terça-feira, 2 de maio de 2023

Chave

Ilustração: Leya Mira Brander

A mãe, a mãe rebentava, uma grandeza aquilo que ela sentia, a felicidade com a casa nova, dava pra gente ver, qualquer um, até mesmo eu que era o caçula, eu que nada sabia de mudanças, que na pele de uma já se adere outra, a mudança boa trazendo a outra no seu bojo, a verdadeira, eu só vivia o tempo de abrir, eu ignorava que as chaves são feitas, antes de tudo, pra fechar. Sim, a mãe falava pouco, só o suficiente, mas, naquele agora, ela tagarelava de lá pra cá, botando as coisas no lugar, ela no comando, suavemente, a gente nem percebia, num instante já estávamos fazendo, felizes, as tarefas que ela pedia: Mateus, em pé, no último degrau da escadinha, ajudava o pai a instalar o lustre no teto da sala; Madalena lavava os pratos e cantava aquelas músicas românticas; e eu, eu carregava umas caixas de roupa — e era aquele vaivém da família entre os quartos e a cozinha, a cozinha e o quintal, o quintal e a varanda, a varanda e a sala, a sala e os quartos. A gente no preparo para a vida nova, porque não era só mudança de casa, mas de olhar, a gente se desestreitava de umas coisas, o mundo mais largo, e, nele, a mãe maior, se espraiando, ela devia saber que aquele seria o seu lugar definitivo, de muitos contentamentos, o seu mirante pra ver as pessoas todas, incluindo a gente, os filhos, vivendo as suas histórias, tudo no seu compasso, antes que cada um tivesse de atravessar seu tempo de dissolução. Não era uma casa tão maior que a anterior, não, mas tinha a varanda, o quintal, era mais o lado de fora que alegrava a mãe, ela nunca pedia nada ao pai, nem a nós, senão o que a vida demandava no seu natural, a nos exigir umas aprendizagens, e seria lá na varanda que ela sentaria na cadeira de vime, à direita do pai, aos sábados, depois do almoço, pra descansar uns minutos, o sorriso se abrindo, vagaroso, como se quisesse deslizar por todo o seu corpo, e ali, sem que percebêssemos, ela vigiava a nossa alegria, a minha e a de Mateus, nós dois jogando bola com cuidado, pra não machucar as roseiras dela, e, entre um drible e outro, eu via o pai cochilando e, a mãe lá, quieta, as mãos sobre as coxas, os olhos fechados, e, aquela certeza de sua presença, sólida, abria em mim, como um zíper, o desejo grande de que ela sempre estivesse ali, daquele jeito, pertinho de nós, pronta para um abraço, uma palavra macia, e tudo que eu queria era que a tarde demorasse, que a mãe se divertisse com alguma estripulia minha e o pai roncasse pra gente rir às escondidas, que Madalena cantasse, desafinada, no banheiro, pra zombarmos dela, porque eu, no fundo, eu começava a compreender que nada era sempre a mesma coisa, que as mudanças eram a força motriz do mundo; um dia estávamos na velha casa e, de repente, nessa outra, nova e mais espaçosa, o tempo, a gente não percebe o tempo indo, senão quando ele já se foi, quando se misturou às águas de outro tempo que vem vindo, esse também deslizando no seu seguinte, líquido que se milparte, e, depois, se junta, como uma gota de mercúrio, a gente misturando o que fomos ao que seremos. E tinha o quintal, onde o pai guardava num rancho as suas ferramentas, a minha bicicleta, e onde a mãe botava, sobre as cadeiras, os nossos travesseiros ao sol, pra arejar os sonhos que neles tinham se infiltrado à noite, ou pra secar os maus presságios que, às vezes, ensopavam um de nós, a mim, especialmente, sempre aflito, se dormisse depois de Mateus — eu precisava dele, na parte de baixo do beliche, zelando pelo meu sono. O quintal, que não havia na outra casa — onde Madalena agora brincava com a Pandora, a cachorra que ela ganhara da vizinha, e pra quem o pai logo fez uma casinha de madeira, sim, com aquele quintal até bicho agora a gente podia ter —, era lá que eu passava as tardes, sentado entre os galhos da mangueira, mirando as outras casas, onde outros pais e mães e irmãos e cachorros misturavam suas horas boas e más, vivendo uns fatos mínimos, que depois esqueceriam ou se tornariam pedaços de conversa, flashes retocados pelo ácido da memória, e, às vezes, eu me via no rancho, ajudando a mãe a pendurar as roupas, o cheiro de amaciante nos seus vestidos, nas calças do pai, no meu uniforme escolar, e ela era tão cuidadosa, seus gestos delicados, parecia que estava acima das coisas comuns, vendo uma grandeza na geometria das toalhas e dos lençóis que, com esmero, suas mãos espalhavam no varal, a mãe não fazia nada por fazer, as tarefas não eram obrigações, mas um jeito de abrir e atravessar o dia, o mundo sem fecho, e a vida — a vida, uma entrega ao que se faz. Eu adorava ajudá-la naquelas providências miúdas do cotidiano, levar o saco de lixo até a rua, enxugar a louça e