Alguns
dias depois estávamos de volta ao estúdio de Danny Server, em
Venice.
– Outro
cara escreveu um filme sobre sarjeta e bebedeiras – disse Jon. –
Por que você não dá uma olhada?
Assim,
entramos lá, Jon, Sarah e eu. O pessoal já se achava nas poltronas.
Mas o bar estava fechado.
– O
bar está fechado – eu disse a Jon.
– É
– ele disse.
– Escuta,
a gente precisa beber alguma coisa...
– Tem
uma loja de bebidas a cerca de uma quadra daqui, em direção ao mar,
no outro lado da rua.
– Voltamos
já.
Chegamos
lá, compramos duas garrafas de tinto e um saca-rolhas. Na volta,
fomos parados duas vezes para dar esmolas. E estávamos de volta ao
estúdio. Empurrei a porta e entramos. Estava escuro. O filme rolava.
– Merda
– eu disse. – Não enxergo nada! Não enxergo porra nenhuma!
Alguém
me fez psiu.
– O
mesmo pra você – eu disse.
– Quer
fazer o favor de calar a boca! – disse uma mulher.
– Vamos
tentar as primeiras filas – disse Sarah. – Acho que estou vendo
uns dois lugares, mas não tenho certeza.
Conseguimos
chegar à frente. Eu tropecei nuns pés.
– Filho
da puta! – ouvi um homem dizer baixinho.
– Foda-se
– eu disse.
Finalmente
localizamos duas poltronas e nos sentamos. Sarah pegou os cigarros e
o isqueiro, enquanto eu desarrolhava a garrafa. Não tínhamos copos,
por isso eu tomei um gole e passei a garrafa para ela. Ela tomou um
gole e devolveu-a. Depois acendeu dois cigarros pra gente.
O
cara que escrevera o filme, De Volta do Hades, já tivera uma série
na TV, um daqueles programas familiares. Pat Sellers. Bem, a série
prosseguira indefinidamente, mas Pat perdera a batalha contra a
garrafa e em breve a série estava condenada. Divórcio. Perda da
família, do lar. Pat estava na sarjeta. Agora fazia um retorno.
Fizera aquele filme. Estava abstêmio. E no circuito de conferências,
ajudando outros.
Tomei
outra golada e passei pra Sarah.
Via
o filme. Estavam na miséria. Era noite, e haviam acendido uma
fogueira. Os homens e mulheres pareciam muito bem vestidos para
estarem na sarjeta. Não tinham realmente aparência de vagabundos.
Pareciam pessoas que trabalhavam em filmes de Hollywood, atores de
TV. E cada um tinha um carrinho de supermercado onde guardava seus
bens terrenos. Só que os carrinhos eram novinhos em folha. Reluziam
à luz da fogueira. Eu nunca vira carrinhos tão novos em nenhum
supermercado. Evidentemente, haviam sido comprados para o filme.
– Passa
a garrafa – pedi a Sarah.
Ergui-a
bem alto e tomei uma boa golada. Tornei a ouvir o psiu, seguido de
outro chiado.
– Essas
pessoas são feias – eu disse a Sarah. – Que diabos há com elas?
– Não
sei.
Voltemos
ao filme e às pessoas à luz da fogueira com seus carrinhos de
compras. Um cara falava. Os outros escutavam.
– ...eu
acordava e não reconhecia a cama onde estava, não sabia onde
estava... me vestia, saía e procurava meu carro. Jamais sabia onde
estava o carro. Às vezes levava horas pra descobrir...
– Opa,
isso é bom – eu disse a Sarah. – Já me aconteceu muitas vezes!
Ouvi
outro psiu.
– ...eu
vivia numa espelunca atrás da outra... muitas vezes perdia a
carteira... me quebravam os dentes... era uma alma penada...
penada... penada... Depois meu companheiro de farra, Mike, morreu
bêbado num acidente de carro... isso foi a gota d’água...
Sarah
tomou uma golada.
– Agora
estou em paz... durmo bem... começo a me sentir de novo um ser
humano normal... E Cristo é o meu barato, maior que qualquer bebida
que o demônio pôs nesta terra!
O
cara tinha lágrimas nos olhos.
E
aí recitou um poema:
Tornei
a me encontrar.
Multiplicado
por dez.
Eu
perdi o yen.
Sou
irmão de minha gente.
Tornei
a me encontrar.
Fez
uma mesura e os outros aplaudiram.
