você é minha
irmã e me diz uma coisa dessas? Quer me derrubar?”
“Quero
que você abra o olho. Pára de comer Sonho de valsa, você tem mania
de Sonho de valsa, chocolate é uma merda. Outro dia, quando estava
experimentando a sua fantasia, você comeu uma caixa de Bis inteira.”
“Eu
ando estressada, meu namoro com o Rubinho não está funcionando.”
O
Rubinho não se chamava Rubinho, era um apelido que lhe haviam
pespegado porque ele tinha a cara e o corpo do Barrichello dos carros
de corrida.
“Claro,
você namora um barbeiro que nem dançar sabe, que desfila marchando
feito paulista.”
“Rubinho
é muito bom para mim.”
“Um
homem tem que ser mais que isso.”
Antes
do ensaio recomeçar, ela foi falar com seu Vavá, o mestre da
bateria. Seu Vavá tinha mais de sessenta anos, talvez mais de
setenta, era daqueles crioulos de pele esticada que nunca ficam de
cabelo branco, muito respeitado, entre outras coisas tinha inventado
uma batida para o surdo repicador que as baterias de todas as escolas
copiaram. Teve convite das grandes, mas seu Chico Professor cobriu as
ofertas, mesmo sabendo que seu Vavá amava a escola e não mudaria de
camisa. Ia ser enterrado com ela.
“Seu
Vavá, eu estou indo bem?”
“Qual
o problema?”
“Tenho
minhas responsabilidades, como madrinha da bateria. Quero saber se
estou bem.”
“Minha
filha, não leve a mal, mas a madrinha da bateria tem uma
responsabilidade relativa. Não se preocupe, a bateria está firme,
nem a pior trovoada cheia de raios pode atrapalhar. Faça o seu
trabalho.”
O
ensaio recomeçou e Zira foi para a frente da bateria. Mas enquanto
dançava, pensava com amargura no que Das Dores lhe havia dito e
também na conversa com seu Vavá.
Estava
dançando quando Tiziu, o garçom que servia o seu Chico Professor,
veio lhe dizer que o patrono queria falar com ela no camarote da
quadra.
“Como
é, Zira, tudo em cima?”
“Tudo
em cima, seu Chico Professor.”
“Olha,
Zira, eu gostaria de ver a sua fantasia.”
“Ela
está muito bonita. Foi Das Dores que fez. Ninguém costura melhor do
que a Das Dores.”
“Eu
sei. É pena que ela seja tão difícil, a sua irmã. Eu pedi para
ela fazer uma roupa para minha patroa e ela se desculpou dizendo que
não tinha tempo. Você acredita?”
“É
mesmo?”
“É.
Não gostei, sabe? Mas deixa isso pra lá. Não pedi que você viesse
aqui para falar disso. Foi para dizer que quero ver a sua fantasia.”
“Eu
nunca mostro para ninguém antes do desfile, o senhor sabe disso,
acho que dá azar.”
“Olha,
minha filha, vai dar azar, e muito azar, se você não me mostrar.
Amanhã de manhã. Só eu é que vou ver. Passa na minha casa de
manhã, lá pelas dez, entendeu? Agora, volta para a frente da
bateria.”
Ela
ficou acordada o resto da noite, preocupada, pensando em tudo o que
estava acontecendo, cheia de maus pressentimentos. Acendeu uma vela e
rezou ajoelhada na frente da imagem de são Jorge sobre a cômoda do
seu quarto.
De
manhã, Zira embrulhou cuidadosamente a fantasia com um plástico e
foi para a casa do patrono, que ficava longe de onde ela morava.
“A
patroa não está” disse seu Chico Professor, “vamos lá para
dentro, pro quarto.”
Foram
para o quarto.
“Anda,
veste a fantasia. Tem um espelho grande na porta desse armário.”
Hesitante,
ela desembrulhou a fantasia.
“Quando
estiver pronta, me chame”, disse seu Chico Professor, saindo do
quarto.
Zira
se vestiu na frente do espelho. Era uma fantasia linda, a mais linda
de todas as que Das Dores fizera para ela.
“Estou
pronta”, disse ela, abrindo a porta.
Seu
Chico Professor bebia uma cerveja, sentado numa poltrona da sala.
“Vem
aqui, fica em pé na minha frente.”
Ela
se postou na frente do patrono imóvel.
“Anda
para lá e para cá”, disse ele.
Zira
obedeceu.
Seu
Chico Professor se levantou, foi à cozinha e voltou com outra lata
de cerveja na mão.
“Minha
filha, nós somos amigos, não somos?”
“Somos,
sim.”
“E
o que é que queremos, mais do que tudo no mundo?”
“Mais
do que tudo?”
“Mais
do que tudo.”
“Saúde?”
“Não,
Zira, não. O que queremos mais do que tudo, tudo, tudo, é o bem da
nossa escola.”
“Ah,
é claro, eu estava pensando...”
“A
nossa escola tem que crescer, chegar ao cume, ganhar um dia o desfile
do Grupo Especial. Você concorda?”
“Sim,
senhor.”
