A
música “Tempo perdido” do Legião Urbana me emociona muito, vó.
No passado, ela me causava angústia, me fazia lembrar dos tempos da
adolescência, da inadequação, do sentimento de não pertencer a
lugar nenhum. De quando eu passava pelos jovens brancos sentados em
frente ao shopping rezando para que nenhum deles me chamasse de
neguinha ou falasse “olha sua mina aí”, se direcionando ao
amigo. Eles ouviam Legião, e por isso não gostei da banda logo de
cara. Tive que desassociar uma coisa da outra, pois por um tempo
julguei que Renato Russo era racista por culpa deles. Eu me afastei
de muitas coisas porque eram “coisas de branco”.
Muitas
garotas brancas que se diziam minhas amigas gostavam de se sentir
superiores me dando conselhos que nada contribuíam para minha
autoestima, como alisar o cabelo. Uma em especial certa vez me disse:
“Pare com essa história de racismo, eu sou branca e sou sua amiga.
Racismo é coisa do passado, acho você um pouco paranoica”. “Sou
branca e ando com você”, ouvi de outra. Elas queriam que eu me
sentisse grata por tamanha benevolência. Muitas delas me usavam de
muleta para se sentirem bem com elas mesmas.
Passei
a adolescência ouvindo de conhecidos o quanto eu era bonita, que
quando eu crescesse eu deveria ser “mulata do Sargentelli”. Era o
único destino possível para meninas negras que se encaixavam no
“padrão mulata”. Sempre gostei de ler e estudar, mas isso não
importava pra eles. O que importava era meu corpo, minha cor, minha
beleza.
De
resto, sempre adorei samba. Meu pai comprava todos os vinis dos
sambas-enredo e sempre assistia à apuração xingando os jurados que
davam nota baixa para alguma escola de samba, porém ele nunca
permitiu que a gente se aproximasse muito desse universo. Por ser
comunista, seu Joaquim considerava o Carnaval alienação e queria
manter as filhas longe da objetificação. Soube uma vez que quase
saiu na porrada com um colega estivador quando descobriu que ele
havia me convidado para ser passista numa escola. “Escola de samba
não dá camisa pra ninguém, vai estudar”, era sua frase-padrão
quando eu me atrevia a dizer que gostaria de assistir a um ensaio.
(Ele não imaginava, porém, que minha mãe já tinha me levado
escondido para ver alguns.)
Ele
mesmo nunca havia pisado numa escola de samba, apesar de ser um
grande apreciador do gênero. Cresci ouvindo Originais do Samba,
Candeia e Cartola em casa, nas festas de família, e mantinha a
esperança de que um dia ele nos deixaria conhecer parte de nossa
cultura — o que nunca aconteceu. O racismo também tem dessas, vó:
afasta as pessoas negras das culturas que elas mesmas construíram.
Por
muito tempo, fui profundamente crítica às passistas, pois julgava
que aquele era um papel do qual todas nós precisávamos nos afastar.
Quando minha filha tinha apenas seis meses, uma mulher na padaria
disse que ela seria a próxima Globeleza, porque tinha as coxas
grossas. Passaram-se vinte e cinco anos entre a mulata do Sargentelli
e a Globeleza. Mudaram-se as personagens, mas o roteiro seguiu o
mesmo. Eu fiquei muito brava na hora e só consegui responder: “Minha
filha será médica”. Não haveria problema algum se ela fosse
passista, o problema era querer confiná-la a esse lugar.
Quando
Thulane tinha seis anos, um homem disse que ela daria muito trabalho
para o pai. Achei a frase um grande absurdo, mas não fui capaz de
racionalizar no momento. Ele estava não apenas sexualizando uma
criança, mas também colocando-a sob o controle masculino. Thulane
não daria trabalho à mãe, mas a quem era proprietário dela.
Por
ter vivido assédios e tentativas de abuso na infância e
adolescência, passei a ficar extremamente atenta ao entorno da minha
filha, e percebi que as coisas não mudaram. Quanto ao racismo na
escola, porém, as coisas haviam avançado um pouco. Após a
implementação da lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira, o debate, apesar de ainda longe
do ideal, havia melhorado.
