NESSA
ÉPOCA MINHA MÃE morava sozinha em um pequeno apartamento em
Jamaica, Long Island, trabalhava em uma fábrica de sapatos,
esperando que eu retornasse ao lar para lhe fazer companhia e levá-la
ao Radio City uma vez por mês. Mantinha um quarto minúsculo à
minha espera, roupa lavada no armário, lençóis limpos na cama. Foi
um alívio depois de todos aqueles sacos de dormir, beliches e poeira
das estradas de ferro. Foi mais uma das muitas oportunidades que ela
me deu durante sua vida para simplesmente ficar em casa e escrever.
Sempre
dou a ela tudo o que sobra dos meus pagamentos. Me instalei para
longas sonecas sossegadas, para dias inteiros de meditação em casa,
para escrever e para extensas caminhadas pela velha e querida
Manhattan, a meia hora dali de metrô. Percorri as ruas, as pontes,
Times Square, cafés, o cais, visitei todos os meus amigos poetas
beatniks e perambulei com eles, tive casos com garotas do Village e
fiz tudo isso com aquela imensa e louca alegria que se sente quando
se retorna a Nova York.
Tenho
escutado grandes cantores negros a chamarem de “A Maçã”!
“Ali
está agora a vossa cidade insular dos manhattoes, envolta pelo
cais”, cantou Herman Melville.
“Envolta
por marés flamejantes”, recitou Thomas Wolfe.
Vistas
completas de Nova York por toda parte, de New Jersey, dos
arranha-céus.
ATÉ
DE BARES, como um bar da Third Avenue – quatro da tarde, os homens
riem ruidosamente, copos retinindo junto com os pés na barra de
latão do balcão, excitação do tipo “vamos lá, pessoal” –
outubro no ar, no sol do veranico na porta. – Entram dois
vendedores da Madison Avenue que passaram o dia inteiro trabalhando,
jovens, bem-vestidos, roupas justas, charuto na boca, satisfeitos por
terem ganho o dia e pelo drinque que está a caminho, avançam lado a
lado sorridentes, mas não há espaço no balcão congestionado e
barulhento (Merda!), por isso ficam de pé à espera, rindo e
conversando. – Os homens amam os bares, e os bons bares merecem ser
amados. – Esse aqui está repleto de homens de negócios,
operários, Finn MacCools do Tempo. – Velhos beberrões grisalhos
de macacão enxugando cerveja alegres. – Caminhoneiros anônimos
com lanternas dependuradas no cinto – velhos bebedores de cerveja
alquebrados erguendo tristemente os lábios arroxeados para os
píncaros felizes da bebedeira. – Os bartenders são rápidos,
solícitos, interessados tanto em seu trabalho como na clientela. –
Como em Dublin às 4h30 da tarde, quando o trabalho termina, mas aqui
é a fantástica Third Avenue de Nova York, almoço grátis, cheiros
da rua triste, rio de dejetos, almoço na estrada suja, portas que se
fecham, heróis guitarristas de suíças longas, aroma nos degraus de
madeira das soleiras do entardecer sonolento. – Mas são as torres
de Nova York se erguendo mais além, vozes se chocam e se confundem
falando e mastigando a fofoca até Earwicker abrir o jogo – Ah,
Jack Fitzgerald Mighty Murphy, onde anda você? – Trabalhadores
braçais semicalvos de camisas azuis remendadas e jeans puídos
empunham copos de cerveja de fim de tarde coroados de espuma branca.
