terça-feira, 30 de maio de 2023

Hollywood | 15


Alguns dias depois estávamos de volta ao estúdio de Danny Server, em Venice.
Outro cara escreveu um filme sobre sarjeta e bebedeiras – disse Jon. – Por que você não dá uma olhada?
Assim, entramos lá, Jon, Sarah e eu. O pessoal já se achava nas poltronas. Mas o bar estava fechado.
O bar está fechado – eu disse a Jon.
É – ele disse.
Escuta, a gente precisa beber alguma coisa...
Tem uma loja de bebidas a cerca de uma quadra daqui, em direção ao mar, no outro lado da rua.
Voltamos já.
Chegamos lá, compramos duas garrafas de tinto e um saca-rolhas. Na volta, fomos parados duas vezes para dar esmolas. E estávamos de volta ao estúdio. Empurrei a porta e entramos. Estava escuro. O filme rolava.
Merda – eu disse. – Não enxergo nada! Não enxergo porra nenhuma!
Alguém me fez psiu.
O mesmo pra você – eu disse.
Quer fazer o favor de calar a boca! – disse uma mulher.
Vamos tentar as primeiras filas – disse Sarah. – Acho que estou vendo uns dois lugares, mas não tenho certeza.
Conseguimos chegar à frente. Eu tropecei nuns pés.
Filho da puta! – ouvi um homem dizer baixinho.
Foda-se – eu disse.
Finalmente localizamos duas poltronas e nos sentamos. Sarah pegou os cigarros e o isqueiro, enquanto eu desarrolhava a garrafa. Não tínhamos copos, por isso eu tomei um gole e passei a garrafa para ela. Ela tomou um gole e devolveu-a. Depois acendeu dois cigarros pra gente.
O cara que escrevera o filme, De Volta do Hades, já tivera uma série na TV, um daqueles programas familiares. Pat Sellers. Bem, a série prosseguira indefinidamente, mas Pat perdera a batalha contra a garrafa e em breve a série estava condenada. Divórcio. Perda da família, do lar. Pat estava na sarjeta. Agora fazia um retorno. Fizera aquele filme. Estava abstêmio. E no circuito de conferências, ajudando outros.
Tomei outra golada e passei pra Sarah.
Via o filme. Estavam na miséria. Era noite, e haviam acendido uma fogueira. Os homens e mulheres pareciam muito bem vestidos para estarem na sarjeta. Não tinham realmente aparência de vagabundos. Pareciam pessoas que trabalhavam em filmes de Hollywood, atores de TV. E cada um tinha um carrinho de supermercado onde guardava seus bens terrenos. Só que os carrinhos eram novinhos em folha. Reluziam à luz da fogueira. Eu nunca vira carrinhos tão novos em nenhum supermercado. Evidentemente, haviam sido comprados para o filme.
Passa a garrafa – pedi a Sarah.
Ergui-a bem alto e tomei uma boa golada. Tornei a ouvir o psiu, seguido de outro chiado.
Essas pessoas são feias – eu disse a Sarah. – Que diabos há com elas?
Não sei.
Voltemos ao filme e às pessoas à luz da fogueira com seus carrinhos de compras. Um cara falava. Os outros escutavam.
...eu acordava e não reconhecia a cama onde estava, não sabia onde estava... me vestia, saía e procurava meu carro. Jamais sabia onde estava o carro. Às vezes levava horas pra descobrir...
Opa, isso é bom – eu disse a Sarah. – Já me aconteceu muitas vezes!
Ouvi outro psiu.
...eu vivia numa espelunca atrás da outra... muitas vezes perdia a carteira... me quebravam os dentes... era uma alma penada... penada... penada... Depois meu companheiro de farra, Mike, morreu bêbado num acidente de carro... isso foi a gota d’água...
Sarah tomou uma golada.
Agora estou em paz... durmo bem... começo a me sentir de novo um ser humano normal... E Cristo é o meu barato, maior que qualquer bebida que o demônio pôs nesta terra!
O cara tinha lágrimas nos olhos.
E aí recitou um poema:

Tornei a me encontrar.
Multiplicado por dez.
Eu perdi o yen.
Sou irmão de minha gente.
Tornei a me encontrar.