os talheres que ela lavava com sabão de coco, enquanto no forno assava o frango, ou o pão de queijo, eu tocando, às vezes, sem querer, em seu ombro, estorvando o seu ir e vir pela cozinha, e ela, sem reclamar, a mãe sorria, ela estava feliz, apesar das dívidas — eu a ouvia sussurrar com o pai sobre o dinheiro contado, a prestação da casa em atraso —, nós ali, sendo só o que éramos, uma mãe e seu filho no meio de um dia, sem dados pessoais, sem necessidade de nome, os dois se oferecendo ao instante, à esperança de esticá-lo como um elástico, ou de alargar o sentimento que experimentávamos, um minuto apenas, aglutinado ao outro. Era um viver pequeno, para nós dois, tão iguais, o pai às vezes dizia que eu era a versão mirim dela, e Mateus, ciumento, reclamava que ela me protegia — era eu quem a protegia no meu coração —, e Madalena lhe dava umas respostas pontiagudas, que a mãe não merecia, e, se estivesse zangada com ela, me tratava do mesmo jeito, usando seu sorriso de ironia e suas palavras venais, O caçulinha da mamãe, vê se cresce!, sem saudades de me ajudar nas lições de casa, nem de assistir comigo à novela das oito, ou me pedir opinião sobre a sua roupa, Tá combinando?, ou sobre o seu penteado, Tá bonito?, para, logo em seguida, se desculpar, não com palavras, só com seus olhos, da mesma cor que os da mãe — o azul atravessando gerações até chegar às duas. E, então, depois de uns dias de caos, caixas e caixas espalhadas pela casa, ninguém sabia onde uns objetos tinham ido parar — alguns se perderam para sempre, outros reapareceram de repente —, as coisas na nova casa foram ganhando seu lugar definitivo, assim também se dá com as pessoas em nós, cada uma no seu canto, obediente, mesmo se o espaço não coincidisse com o que mereciam, a mãe sempre dizendo pra cuidarmos do importante, e tudo, aos poucos, se ajeitou, a gente cabendo no nosso sonho, adaptados, redimidos, sabendo que ninguém tem o segredo, que ninguém pode viver duas vezes na mesma pele. Roupas nas gavetas, panelas nos armários, espelhos nos banheiros, e só o mundo se debatendo, enlouquecido, no fundo de nós, pronto pra nos impulsionar a lutas menores — a maior, sempre a da gente com a gente —, e aí as primeiras visitas chegando, a mãe já a coar o café, ávidas para (as ciumentas) descobrir defeitos nas paredes, no teto, nos azulejos fora de moda da cozinha (que o pai prometeu trocar), ou para minimizá-los (as compassivas), Devagar vocês vão reformando, todas fiéis à sua-nossa condição, e a mãe quase nem se lembrava de guiá-las — como fazem as donas de casa nova, mais ocupadas com a sua aparência do que com o seu miolo —, mostrando os cômodos, o quintal, a varanda, ela sabia que o sentimento por aquelas paredes era apenas seu, a mãe, com a sua conversa emoliente, entrava nas pessoas, igual a elas na casa, e ia, contente, encontrando as portas destravadas, ou abrindo-as com paciência, a mãe pedia conselhos às visitas, quando elas é que deveriam receber os seus, e se mantinha abraçada ao silêncio, ouvindo-as atentamente, a mãe respeitava todo mundo, até nós, seus filhos pequenos, como se pudesse aprender algo conosco, ela era uma raiz que não se escondia, emergira da terra e deslizava a céu aberto. E aí, claro, fomos nos habituando àquele novo espaço que nos impunha outras medidas, os dias vindo, como ovos, frágeis e misteriosos, e, ao quebrá-los, com a fome de provar a sua gema, fomos descobrindo, às vezes interessados, às vezes indiferentes, os vizinhos e a dinâmica de suas vidas, tanto quanto eles a nossa, e, assim, íamos nos aceitando, o pai já amigo do dono do sobradinho da esquina, Madalena no flerte com o filho dele, eu e Mateus jogando bola com os meninos da casa da frente, a mãe a circular, à vontade, entre as mulheres, como se as conhecesse desde sempre, e, na ordem normal das coisas, a mistura das águas ia se dando, tranquila, o convite para um almoço no sobradinho, para ver o último capítulo da novela na tevê em cores da vizinha, a festa de aniversário da mãe, a varanda e o quintal se enchendo de desconhecidos, que no avançar das horas se tornavam familiares, a gente querendo se dar ao instante plenamente, ainda que pouco dele, só resíduo, fosse restar depois na lembrança. E, quando percebemos, estávamos ali já há alguns meses, e tudo ia bem — tudo ia bem, até que a mãe passou mal uma tarde e logo atrás veio a notícia. Foi aí que eu me dei conta, foi aí que eu entendi que, naquele dia, no instante em que a mãe, com a chave na mão, a alegria nela dos pés à cabeça, no instante em que abria a porta da casa, justo naquele instante, ela estava se fechando para a nova vida.

João Anzanello Carrascoza, in Aquela Água toda

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