Thulane
sofreu alguns episódios de racismo na escola, mas esteve longe de
passar pelo que passei. Em relação ao gênero, porém, vivenciamos
coisas parecidas. Homens olhando para seus seios em crescimento
quando ela tinha apenas dez anos, assédio na rua agora que ela é
uma adolescente. “Ela já está uma mulher, que corpão”, as
pessoas falam sobre adolescentes de catorze, quinze anos sem o menor
constrangimento. E, assim como a mãe, Thulane não é uma
adolescente considerada típica e ouve coisas como se ela precisasse
já namorar, sair, em vez de fazer o que tem vontade. Quando tinha
dez anos, ela voltou da escola extremamente aborrecida porque algumas
crianças haviam caçoado dela pelo fato de ela ainda assistir
desenho animado. Ao final da reclamação, ela questionou: “Por
acaso agora a infância virou crime, mãe?”.
Como
minha mãe sempre me defendeu de assédios e me ensinou a não
silenciar, já arrumei muita briga na rua com quem tentava assediar
minha filha. Grito, pergunto em voz alta para constranger: “Você
sabe quantos anos ela tem, seu pedófilo?”. No começo, Thulane
ficava envergonhada quando eu fazia isso, assim como eu me
envergonhava quando minha mãe “dava escândalo na rua”. Mas
agora percebo o brilho no olhar dela toda vez que a defendo e
protejo, o mesmo brilho que tive quando minha mãe colocou o afilhado
pra correr.
Em
relação ao Carnaval, eu mudei de ideia com o tempo. É uma festa
riquíssima, importante e esse afastamento aconteceu com muitos
negros militantes. Hoje resgato o tempo perdido entendendo todas as
problemáticas do que o Carnaval se tornou. E sim, vó, resgatar o
tempo perdido significa dizer que já fui a vários ensaios de escola
de samba e enlouqueci com o som vibrante da bateria. No Carnaval de
2020, assisti aos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro
pela primeira vez e foi umas das maiores emoções que vivi. Assistir
à Estação Primeira de Mangueira passar foi como ver um filme.
Lembrei do amor do meu pai pelo Jamelão e do quanto, mesmo tentando
evitar, ele nos influenciou a amar o Carnaval.
Senti
meu coração bater forte quando a bateria da escola passou e dancei
com a alegria e o desprendimento de uma criança. Mas o que mais me
emocionou, vó, foram os acenos e abraços que recebi de mulheres
negras de diferentes escolas. Eu estava em um lugar muito próximo à
avenida e era possível interagir com os membros da escola. Sou
escritora, vó, cursei filosofia numa universidade pública —
realizando postumamente o sonho do meu pai —, defendi minha
dissertação de mestrado aos trinta e cinco anos, me tornei uma das
mulheres que mais vende livros no Brasil, recebi muitos prêmios,
nacionais e internacionais, e seguindo a tradição das mulheres
fortes da família e os aprendizados com meu pai, sou militante. E
era por isso que aquelas mulheres na avenida, mesmo desfilando,
faziam questão de me mandar carinho.
Fiquei
profundamente emocionada. São muitos os obstáculos, as porradas que
a gente toma por “ousar” sair do nosso lugar, e nada foi fácil.
Apesar de receber muito carinho e ser reconhecida pelo que faço,
perceber o afeto daquelas mulheres foi diferente. Foi como me
reencontrar com uma história da qual fui apartada. Foi como se elas
estivessem me aceitando de volta com os braços abertos, me
perdoando. Ali, eu me senti reconectada com uma ancestralidade
perdida, uma espécie de volta pra casa. Quando aqueles rostos negros
se emocionavam por me ver ali, expectadora delas, eu senti vontade de
chorar. Os abraços e apertos de mão continham a benção que as
mais velhas dão às mais novas, como eu sempre pedia a você e à
minha mãe antes de dormir. Elas se emocionavam porque se sentiam
representadas pelo trabalho que eu faço. Sim, eu me emocionava com o
reconhecimento delas, mas também por sentir que parte da minha
história havia sido restaurada.
Foi
como meu babalorixá, que estava comigo, me disse: “Minha filha,
quando mulheres pretas da comunidade sabem quem você é e se
emocionam quando te veem, essa é a prova mais concreta de que seu
trabalho é reconhecido. Não que a gente não soubesse que fosse,
mas é Orixá te mostrando para que você entenda seu tamanho”. E
eu beijei todas aquelas mãos em reverência.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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