– O metrô trepida por baixo do bar enquanto o executivo de chapéu
e colete mas sem paletó troca o pé esquerdo pelo direito na barra
de latão sob o balcão. – Um negro de chapéu, respeitável,
jovem, de jornal embaixo do braço, se despede ao balcão, simpático
e paternal, se inclinando sobre os outros homens – um ascensorista
parado ali no canto. – E não era aqui, segundo contam, que Novak,
o corretor de imóveis, costumava ficar de pé até altas horas da
noite para se arranjar e enriquecer em sua cela branca de verme
noturno datilografando relatórios e cartas, mulher e filhos furiosos
em casa às onze da noite – ambicioso, preocupado, em um pequeno
escritório da Island, bem ali naquela rua, sem dignidade, mas aberto
a qualquer tipo de negócio e na infância qualquer negócio pode ser
pequeno e a ambição grande – está agora servindo de adubo para
quantas margaridas? e jamais juntou seu milhão, nunca bebeu um copo
com So Long Gee Gee e I Love You Too nessa cervejaria
do entardecer com homens eufóricos girando nos tamboretes e
arrastando os saltos dos sapatos pela barra de latão em Nova York. –
Nunca chamou Old Glasses para brindar seu nariz vermelho e batatudo
com um trago – jamais sorriu nem permitiu às moscas utilizarem seu
nariz como ponto de referência – mas criou uma úlcera no meio da
noite para enriquecer e proporcionar o melhor à sua família. –
Por isso seu cobertor agora é a melhor porção de terra americana,
produzida nos moinhos do saxão com cara de lua de Hudson Bay e
trazida até aqui por um pintor de macacão branco (em silêncio)
para cercear a jornada de sua outrora una carne, e permitir que os
vermes se enterrem nela – Cerca! Vamos lá, mais uma cerveja, seus
beberrões – Malditos canequeiros! Amantes!
MEUS
AMIGOS E EU temos nossa maneira especial de nos divertirmos em Nova
York sem gastar muita grana e principalmente sem sermos importunados
por chatos formalistas, como por exemplo uma noitada grã-fina no
baile da prefeitura. – Não precisamos apertar mãos, não
precisamos marcar encontros e nos sentimos ótimos. – Vagabundeamos
sem rumo como crianças. – Entramos nas festas e dizemos a todo
mundo o que temos feito, e as pessoas pensam que estamos nos
exibindo. – Dizem: “Oh, olhem os beatniks!”.
Vai
aqui, como exemplo, uma noite típica: –
Emergindo
do metrô da 7th Avenue na 42nd Street, você passa pelo mictório
mais arrebentado de Nova York – nunca se sabe se está aberto ou
não, geralmente há uma enorme corrente atravessada em frente à
porta dizendo que está estragado, ou então tem um monstro decrépito
de cabelos brancos se arrastando na entrada, um mictório pelo qual
todos os sete milhões de habitantes de Nova York já passaram pelo
menos uma vez e repararam em sua estranheza – a seguir você cruza
pelo novo quiosque de hambúrgueres na brasa, bancas de bíblias,
jukeboxes automáticas e uma mísera banca subterrânea de revistas
usadas ao lado de uma tenda de amendoins cheirando a arcadas de metrô
– aqui e ali um exemplar usado do velho bardo Plotino metido entre
pedaços de coleções de livros didáticos alemães – onde vendem
longos cachorros-quentes de aspecto nojento (não, na verdade são
bastante atraentes, principalmente se você não tem quinze centavos
e procura alguém na Bickford’s Cafeteria que aceite abrir um
crédito para você) (que possa emprestar uns trocados).
Depois
de subir a escadaria, as pessoas permanecem horas e horas tagarelando
na chuva, com os guarda-chuvas encharcados – bandos de garotos de
jeans, loucos de medo de entrar no exército, em pé no meio da
escada sobre degraus de ferro à espera sabe Deus do que, certamente
há entre eles alguns heróis românticos recém-chegados de Oklahoma
com ambições de acabar entre suspiros nos braços de alguma jovem
loira sexy e imprevisível em uma cobertura do Empire State Building
– provavelmente alguns deles estão parados ali sonhando ser donos
do Empire State Building por obra e graça de algum passe de mágica
com o qual sonharam junto a um regato do interior próximo a uma
velha casa caindo aos pedaços nos arredores de Texarkana. – Com
vergonha de serem vistos na fila para entrar em um filme de sacanagem
(o filme, como se chama?) na calçada em frente ao New York Times –
O leão e o tigre passando, como Tom Wolfe costumava dizer a respeito
de certos sujeitos cruzando aquela esquina.
