quinta-feira, 11 de maio de 2023

Cartas para minha avó

A música “Tempo perdido” do Legião Urbana me emociona muito, vó. No passado, ela me causava angústia, me fazia lembrar dos tempos da adolescência, da inadequação, do sentimento de não pertencer a lugar nenhum. De quando eu passava pelos jovens brancos sentados em frente ao shopping rezando para que nenhum deles me chamasse de neguinha ou falasse “olha sua mina aí”, se direcionando ao amigo. Eles ouviam Legião, e por isso não gostei da banda logo de cara. Tive que desassociar uma coisa da outra, pois por um tempo julguei que Renato Russo era racista por culpa deles. Eu me afastei de muitas coisas porque eram “coisas de branco”.
Muitas garotas brancas que se diziam minhas amigas gostavam de se sentir superiores me dando conselhos que nada contribuíam para minha autoestima, como alisar o cabelo. Uma em especial certa vez me disse: “Pare com essa história de racismo, eu sou branca e sou sua amiga. Racismo é coisa do passado, acho você um pouco paranoica”. “Sou branca e ando com você”, ouvi de outra. Elas queriam que eu me sentisse grata por tamanha benevolência. Muitas delas me usavam de muleta para se sentirem bem com elas mesmas.
Passei a adolescência ouvindo de conhecidos o quanto eu era bonita, que quando eu crescesse eu deveria ser “mulata do Sargentelli”. Era o único destino possível para meninas negras que se encaixavam no “padrão mulata”. Sempre gostei de ler e estudar, mas isso não importava pra eles. O que importava era meu corpo, minha cor, minha beleza.
De resto, sempre adorei samba. Meu pai comprava todos os vinis dos sambas-enredo e sempre assistia à apuração xingando os jurados que davam nota baixa para alguma escola de samba, porém ele nunca permitiu que a gente se aproximasse muito desse universo. Por ser comunista, seu Joaquim considerava o Carnaval alienação e queria manter as filhas longe da objetificação. Soube uma vez que quase saiu na porrada com um colega estivador quando descobriu que ele havia me convidado para ser passista numa escola. “Escola de samba não dá camisa pra ninguém, vai estudar”, era sua frase-padrão quando eu me atrevia a dizer que gostaria de assistir a um ensaio. (Ele não imaginava, porém, que minha mãe já tinha me levado escondido para ver alguns.)
Ele mesmo nunca havia pisado numa escola de samba, apesar de ser um grande apreciador do gênero. Cresci ouvindo Originais do Samba, Candeia e Cartola em casa, nas festas de família, e mantinha a esperança de que um dia ele nos deixaria conhecer parte de nossa cultura — o que nunca aconteceu. O racismo também tem dessas, vó: afasta as pessoas negras das culturas que elas mesmas construíram.
Por muito tempo, fui profundamente crítica às passistas, pois julgava que aquele era um papel do qual todas nós precisávamos nos afastar. Quando minha filha tinha apenas seis meses, uma mulher na padaria disse que ela seria a próxima Globeleza, porque tinha as coxas grossas. Passaram-se vinte e cinco anos entre a mulata do Sargentelli e a Globeleza. Mudaram-se as personagens, mas o roteiro seguiu o mesmo. Eu fiquei muito brava na hora e só consegui responder: “Minha filha será médica”. Não haveria problema algum se ela fosse passista, o problema era querer confiná-la a esse lugar.
Quando Thulane tinha seis anos, um homem disse que ela daria muito trabalho para o pai. Achei a frase um grande absurdo, mas não fui capaz de racionalizar no momento. Ele estava não apenas sexualizando uma criança, mas também colocando-a sob o controle masculino. Thulane não daria trabalho à mãe, mas a quem era proprietário dela.
Por ter vivido assédios e tentativas de abuso na infância e adolescência, passei a ficar extremamente atenta ao entorno da minha filha, e percebi que as coisas não mudaram. Quanto ao racismo na escola, porém, as coisas haviam avançado um pouco. Após a implementação da lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, o debate, apesar de ainda longe do ideal, havia melhorado.
