Ilustração:
Leya Mira Brander
A
mãe, a mãe rebentava, uma grandeza aquilo que ela sentia, a
felicidade com a casa nova, dava pra gente ver, qualquer um, até
mesmo eu que era o caçula, eu que nada sabia de mudanças, que na
pele de uma já se adere outra, a mudança boa trazendo a outra no
seu bojo, a verdadeira, eu só vivia o tempo de abrir, eu ignorava
que as chaves são feitas, antes de tudo, pra fechar. Sim, a mãe
falava pouco, só o suficiente, mas, naquele agora, ela tagarelava de
lá pra cá, botando as coisas no lugar, ela no comando, suavemente,
a gente nem percebia, num instante já estávamos fazendo, felizes,
as tarefas que ela pedia: Mateus, em pé, no último degrau da
escadinha, ajudava o pai a instalar o lustre no teto da sala;
Madalena lavava os pratos e cantava aquelas músicas românticas; e
eu, eu carregava umas caixas de roupa — e era aquele vaivém da
família entre os quartos e a cozinha, a cozinha e o quintal, o
quintal e a varanda, a varanda e a sala, a sala e os quartos. A gente
no preparo para a vida nova, porque não era só mudança de casa,
mas de olhar, a gente se desestreitava de umas coisas, o mundo mais
largo, e, nele, a mãe maior, se espraiando, ela devia saber que
aquele seria o seu lugar definitivo, de muitos contentamentos, o seu
mirante pra ver as pessoas todas, incluindo a gente, os filhos,
vivendo as suas histórias, tudo no seu compasso, antes que cada um
tivesse de atravessar seu tempo de dissolução. Não era uma casa
tão maior que a anterior, não, mas tinha a varanda, o quintal, era
mais o lado de fora que alegrava a mãe, ela nunca pedia nada ao pai,
nem a nós, senão o que a vida demandava no seu natural, a nos
exigir umas aprendizagens, e seria lá na varanda que ela sentaria na
cadeira de vime, à direita do pai, aos sábados, depois do almoço,
pra descansar uns minutos, o sorriso se abrindo, vagaroso, como se
quisesse deslizar por todo o seu corpo, e ali, sem que percebêssemos,
ela vigiava a nossa alegria, a minha e a de Mateus, nós dois jogando
bola com cuidado, pra não machucar as roseiras dela, e, entre um
drible e outro, eu via o pai cochilando e, a mãe lá, quieta, as
mãos sobre as coxas, os olhos fechados, e, aquela certeza de sua
presença, sólida, abria em mim, como um zíper, o desejo grande de
que ela sempre estivesse ali, daquele jeito, pertinho de nós, pronta
para um abraço, uma palavra macia, e tudo que eu queria era que a
tarde demorasse, que a mãe se divertisse com alguma estripulia minha
e o pai roncasse pra gente rir às escondidas, que Madalena cantasse,
desafinada, no banheiro, pra zombarmos dela, porque eu, no fundo, eu
começava a compreender que nada era sempre a mesma coisa, que as
mudanças eram a força motriz do mundo; um dia estávamos na velha
casa e, de repente, nessa outra, nova e mais espaçosa, o tempo, a
gente não percebe o tempo indo, senão quando ele já se foi, quando
se misturou às águas de outro tempo que vem vindo, esse também
deslizando no seu seguinte, líquido que se milparte, e, depois, se
junta, como uma gota de mercúrio, a gente misturando o que fomos ao
que seremos. E tinha o quintal, onde o pai guardava num rancho as
suas ferramentas, a minha bicicleta, e onde a mãe botava, sobre as
cadeiras, os nossos travesseiros ao sol, pra arejar os sonhos que
neles tinham se infiltrado à noite, ou pra secar os maus presságios
que, às vezes, ensopavam um de nós, a mim, especialmente, sempre
aflito, se dormisse depois de Mateus — eu precisava dele, na parte
de baixo do beliche, zelando pelo meu sono. O quintal, que não havia
na outra casa — onde Madalena agora brincava com a Pandora, a
cachorra que ela ganhara da vizinha, e pra quem o pai logo fez uma
casinha de madeira, sim, com aquele quintal até bicho agora a gente
podia ter —, era lá que eu passava as tardes, sentado entre os
galhos da mangueira, mirando as outras casas, onde outros pais e mães
e irmãos e cachorros misturavam suas horas boas e más, vivendo uns
fatos mínimos, que depois esqueceriam ou se tornariam pedaços de
conversa, flashes retocados pelo ácido da memória, e, às
vezes, eu me via no rancho, ajudando a mãe a pendurar as roupas, o
cheiro de amaciante nos seus vestidos, nas calças do pai, no meu
uniforme escolar, e ela era tão cuidadosa, seus gestos delicados,
parecia que estava acima das coisas comuns, vendo uma grandeza na
geometria das toalhas e dos lençóis que, com esmero, suas mãos
espalhavam no varal, a mãe não fazia nada por fazer, as tarefas não
eram obrigações, mas um jeito de abrir e atravessar o dia, o mundo
sem fecho, e a vida — a vida, uma entrega ao que se faz. Eu adorava
ajudá-la naquelas providências miúdas do cotidiano, levar o saco
de lixo até a rua, enxugar a louça e os talheres que ela lavava com