Recostado
naquela loja de charutos com uma infinidade de cabines telefônicas
na esquina da 42nd com a Seventh, onde você dá belos telefonemas
observando a rua, e ali dentro parece muito aconchegante enquanto lá
fora chove e parece uma boa ideia prolongar a conversação, quem
você vê? Equipes de beisebol? Treinadores de basquete? Todos
aqueles sujeitos do rinque de patinação vão ali? Caras do Bronx em
busca de ação, mas na real a fim de romance? Estranhas duplas de
garotas saindo de filmes de sacanagem? Você já as viu alguma vez
antes? Ou homens de negócios aturdidos de porre, com chapéus
enviesados nas cabeças grisalhas, fitando catatonicamente os
letreiros que flutuam no alto do prédio do Times, exibindo frases
enormes a respeito de Khrushchev, populações da Ásia enumeradas em
lâmpadas que acendem e apagam, sempre quinhentos pontos depois de
cada frase. – De súbito surge na esquina um policial
psicoticamente preocupado e manda todo mundo circular. – Esse é o
centro da maior cidade que o mundo jamais conheceu, e isso é o que
os beatniks fazem aqui. – “Ficar parado na esquina esperando
ninguém é Poder”, profetizou o poeta Gregory Corso.
Em
vez de ir a boates – se você está na posição de quem pode
frequentar boates (a maioria dos beatniks chacoalha bolsos vazios
quando passa pelo Birdland) – como é estranho parar na calçada e
apenas observar aquele esquisitão excêntrico da Second Avenue que
parece Napoleão ao passar, esmigalhando os pedaços de pão em seu
bolso, ou um garoto de quinze anos e cara atrevida, ou alguém que de
repente passa zunindo com um boné de beisebol (porque é isso que
você vê) e finalmente uma senhora com sete chapéus e um longo
casaco de peles esfarrapado em plena noite de verão carregando uma
enorme bolsa de lã russa cheia de pedacinhos de papel amassado onde
se lê “Festival Foundation Inc., 70 mil Germes” e traças saindo
de suas mangas – ela aborda e perturba os shriners. E
soldados sem guerra com sacos de lona – tocadores de harmônica
saídos de trens de carga. – Claro que há nova-iorquinos normais,
que parecem ridiculamente deslocados e tão esquisitos quanto sua
própria esquisitice elegante, carregando pizzas e jornais diários e
a caminho de porões escuros ou trens da Pensilvânia – o próprio
W. H. Auden pode ser visto todo atrapalhado sob a chuva – Paul
Bowles, alinhado em um terno de poliéster, retornando de uma viagem
ao Marrocos, o fantasma do próprio Herman Melville seguido por
Bartleby, o autor de Wall Street, e Pierre, o hipster ambíguo de
1848 dando um passeio – para ver o que há de novo nos flashes
noticiosos do Times. – Voltemos à banca de jornais da esquina. –
EXPLOSÃO ESPACIAL... O PAPA LAVA OS PÉS DOS POBRES...
Vamos
cruzar a rua até o Grant’s, nosso restaurante predileto. Por 65
centavos você descola uma enorme porção de mexilhões fritos, um
monte de batatas fritas, uma pequena porção de salada de repolho,
um pouco de molho tártaro, uma tacinha de molho vermelho para peixe,
uma rodela de limão, duas fatias de pão de centeio e um pedacinho
de manteiga, e por mais dez centavos um copo de uma excelente cerveja
de raiz de vidoeiro. – Que festim comer aqui! Bandos de espanhóis
em pé engolindo cachorros-quentes encostados nos enormes potes de
mostarda. – Dez balcões diferentes com diferentes especialidades.
– Sanduíches de queijo por dez centavos, dois bares para o
Apocalipse, oh sim, e ótimos garçons indiferentes. – E tiras
comendo de graça lá nos fundos – saxofonistas bêbados cochilando
– respeitáveis punguistas solitários esfarrapados da Hudson
Street sorvendo sua sopa sem trocar uma palavra com ninguém, os
dedos negros, uau. – Vinte mil clientes por dia – cinquenta mil
nos dias de chuva – cem mil quando neva. – Aberto vinte e quatro
horas por noite. Intimidade – absoluta, sob uma forte luz vermelha
repleta de conversações. – Toulouse-Lautrec, com sua deformidade
e sua bengala, rabiscando em um canto. – Você pode ficar ali por
cinco minutos e devorar sua comida ou então permanecer horas
mantendo uma conversa filosófica insana com seu companheiro e se
surpreendendo com as pessoas. – “Vamos comer um cachorro-quente
antes de ir ao cinema!”, e aí você fica tão doido lá dentro que
não vai a cinema nenhum porque aquilo ali é muito melhor do que um
filme de Doris Day em férias no Caribe.