Thulane sofreu alguns episódios de racismo na escola, mas esteve longe de passar pelo que passei. Em relação ao gênero, porém, vivenciamos coisas parecidas. Homens olhando para seus seios em crescimento quando ela tinha apenas dez anos, assédio na rua agora que ela é uma adolescente. “Ela já está uma mulher, que corpão”, as pessoas falam sobre adolescentes de catorze, quinze anos sem o menor constrangimento. E, assim como a mãe, Thulane não é uma adolescente considerada típica e ouve coisas como se ela precisasse já namorar, sair, em vez de fazer o que tem vontade. Quando tinha dez anos, ela voltou da escola extremamente aborrecida porque algumas crianças haviam caçoado dela pelo fato de ela ainda assistir desenho animado. Ao final da reclamação, ela questionou: “Por acaso agora a infância virou crime, mãe?”.
Como minha mãe sempre me defendeu de assédios e me ensinou a não silenciar, já arrumei muita briga na rua com quem tentava assediar minha filha. Grito, pergunto em voz alta para constranger: “Você sabe quantos anos ela tem, seu pedófilo?”. No começo, Thulane ficava envergonhada quando eu fazia isso, assim como eu me envergonhava quando minha mãe “dava escândalo na rua”. Mas agora percebo o brilho no olhar dela toda vez que a defendo e protejo, o mesmo brilho que tive quando minha mãe colocou o afilhado pra correr.
Em relação ao Carnaval, eu mudei de ideia com o tempo. É uma festa riquíssima, importante e esse afastamento aconteceu com muitos negros militantes. Hoje resgato o tempo perdido entendendo todas as problemáticas do que o Carnaval se tornou. E sim, vó, resgatar o tempo perdido significa dizer que já fui a vários ensaios de escola de samba e enlouqueci com o som vibrante da bateria. No Carnaval de 2020, assisti aos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro pela primeira vez e foi umas das maiores emoções que vivi. Assistir à Estação Primeira de Mangueira passar foi como ver um filme. Lembrei do amor do meu pai pelo Jamelão e do quanto, mesmo tentando evitar, ele nos influenciou a amar o Carnaval.
Senti meu coração bater forte quando a bateria da escola passou e dancei com a alegria e o desprendimento de uma criança. Mas o que mais me emocionou, vó, foram os acenos e abraços que recebi de mulheres negras de diferentes escolas. Eu estava em um lugar muito próximo à avenida e era possível interagir com os membros da escola. Sou escritora, vó, cursei filosofia numa universidade pública — realizando postumamente o sonho do meu pai —, defendi minha dissertação de mestrado aos trinta e cinco anos, me tornei uma das mulheres que mais vende livros no Brasil, recebi muitos prêmios, nacionais e internacionais, e seguindo a tradição das mulheres fortes da família e os aprendizados com meu pai, sou militante. E era por isso que aquelas mulheres na avenida, mesmo desfilando, faziam questão de me mandar carinho.
Fiquei profundamente emocionada. São muitos os obstáculos, as porradas que a gente toma por “ousar” sair do nosso lugar, e nada foi fácil. Apesar de receber muito carinho e ser reconhecida pelo que faço, perceber o afeto daquelas mulheres foi diferente. Foi como me reencontrar com uma história da qual fui apartada. Foi como se elas estivessem me aceitando de volta com os braços abertos, me perdoando. Ali, eu me senti reconectada com uma ancestralidade perdida, uma espécie de volta pra casa. Quando aqueles rostos negros se emocionavam por me ver ali, expectadora delas, eu senti vontade de chorar. Os abraços e apertos de mão continham a benção que as mais velhas dão às mais novas, como eu sempre pedia a você e à minha mãe antes de dormir. Elas se emocionavam porque se sentiam representadas pelo trabalho que eu faço. Sim, eu me emocionava com o reconhecimento delas, mas também por sentir que parte da minha história havia sido restaurada.
Foi como meu babalorixá, que estava comigo, me disse: “Minha filha, quando mulheres pretas da comunidade sabem quem você é e se emocionam quando te veem, essa é a prova mais concreta de que seu trabalho é reconhecido. Não que a gente não soubesse que fosse, mas é Orixá te mostrando para que você entenda seu tamanho”. E eu beijei todas aquelas mãos em reverência.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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