sabão de coco, enquanto no forno assava o frango, ou o pão de
queijo, eu tocando, às vezes, sem querer, em seu ombro, estorvando o
seu ir e vir pela cozinha, e ela, sem reclamar, a mãe sorria, ela
estava feliz, apesar das dívidas — eu a ouvia sussurrar com o pai
sobre o dinheiro contado, a prestação da casa em atraso —, nós
ali, sendo só o que éramos, uma mãe e seu filho no meio de um dia,
sem dados pessoais, sem necessidade de nome, os dois se oferecendo ao
instante, à esperança de esticá-lo como um elástico, ou de
alargar o sentimento que experimentávamos, um minuto apenas,
aglutinado ao outro. Era um viver pequeno, para nós dois, tão
iguais, o pai às vezes dizia que eu era a versão mirim dela, e
Mateus, ciumento, reclamava que ela me protegia — era eu quem a
protegia no meu coração —, e Madalena lhe dava umas respostas
pontiagudas, que a mãe não merecia, e, se estivesse zangada com
ela, me tratava do mesmo jeito, usando seu sorriso de ironia e suas
palavras venais, O caçulinha da mamãe, vê se cresce!, sem
saudades de me ajudar nas lições de casa, nem de assistir comigo à
novela das oito, ou me pedir opinião sobre a sua roupa, Tá
combinando?, ou sobre o seu penteado, Tá bonito?, para,
logo em seguida, se desculpar, não com palavras, só com seus olhos,
da mesma cor que os da mãe — o azul atravessando gerações até
chegar às duas. E, então, depois de uns dias de caos, caixas e
caixas espalhadas pela casa, ninguém sabia onde uns objetos tinham
ido parar — alguns se perderam para sempre, outros reapareceram de
repente —, as coisas na nova casa foram ganhando seu lugar
definitivo, assim também se dá com as pessoas em nós, cada uma no
seu canto, obediente, mesmo se o espaço não coincidisse com o que
mereciam, a mãe sempre dizendo pra cuidarmos do importante, e tudo,
aos poucos, se ajeitou, a gente cabendo no nosso sonho, adaptados,
redimidos, sabendo que ninguém tem o segredo, que ninguém pode
viver duas vezes na mesma pele. Roupas nas gavetas, panelas nos
armários, espelhos nos banheiros, e só o mundo se debatendo,
enlouquecido, no fundo de nós, pronto pra nos impulsionar a lutas
menores — a maior, sempre a da gente com a gente —, e aí as
primeiras visitas chegando, a mãe já a coar o café, ávidas para
(as ciumentas) descobrir defeitos nas paredes, no teto, nos azulejos
fora de moda da cozinha (que o pai prometeu trocar), ou para
minimizá-los (as compassivas), Devagar vocês vão reformando,
todas fiéis à sua-nossa condição, e a mãe quase nem se lembrava
de guiá-las — como fazem as donas de casa nova, mais ocupadas com
a sua aparência do que com o seu miolo —, mostrando os cômodos, o
quintal, a varanda, ela sabia que o sentimento por aquelas paredes
era apenas seu, a mãe, com a sua conversa emoliente, entrava nas
pessoas, igual a elas na casa, e ia, contente, encontrando as portas
destravadas, ou abrindo-as com paciência, a mãe pedia conselhos às
visitas, quando elas é que deveriam receber os seus, e se mantinha
abraçada ao silêncio, ouvindo-as atentamente, a mãe respeitava
todo mundo, até nós, seus filhos pequenos, como se pudesse aprender
algo conosco, ela era uma raiz que não se escondia, emergira da
terra e deslizava a céu aberto. E aí, claro, fomos nos habituando
àquele novo espaço que nos impunha outras medidas, os dias vindo,
como ovos, frágeis e misteriosos, e, ao quebrá-los, com a fome de
provar a sua gema, fomos descobrindo, às vezes interessados, às
vezes indiferentes, os vizinhos e a dinâmica de suas vidas, tanto
quanto eles a nossa, e, assim, íamos nos aceitando, o pai já amigo
do dono do sobradinho da esquina, Madalena no flerte com o filho
dele, eu e Mateus jogando bola com os meninos da casa da frente, a
mãe a circular, à vontade, entre as mulheres, como se as conhecesse
desde sempre, e, na ordem normal das coisas, a mistura das águas ia
se dando, tranquila, o convite para um almoço no sobradinho, para
ver o último capítulo da novela na tevê em cores da vizinha, a
festa de aniversário da mãe, a varanda e o quintal se enchendo de
desconhecidos, que no avançar das horas se tornavam familiares, a
gente querendo se dar ao instante plenamente, ainda que pouco dele,
só resíduo, fosse restar depois na lembrança. E, quando
percebemos, estávamos ali já há alguns meses, e tudo ia bem —
tudo ia bem, até que a mãe passou mal uma tarde e logo atrás veio
a notícia. Foi aí que eu me dei conta, foi aí que eu entendi que,
naquele dia, no instante em que a mãe, com a chave na mão, a
alegria nela dos pés à cabeça, no instante em que abria a porta da
casa, justo naquele instante, ela estava se fechando para a nova
vida.
João Anzanello Carrascoza, in Aquela Água toda
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