“O
nosso Carnaval é o maior espetáculo do mundo, não existe nada
igual, em lugar nenhum do planeta, quem diz isso não sou eu, são os
estrangeiros, que assistem bestificados. E a cada ano os carros
alegóricos são mais grandiosos, os efeitos especiais são mais
rebuscados, consta que uma das grandes mandou buscar secretamente um
especialista de um grande estúdio de Hollywood. Essa coisa
tecnológica para mim não vale nada, mas deixa o público
embasbacado, temos que fazer o mesmo. O importante, sei que pareço
um cara da velha guarda dizendo isso, o importante são os trezentos
percussionistas da bateria, são as alas com fantasias luxuosas
desfilando harmonicamente, são os destaques e as passistas com sua
nudez, é o samba cantado e no pé, isso é que empolga a avenida,
influencia os jurados, deixa boquiaberta a galera das arquibancadas e
também os que estão assistindo na televisão. O nosso desfile vai
ser assistido por milhões na televisão, milhões, você sabia?”
“Sabia,
sim senhor.”
“E
já há algum tempo as madrinhas das baterias são mulheres que
impressionam pela beleza, dançam com os seios, as coxas, o corpo
aparecendo em todo o seu esplendor. Não leve a mal, mas a sua
fantasia, minha querida, parece a de um daqueles destaques mais
idosos que desfilam sobre os carros. Olha, nem os seus braços
aparecem por inteiro. Só vemos a cor e o brilho do tecido e das
pedrarias. A madrinha da bateria deve exibir a cintilância da sua
nudez. Você está me entendendo? Todas as madrinhas do Grupo
Especial desfilam assim. Você quer o bem da escola, não quer?”
“Sim”,
murmurou Zira.
“Não
leve a mal, mas você vai deixar de ser a madrinha da bateria.”
Lívida,
Zira sentiu que ia desmaiar, mas conseguiu ficar de pé. Seu Chico
Professor percebeu, levantou-se da poltrona e pôs carinhosamente o
braço sobre o ombro da moça.
“Minha
filha, você vai desfilar como destaque, todo mundo quer ser
destaque, aparece na televisão quase tanto quanto a madrinha da
bateria. O Brasil, de norte a sul, vai ver você, o mundo vai ver
você em sua esplêndida fantasia.”
“O
senhor já escolheu a nova madrinha?”, perguntou Zira, com a voz
embargada. Seu coração doía, sua cabeça rodopiava.
“Já.
Aquela moça, Daiana. Amanhã ela assume o seu lugar. O Josias disse
que ela vai dar conta do recado.”
“E
o mestre, o seu Vavá?”
“Seu
Vavá acha que madrinha da bateria é uma firula. Sai na primeira
página dos jornais, mas ele acha que é uma firula. Não está
interessado. Você sabe como ele é, um velho turrão, eu não quero
discutir com seu Vavá.”
“Essa
moça não sabe dançar...” A voz de Zira quase não se ouvia.
“Minha
filha, qualquer mulher na frente da bateria sabe dançar, o ritmo
entra direto na veia. Você sabe disso. Quer tomar uma cerveja?”
“Não,
senhor, muito obrigada.”
“O
Josias foi instruído para colocar você num dos carros.”
“Sim,
senhor. Posso ir?”
Seu
Chico Professor levou-a até a porta.
“Sei
que você ficou triste, mas, Zira, é para o bem da escola, estamos
fazendo o que precisa ser feito e você será sempre um dos nossos
destaques, vai desfilar sobre o carro alegórico mais bonito, prometo
isso a você, e sempre pagarei a sua fantasia, a Das Dores pode fazer
a fantasia mais cara do mundo que eu pago, eu prometo.”
Zira
só foi chorar quando chegou na rua. Soluçava tão alto enquanto
caminhava, abatida, que as pessoas que passavam olhavam curiosas para
ela.
Foi
diretamente para a barbearia do Rubinho. Não havia nenhum cliente e
o namorado lia o Jornal dos Sports sentado na cadeira do barbeiro.
“Não,
você está maluca, porra, de jeito nenhum”, disse Rubinho quando
ouviu o pedido de Zira.
“Então
eu vou me matar”, ela disse, entre soluços.
Rubinho
abraçou-a, comovido.
Quando,
no dia seguinte, Zira chegou na quadra, Daiana assumira o posto de
madrinha da bateria e dançava, isolada, na frente dos
percussionistas. A filha da puta aprendeu a dançar, pensou Zira. Ou
então estava acontecendo aquela coisa sobre o poder do som da
bateria, que seu Chico Professor dissera. Direto na veia.
Seja
o que Deus quiser, pensou Zira, indo para junto de Daiana, que sorriu
e continuou dançando, feliz. Então, tirou a navalha de dentro da
blusa e deu duas navalhadas fundas em Daiana, uma no rosto e outra no
pescoço.
Zira
não ouviu os gritos nem sentiu as mãos das pessoas que a agarravam
e arrastavam, nada, apenas o gosto do sangue que esguichara sobre a
sua boca.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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