“Mas
o que faremos esta noite? Marty queria ir ao cinema, mas vamos
descolar alguma coisa para fazer a cabeça. – Vamos até o
Automat.”
“Espera
um pouco, preciso engraxar os sapatos em cima de algum hidrante.”
“Você
não quer dar uma espiada no espelho deformante?”
“Está
a fim de tirar quatro fotos por 25 centavos? Afinal, estamos na cena
eterna. Poderemos olhar as fotos e recordar disso tudo quando formos
velhos e sábios Thoreaus de cabelos grisalhos em cabanas.”
“Ah,
já não há mais espelhos deformantes por aqui, antigamente tinha
espelhos deformantes aqui.”
“Que
tal o cinema Laff?”
“Também
já era.”
“Tem
o circo de pulgas.”
“E
ainda tem coristas?”
“O
burlesco já acabou há milhões e milhões de anos.”
“Vamos
até o Automat ver aquelas velhotas comendo feijões, ou os
surdos-mudos parados diante da janela enquanto você os observa e
tenta decifrar a linguagem invisível à medida que ela voa pela
janela, de face para face e de dedo para dedo...? Por que a Times
Square parece uma imensa sala?”
Do
outro lado da rua fica o Bickford’s, bem no meio do quarteirão,
sob a marquise do Apollo Theater e ao lado de uma livraria minúscula
especializada em Havelock Ellis e Rabelais com milhares de maníacos
sexuais remexendo nos caixotes. – O Bickford’s é o maior palco
da Times Square – muita gente tem perambulado por ali há anos,
homens e meninos em busca sabe Deus de que, talvez de algum anjo da
Times Square que transforme aquela grande sala em um lar, o velho lar
doce lar – a civilização precisa disso. – Aliás, o que a Times
Square está fazendo ali? O melhor mesmo é aproveitá-la. – A
maior cidade que o mundo jamais viu. – Será que há uma Times
Square em Marte? O que a Bolha Assassina faria em Times Square? Ou
San Francisco?
Uma
garota desce de um ônibus no Port Authority Terminal e entra no
Bickford’s, garota chinesa, sapatos vermelhos, senta para beber um
chá, à espera do papai.
Há
toda uma população flutuante em torno da Times Square que, dia e
noite, faz sempre do Bickford’s seu quartel-general. Nos velhos
tempos da geração beat, alguns poetas costumavam ir até ali para
encontrar o famoso personagem “Hunkey”, que aparecia de vez em
quando, com uma capa de chuva preta grande demais e uma cigarreira, à
procura de alguém para vender uma cautela de objetos penhorados –
máquina de escrever Remington, rádio portátil, capa de chuva preta
– para descolar um trago, (conseguir uma grana) para poder ir para
a parte alta da cidade arrumar confusão com os tiras ou com alguns
de seus rapazes. Alguns gangsters imbecis da 8th Avenue também
costumavam dar as caras por lá – talvez ainda o façam – os dos
velhos tempos estão na cadeia ou no cemitério. Agora os poetas vão
lá apenas para fumar um cachimbo da paz, à procura do fantasma de
Hunkey ou de seus rapazes, e para sonhar diante de desbotadas xícaras
de chá.
