Você
e minha mãe podem não ter conversado comigo sobre relacionamentos
ou sexo, mas a postura das duas ao nos defender dos homens e não
permitir que nenhum deles nos desrespeitasse forjou muito da mulher
que sou. Meu pai também foi uma figura essencial nisso. Foram várias
as vezes em que ele fez minha irmã e eu prometermos que seríamos
independentes, teríamos nossas próprias profissões. “Vocês
precisam ter o trabalho e o dinheiro de vocês para não aceitarem
desrespeito. Não deu certo? Dá um pé na bunda dele e vai seguir
com a sua vida. Eu não quero filha minha aceitando desrespeito
porque não tem para onde ir, entenderam?” Ele falava com tanta
gravidade que, para nós, com os nossos treze, catorze anos, o que
ele dizia era lei.
Meu
pai teve os problemas dele como homem, mas não queria que eu e
minhas irmãs sofrêssemos, mesmo ele fazendo minha mãe sofrer. “Eu
sei como os homens são, eu sou um! Não deixe jamais um deles mandar
em você!”, ele sempre repetia. Isso moldou muito das minhas
escolhas afetivas. Eu sabia que podia vislumbrar um futuro que não
incluísse um parceiro. Eu sabia que podia gritar com um namorado
possessivo e nunca mais vê-lo. Meu pai queria para mim e para minha
irmã homens melhores do que ele fora. E isso é amor.
Com
todas as suas contradições, meu pai era o homem que me incentivava
a ser melhor, sempre. Queria que eu conhecesse o mundo, se orgulhava
das minhas notas boas na escola, elogiava a minha inteligência.
Quando comecei a estudar inglês, ele assinou um plano de tv a cabo
para que eu pudesse assistir aos canais em inglês e praticar. Ele me
colocou no curso de xadrez, natação, basquete. Quando eu tinha oito
anos, por causa das minhas excelentes notas, ele me presenteou com o
livro As novas vestes do rei, com a seguinte dedicatória: “Para
minha filha, Djamila, por seus merecimentos. Do seu pai Joaquim.
Feliz leitura!”.
Em
1990, o vendedor do anuário paulista de melhores alunos nos procurou
para dizer que eu estava na lista daquele ano. Meu pai não titubeou
em se endividar para comprar o livro. E fazia questão de exibi-lo
para cada visita. “Minha filha é um prodígio”, ele dizia
orgulhoso. Quando passei no vestibular para jornalismo,
decepcionou-se por eu não ter entrado numa faculdade pública, dizia
que eu não deveria me contentar, deveria acreditar mais em mim e
prestar novamente para uma faculdade pública.
Por
sua influência, participei uma vez de programa social do orfanato do
bairro, adotando uma criança para passar um feriado em casa. Foi meu
pai que me ajudou a cuidar do garoto, que era autista e, por isso,
esquecido por outros voluntários do projeto.
Uma
vez, pisei de fato em um caco de vidro e ele pegou uma pinça para
poder tirar. Como o caco era muito fino, doía demais todas as vezes
em que ele tentava puxar. Meus irmãos se amontoaram em volta para
ver, e ele pediu para que todos gritassem junto comigo. Toda vez eu
dizia um “Ai, tá doendo”, meu pai e meus irmãos gritavam junto.
Eu comecei a rir e a ficar menos tensa. Quando me dei conta, ele
tinha conseguido arrancar o caco. Se chegássemos de joelho ralado e
era preciso passar algum remédio que ardia, ele fazia a mesma coisa,
gritava junto com a gente. Hoje, ao refletir sobre isso, penso como
meu pai, numa brincadeira simples, me ensinou a me importar com a dor
do outro, a ser solidária com a dor do outro.
Em
outra ocasião, a gente estava na praia, e eu sabia que não podia ir
para o fundo, mas fui. Uma onda me engoliu e eu quase me afoguei. Ele
me buscou, me levou até a areia e disse: “Olha pra você e agora
olha para o mar. Olha o tamanho do mar!”. Nada mais precisou ser
dito.
O
Joaquim marido era um, o Joaquim pai era outro. E essa diferença era
fundamental.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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