Fez uma mesura e os outros aplaudiram.
Aí uma mulher começou a falar. Disse que começara a beber em festas. E daí fora em frente. Começara a beber sozinha em casa. As plantas morriam porque ela não as aguava. Durante uma discussão, esfaqueara a filha com uma faca de podar. O marido começara a beber também. Perdera o emprego. Ficava em casa. Os dois bebiam juntos. Aí ela o esfaqueara com uma faca de podar. Um dia entrara no carro e se mandara com a mala e os cartões de crédito. Bebia em motéis. Fumava e bebia e via TV. Vodca. Adorava vodca. Uma noite tocara fogo na cama. Um carro de bombeiros viera ao motel. Ela estava bêbada, de camisola de dormir. Um dos bombeiros lhe palmeara as nádegas. Ela saltara no carro de camisola de dormir, levando apenas a bolsa. Dirigira sem parar, estonteada. Por volta do meio-dia do dia seguinte estava na esquina da 4 com a Broadway. Dois dos pneus haviam se esvaziado enquanto dirigia. Os pneus haviam se soltado e ela rodava sobre os aros apenas, deixando fundos sulcos no asfalto. Um policial a parara. Ela fora detida – para observação. Os dias passavam. Nem o marido nem a filha apareciam. Estava sozinha. Um dia, conversava com o analista, e o cara lhe perguntara: “Por que você insiste em destruir a si mesma?”. E quando lhe perguntara isso não era mais o rosto do analista que a olhava, era o rosto de Cristo. Isso fora o bastante...
Como é que ela sabia que era o rosto de Cristo? – perguntei em voz alta.
Quem é esse cara? – ouvi alguém perguntar.
Minha garrafa de vinho se esvaziara. Meti o saca-rolha na outra.
Aí outro cara contou a sua história. A fogueira seguia ardendo e ardendo. Ninguém precisava alimentá-la. E não apareciam outros vagabundos para importuná-los. Quando o cara terminou sua história, enfiou a mão em seu carrinho de compras e sacou um violão bastante caro.
Eu tomei uma golada e passei o tinto para Sarah.
O cara afinou o violão, e começou a tocar e cantar. Era afinado, tinha a voz treinada. Cantava sem parar.
A câmera corria em volta, captando a expressão em todos os rostos. Estavam emocionados, alguns choravam, outros tinham suaves e belos sorrisos. Aí o cantor acabou e recebeu entusiásticos e alegres aplausos.
Nunca vi uma sarjeta desse jeito – eu disse a Sarah.
O filme prosseguiu. Outros atores falavam. Outros tinham violões caros. Era a noite do violão. E aí veio o grand finale. Apareceu uma estrela cadente, que traçou um arco sobre os rostos voltados para cima. Fez-se um breve silêncio. Aí um cara começou a cantar. Em breve uma mulher juntou-se a ele. Depois juntaram-se outras vozes. Todos sabiam a letra. Surgiram muitos violões. Era um coro edificante de esperança e unidade. E acabou. O filme acabou. As luzes se acenderam. Havia um pequeno palco. Pat Sellers subiu nele. Aplaudiram-no.
Pat Sellers tinha uma aparência horrível. Parecia sonolento, sem vida, morto. Os olhos vagos. Começou a falar.
Não tomo um trago há quinhentos e noventa e cinco dias...
Estrugiram aplausos.
Ele prosseguiu:
Sou um alcoólatra em recuperação... Somos todos alcoólatras em recuperação...
Vamos dar o fora daqui – disse Sarah.
Havíamos acabado o vinho. Levantamo-nos e nos dirigimos para a saída. Fomos para o nosso carro.
Filho da puta! – eu disse. – Onde está Jon? Por que não está aqui?
Oh, tenho certeza de que ele viu o filme – disse Sarah.
Aprontou pra gente. É meio engraçado quando se pensa na coisa.
Eram todos membros dos A.A. lá dentro...
Entramos no carro e nos dirigimos para a autoestrada.
Minha ideia sobre a coisa toda era de que a maioria das pessoas não era alcoólatra, só pensava que era. Era algo que não podia ser precipitado. Para alguém se tornar um verdadeiro alcoólatra, precisava pelo menos uns vinte anos. Eu estava no meu 45º ano e não me arrependia nem um pouco.
Chegamos à autoestrada e nos dirigimos de volta à realidade.

Charles Bukowski, in Hollywood

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