Os
beatniks garantem que, se você fosse lá todas as noites e lá
permanecesse, poderia iniciar por si mesmo uma temporada completa de
Dostoiévski bem ali na Times Square, conhecer todos os colunistas
fofoqueiros dos jornais da madrugada e seus casos, famílias e
infortúnios – fanáticos religiosos que levariam você para casa e
fariam longos sermões na mesa da cozinha sobre o “novo apocalipse”
e ideias assemelhadas: “Meu ministro batista de Winston-Salem disse
que Deus inventou a televisão para que, quando Cristo retornar à
terra, eles O crucifiquem nas ruas dessa Babilônia daqui, e as
câmeras de TV estejam apontadas para a cena, e então o sangue
escorrerá pelas ruas, e todos os olhos hão de ver”.
Se
continuar com fome, vá até a Cafeteria Oriental – também um
“restaurante favorito” – um pouco de vida noturna – barato –
no subterrâneo bem em frente do monolítico terminal de ônibus de
Port Authority na 40 th Street, e coma enormes cabeças de carneiro
gordurosas com arroz grego por noventa centavos. – Exóticas
melodias orientais ondulantes na jukebox.
Dependendo
do quão chapado você esteja agora – presumindo que tenha
descolado algum lance em uma das esquinas – digamos na 42th Street
com 8th Avenue, perto da imensa drogaria Whelan, outro antro
solitário onde se pode encontrar algumas pessoas – prostitutas
negras, damas de andar vacilante em psicose de benzedrina. – Do
outro lado da rua se pode ver as já iniciadas ruínas de Nova York –
o Globe Hotel sendo posto abaixo, um buraco como o de um dente caído
em plena 44th Street – e o edifício verde da McGraw-Hill
arranhando o céu, mais alto do que se possa imaginar – solitário,
apontando em direção ao rio Hudson, onde os cargueiros esperam sob
a chuva sua pedra calcária vinda de Montevidéu.
O
melhor é ir para casa, está ficando tarde. – Ou: “Vamos ao
Village ou ao Lower East Side ouvir Symphony Sid no rádio – ou
tocar nossos discos indígenas – e comer enormes bifes
porto-riquenhos mortos – ou guisado de mondongo – ver se Bruno
andou cortando mais capotas de automóveis no Brooklyn – embora
Bruno ande mais calmo agora, talvez tenha escrito um novo poema”.
Ou
ver televisão. Vida noturna – Oscar Levant falando da sua
melancolia no programa de Jack Paar.
O
Five Spot, na 5th Street com a Bowery, às vezes apresenta Thelonious
Monk no piano e a rapaziada aparece por lá. Quem conhece o dono pode
se sentar de graça em uma mesa com uma cerveja, quem não conhece
pode entrar sorrateiramente e ficar próximo ao ventilador,
escutando. Nos fins de semana está sempre lotado. Monk medita em
abstração mortífera, clonk, faz uma declaração, o pé enorme
batendo delicadamente no chão, cabeça virada para o lado,
escutando, e então entra o piano.
Lester
Young tocou lá pouco antes de morrer e entre um número e outro se
sentava na cozinha, nos fundos. Meu amigo poeta Allen Ginsberg foi
lá, se ajoelhou e perguntou o que ele faria caso uma bomba atômica
caísse em Nova York. Lester respondeu que pelo menos quebraria a
vitrine da Tiffany’s e apanharia algumas joias. Também disse: “O
que você está fazendo ajoelhado?”, sem perceber que era um dos
grandes heróis da geração beat, hoje consagrado. O Five Spot é
mal-iluminado, tem garçons estranhos e boa música sempre, às vezes
John “Train” Coltrane inunda a casa inteira com as notas ásperas
de seu grande sax tenor. Nos fins de semana, grupos de gente elegante
da parte alta da cidade lotam a casa e conversam sem parar –
ninguém liga.
Oh,
quem sabe umas duas horas no Egyptian Gardens do Lower West Side, em
Chelsea, a zona dos restaurantes gregos. – Copos de ouzo, bebida
grega e lindas garotas dançando a dança do ventre com sutiãs
bordados com lantejoulas, a incomparável Zara ondulando na pista
como um mistério ao ritmo das flautas e ao tilintar das notas gregas
– quando não está dançando, Zara se senta na orquestra com olhos
sonhadores, os homens batucando um tambor contra o ventre dela. –
Vastas multidões do que parecem ser casais de subúrbio se sentam às
mesas e acompanham com palmas o flutuante ritmo oriental. – Quem
chega atrasado tem que ficar encostado à parede.