Aí
uma mulher começou a falar. Disse que começara a beber em festas. E
daí fora em frente. Começara a beber sozinha em casa. As plantas
morriam porque ela não as aguava. Durante uma discussão, esfaqueara
a filha com uma faca de podar. O marido começara a beber também.
Perdera o emprego. Ficava em casa. Os dois bebiam juntos. Aí ela o
esfaqueara com uma faca de podar. Um dia entrara no carro e se
mandara com a mala e os cartões de crédito. Bebia em motéis.
Fumava e bebia e via TV. Vodca. Adorava vodca. Uma noite tocara fogo
na cama. Um carro de bombeiros viera ao motel. Ela estava bêbada, de
camisola de dormir. Um dos bombeiros lhe palmeara as nádegas. Ela
saltara no carro de camisola de dormir, levando apenas a bolsa.
Dirigira sem parar, estonteada. Por volta do meio-dia do dia seguinte
estava na esquina da 4 com a Broadway. Dois dos pneus haviam se
esvaziado enquanto dirigia. Os pneus haviam se soltado e ela rodava
sobre os aros apenas, deixando fundos sulcos no asfalto. Um policial
a parara. Ela fora detida – para observação. Os dias passavam.
Nem o marido nem a filha apareciam. Estava sozinha. Um dia,
conversava com o analista, e o cara lhe perguntara: “Por que você
insiste em destruir a si mesma?”. E quando lhe perguntara isso não
era mais o rosto do analista que a olhava, era o rosto de Cristo.
Isso fora o bastante...
– Como
é que ela sabia que era o rosto de Cristo? – perguntei em voz
alta.
– Quem
é esse cara? – ouvi alguém perguntar.
Minha
garrafa de vinho se esvaziara. Meti o saca-rolha na outra.
Aí
outro cara contou a sua história. A fogueira seguia ardendo e
ardendo. Ninguém precisava alimentá-la. E não apareciam outros
vagabundos para importuná-los. Quando o cara terminou sua história,
enfiou a mão em seu carrinho de compras e sacou um violão bastante
caro.
Eu
tomei uma golada e passei o tinto para Sarah.
O
cara afinou o violão, e começou a tocar e cantar. Era afinado,
tinha a voz treinada. Cantava sem parar.
A
câmera corria em volta, captando a expressão em todos os rostos.
Estavam emocionados, alguns choravam, outros tinham suaves e belos
sorrisos. Aí o cantor acabou e recebeu entusiásticos e alegres
aplausos.
– Nunca
vi uma sarjeta desse jeito – eu disse a Sarah.
O
filme prosseguiu. Outros atores falavam. Outros tinham violões
caros. Era a noite do violão. E aí veio o grand finale.
Apareceu uma estrela cadente, que traçou um arco sobre os rostos
voltados para cima. Fez-se um breve silêncio. Aí um cara começou a
cantar. Em breve uma mulher juntou-se a ele. Depois juntaram-se
outras vozes. Todos sabiam a letra. Surgiram muitos violões. Era um
coro edificante de esperança e unidade. E acabou. O filme acabou. As
luzes se acenderam. Havia um pequeno palco. Pat Sellers subiu nele.
Aplaudiram-no.
Pat
Sellers tinha uma aparência horrível. Parecia sonolento, sem vida,
morto. Os olhos vagos. Começou a falar.
– Não
tomo um trago há quinhentos e noventa e cinco dias...
Estrugiram
aplausos.
Ele
prosseguiu:
– Sou
um alcoólatra em recuperação... Somos todos alcoólatras em
recuperação...
– Vamos
dar o fora daqui – disse Sarah.
Havíamos
acabado o vinho. Levantamo-nos e nos dirigimos para a saída. Fomos
para o nosso carro.
– Filho
da puta! – eu disse. – Onde está Jon? Por que não está aqui?
– Oh,
tenho certeza de que ele viu o filme – disse Sarah.
– Aprontou
pra gente. É meio engraçado quando se pensa na coisa.
– Eram
todos membros dos A.A. lá dentro...
Entramos
no carro e nos dirigimos para a autoestrada.
Minha
ideia sobre a coisa toda era de que a maioria das pessoas não era
alcoólatra, só pensava que era. Era algo que não podia ser
precipitado. Para alguém se tornar um verdadeiro alcoólatra,
precisava pelo menos uns vinte anos. Eu estava no meu 45º ano e não
me arrependia nem um pouco.
Chegamos
à autoestrada e nos dirigimos de volta à realidade.
Charles Bukowski, in Hollywood
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