quinta-feira, 4 de maio de 2023

Cartas para minha avó

Você e minha mãe podem não ter conversado comigo sobre relacionamentos ou sexo, mas a postura das duas ao nos defender dos homens e não permitir que nenhum deles nos desrespeitasse forjou muito da mulher que sou. Meu pai também foi uma figura essencial nisso. Foram várias as vezes em que ele fez minha irmã e eu prometermos que seríamos independentes, teríamos nossas próprias profissões. “Vocês precisam ter o trabalho e o dinheiro de vocês para não aceitarem desrespeito. Não deu certo? Dá um pé na bunda dele e vai seguir com a sua vida. Eu não quero filha minha aceitando desrespeito porque não tem para onde ir, entenderam?” Ele falava com tanta gravidade que, para nós, com os nossos treze, catorze anos, o que ele dizia era lei.
Meu pai teve os problemas dele como homem, mas não queria que eu e minhas irmãs sofrêssemos, mesmo ele fazendo minha mãe sofrer. “Eu sei como os homens são, eu sou um! Não deixe jamais um deles mandar em você!”, ele sempre repetia. Isso moldou muito das minhas escolhas afetivas. Eu sabia que podia vislumbrar um futuro que não incluísse um parceiro. Eu sabia que podia gritar com um namorado possessivo e nunca mais vê-lo. Meu pai queria para mim e para minha irmã homens melhores do que ele fora. E isso é amor.
Com todas as suas contradições, meu pai era o homem que me incentivava a ser melhor, sempre. Queria que eu conhecesse o mundo, se orgulhava das minhas notas boas na escola, elogiava a minha inteligência. Quando comecei a estudar inglês, ele assinou um plano de tv a cabo para que eu pudesse assistir aos canais em inglês e praticar. Ele me colocou no curso de xadrez, natação, basquete. Quando eu tinha oito anos, por causa das minhas excelentes notas, ele me presenteou com o livro As novas vestes do rei, com a seguinte dedicatória: “Para minha filha, Djamila, por seus merecimentos. Do seu pai Joaquim. Feliz leitura!”.
Em 1990, o vendedor do anuário paulista de melhores alunos nos procurou para dizer que eu estava na lista daquele ano. Meu pai não titubeou em se endividar para comprar o livro. E fazia questão de exibi-lo para cada visita. “Minha filha é um prodígio”, ele dizia orgulhoso. Quando passei no vestibular para jornalismo, decepcionou-se por eu não ter entrado numa faculdade pública, dizia que eu não deveria me contentar, deveria acreditar mais em mim e prestar novamente para uma faculdade pública.
Por sua influência, participei uma vez de programa social do orfanato do bairro, adotando uma criança para passar um feriado em casa. Foi meu pai que me ajudou a cuidar do garoto, que era autista e, por isso, esquecido por outros voluntários do projeto.
Uma vez, pisei de fato em um caco de vidro e ele pegou uma pinça para poder tirar. Como o caco era muito fino, doía demais todas as vezes em que ele tentava puxar. Meus irmãos se amontoaram em volta para ver, e ele pediu para que todos gritassem junto comigo. Toda vez eu dizia um “Ai, tá doendo”, meu pai e meus irmãos gritavam junto. Eu comecei a rir e a ficar menos tensa. Quando me dei conta, ele tinha conseguido arrancar o caco. Se chegássemos de joelho ralado e era preciso passar algum remédio que ardia, ele fazia a mesma coisa, gritava junto com a gente. Hoje, ao refletir sobre isso, penso como meu pai, numa brincadeira simples, me ensinou a me importar com a dor do outro, a ser solidária com a dor do outro.
Em outra ocasião, a gente estava na praia, e eu sabia que não podia ir para o fundo, mas fui. Uma onda me engoliu e eu quase me afoguei. Ele me buscou, me levou até a areia e disse: “Olha pra você e agora olha para o mar. Olha o tamanho do mar!”. Nada mais precisou ser dito.
O Joaquim marido era um, o Joaquim pai era outro. E essa diferença era fundamental.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

Nenhum comentário:

Postar um comentário