Quer
dançar? Garden Bar, na 3rd Avenue, onde se pode praticar fantásticas
danças bem agitadas na pequena saleta dos fundos ao som de uma
jukebox, barato, o garçom nem liga.
Quer
conversar apenas? Cedar Bar, na University Place, onde aparecem todos
os pintores e onde um garoto de dezesseis anos passou uma tarde
esguichando vinho tinto de um odre espanhol para dentro da boca dos
amigos, errando sempre...
Os
clubes noturnos do Greenwich Village conhecidos por Half Note,
Village Vanguard, Café Bohemia e Village Gate também apresentam
jazz (Lee Konitz, J. J. Johnson, Miles Davis), mas é preciso ter
muita grana e não é só isso, é que a triste atmosfera comercial
está matando o jazz, e o jazz está matando a si mesmo ali, porque o
jazz pertence às cervejarias baratas, alegres e abertas a todos,
como no início.
Há
uma grande festa no loft de um pintor qualquer, um louco som flamengo
na vitrola em alto volume, de repente as garotas se tornam todas
quadris e calcanhares, e as pessoas tentam dançar entre seus cabelos
esvoaçantes. – Homens perdem a cabeça e começam a se agarrar às
pessoas, voam objetos pelos ares, uns sujeitos agarram outros pelos
joelhos e os erguem a dois metros e meio do chão, se desequilibram,
mas ninguém se machuca, blonk. – Garotas se equilibram com as mãos
apoiadas nos joelhos dos homens, as saias delas caem, revelando
rendinhas em suas coxas. – Por fim todo mundo se veste para voltar
para casa, e o anfitrião observa, aturdido: “Vocês parecem todos
tão respeitáveis!”.
Ou
alguém fez um lançamento, ou há leitura de poemas no Living
Theater, ou no Gaslight Café, ou na Seven Arts Coffee Gallery, nas
imediações da Times Square (9th Avenue e 43rd Street, lugar
extraordinário) (nas sextas-feiras começa à meia-noite), depois
dali todo mundo corre de volta para o velho bar do agito. – Ou
então uma festança na casa de Leroi Jones – ele tem um novo
exemplar da Yugen Magazine impresso por ele mesmo em uma máquina
caindo aos pedaços, e lá estão os poemas de toda a rapaziada, de
San Francisco a Gloucester, Massachussetts, e custa apenas cinquenta
centavos. – Editor histórico, hipster secreto da matéria. –
Leroi está começando a ficar farto de festas, todos sempre arrancam
a camisa, começam a dançar, três garotas sentimentais se grudam ao
poeta Raymond Bremser, meu camarada Gregory Corso discute com um
jornalista do Post de Nova York e diz: “Mas você não compreende o
pranto Canguriano! Abandone sua profissão! Vá se refugiar nas ilhas
Enchenedianas!”.
Vamos
cair fora daqui, é literário demais. – Vamos nos embebedar na
Bowery ou comer aquele macarrão comprido com copos de chá no Hong
Pat’s em Chinatown. – Por que estamos sempre comendo? Vamos dar
uma caminhada pela ponte do Brooklyn e abrir o apetite outra vez. –
Que tal um pouco de quiabo na Sands Street?
Oh,
fantasma de Hart Crane!
“VAMOS
VER se encontramos Don Joseph!”
“Quem
é Don Joseph?”
Don
Joseph é um fantástico trompetista que perambula pelo Village, de
bigodinho e braços caídos segurando o trompete, que se estala
quando ele toca mansamente, ou melhor murmura, o melhor e mais suave
dos trompetes desde Bix e mais. – Ele fica parado junto à jukebox
do bar e acompanha a música em troca de cerveja. – Parece um galã
de cinema. – É o incrível, secreto superglamourouso Bobby Hackett
do mundo do jazz.
E
tem aquele sujeito, Tony Fruscella, que senta de pernas cruzadas no
tapete, toca Bach de ouvido no trompete, e mais tarde da noite toca
com os rapazes em uma sessão de jazz moderno –
Ou
George Jones, o oculto da Bowery, que toca um tenor maravilhoso nos
parques ao nascer do dia com Charley Mariano, só de curtição,
porque amam o jazz, e uma vez no cais, ao nascer do sol, tocaram uma
sessão inteira enquanto um sujeito batia com um pedaço de pau na
doca para marcar o ritmo.
Falando
dos malucos da Bowery, que me dizem de Charley Mills, que percorre a
rua com vadios que bebem suas garrafas de vinho cantando em uma
escala de doze tons?
“Vamos
ver os incríveis e estranhos pintores secretos da América e
discutir com eles seus quadros e suas visões – Iris Brodie com sua
delicada filigrana bizantina de virgens –”
“Ou
Miles Frost e seu touro negro na caverna alaranjada.”
“Ou
Franz Klein e suas teias de aranha.”
“Suas
malditas teias de aranha!”
“Ou
Willem de Kooning e seu Branco.”
“Ou
Robert De Niro.”
“Ou
Dody Muller e sua Anunciação em flores de 2,1 metros de altura.”
“Ou
Al Leslie e suas telas com cavaletes gigantescos.”
“O
gigante de Al Leslie está ressonando no edifício da Paramount.”
Há
um outro grande pintor chamado Bill Heine, é um pintor clandestino
realmente secreto, que senta no meio de todos aqueles caras loucos
dos cafés da East Tenth Street, que não se parecem em nada com
cafés, mas sim com uma espécie de empório de roupas usadas dos
porões da Henry Street, com a diferença de que sobre o umbral da
porta se vê uma escultura africana ou talvez uma escultura de Mary
Frank e lá dentro rodam Frescobaldi na vitrola.
AH,
VAMOS VOLTAR PARA O VILLAGE e parar na esquina da Eighth Street com
Sixth Avenue para ver os intelectuais passarem. – Repórteres da AP
correndo para seus apartamentos de subsolo na Washington Square,
colunistas femininas com grandes cães policiais quase rebentando a
corrente, detetives solitários passando como sombras, desconhecidos
peritos em Sherlock Holmes com unhas azuis a caminho de seus quartos
para tomarem escopolamina, um jovem musculoso de terno alemão
cinzento barato explicando algo grotesco para sua namorada gorda,
grandes redatores educadamente recostados às bancas de jornal a
postos para comprarem a primeira edição do Times, enormes
empregados gordos de mudanças saídos de filmes de 1910 de Charlie
Chaplin retornando para casa com imensos sacos transbordando de
chop-suey (alimentam todo mundo), o melancólico arlequim de Picasso
que agora é dono de uma loja de gravuras e molduras pensando na
mulher e no filho recém-nascido e levantando um dedo para chamar um
táxi, engenheiros de som balofos apressados com seus gorros de pele,
gatas artistas da Columbia com seus problemas à D. H. Lawrence
caçando homens de cinquenta anos, velhos no Kettle of Fish, e
o espectro melancólico da prisão feminina de Nova York que se ergue
no horizonte envolta em silêncio como a própria noite – ao pôr
do sol suas janelas parecem laranjas – o poeta e. e. cummings
comprando um pacote de pastilhas para garganta à sombra daquela
monstruosidade. – Se está chovendo, você pode ficar debaixo do
toldo do Howard Johnson’s e observar o outro lado da rua.
O
beatnik Angel Peter Orlovsky no supermercado cinco portas
adiante, comprando biscoitos Uneeda (tarde da noite, sexta-feira),
sorvete, caviar, bacon, pretzels, refrigerantes, TV Guide,
vaselina, três escovas de dentes, leite maltado (sonhando com leitão
assado recheado), comprando batatas de Idaho, pão de passas de uva,
couve com lagartas por engano e tomates frescos e recolhendo selos
vermelhos. – Depois vai para casa falido, joga tudo em cima da
mesa, pega um enorme livro de poemas de Mayakovsky, liga o televisor
de 1949 em um filme de terror e vai dormir.
E
essa é a vida beat na noite de Nova York.
Jack Kerouack, in Cenas de Nova York e outras viagens
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