A
mudez do coelho, seu modo de comer depressinha-depressinha as
cenouras, sua desinibida relação sexual tão frequente quanto veloz
– não sei por que acho as tais relações mútuas dos coelhos de
uma grande futilidade, nem parecem ter raízes profundas. O coelho
faz-me ficar de um meditativo vazio: é que simplesmente nada tenho a
ver com ele, somos estranhos, minha raça não vai com a dele. O
curioso é que pode ser aprisionado e parece até conformado, mas não
é domesticável: apenas aparente é a sua resignação. Em verdade,
fútil e assustado como é, ele é um livre, o que não combina com
sua superficialidade.
Quanto
a cavalos, já escrevi muito sobre cavalos soltos no morro do pasto
(A cidade sitiada), onde de noite o cavalo branco, rei da
natureza, lançava para o ar o seu longo relincho de glória. E já
tive perfeitas relações com eles. Lembro-me de mim adolescente, de
pé, com a mesma altivez do cavalo, passando a mão pelo seu pelo
aveludado, pela sua crina agreste. Eu me sentia assim: “a moça e o
cavalo.”
Os
peixes no aquário não param nem um segundo de nadar. Isso me
inquieta. Além do mais acho esse peixe de aquário um ser vazio e
raso. Mas deve ser engano meu, pois não só eles devoram comida como
procriam: e é preciso ser matéria viva para isso. O que me intriga
é que, pelo menos nos peixes de aquário, o instinto falha: eles
comem até estourar, não sabem parar, eis um peixe morto. São seres
aterrorizados quando pequenos, perigosos quando grandes. Além de
pertencerem a um reino que não me é familiar, o que de novo me
inquieta.
Sei
de uma história muito bonita. Um espanhol amigo meu, Jaime Vilaseca,
contou-me que morou uns tempos com parte de sua família que vivia em
pequena aldeia num vale dos altos e nevados Pireneus. No inverno os
lobos esfaimados terminavam descendo das montanhas até a aldeia,
farejando presa, e todos os habitantes se trancavam atentos em casa,
abrigando na sala ovelhas, cavalos, cães, cabras, calor humano e
calor animal, todos alertas ouvindo o arranhar das garras dos lobos
nas portas cerradas, escutando, escutando…
Mas
sei da história de uma rosa. Parece estranho falar nela quando estou
me ocupando de bichos. Mas é que agiu de um modo tal que lembra os
mistérios instintivos e intuitivos do animal. Um médico amigo meu,
Dr. Azulay, psicanalista, autor de Um Deus esquecido, de dois
em dois dias trazia para o consultório uma rosa que ele punha na
água dentro de uma dessas jarras muito estreitas, feitas
especialmente para abrigar o longo talo de uma só flor. De dois em
dois dias a rosa murchava e meu amigo a trocava por outra. Mas houve
uma determinada Rosa. Era cor-de-rosa, não por artifícios de
corantes ou enxertos, porém do mais requintado rosa pela natureza
mesmo. Sua beleza alargava o coração em amplidões. E parecia tão
orgulhosa da turgidez de sua corola toda aberta, das próprias
pétalas grossas e macias, que era com uma altivez linda que se
mantinha quase ereta. Pois não ficava totalmente ereta: com infinita
graciosidade inclinava-se bem levemente sobre o talo que era fino. E
uma relação íntima estabeleceu-se entre o homem e a flor: ele a
admirava e ela parecia sentir-se admirada. E tão gloriosa ficou, e
com tanto amor era observada, que se passavam os dias e ela não
murchava: continuava de corola toda aberta e túmida e fresca como
flor nova. Durou em beleza e vida uma semana inteira. Só depois
começou a dar mostras de algum cansaço. Depois morreu. Foi com
relutância que meu amigo a trocou por outra. E nunca a esqueceu. O
curioso é que uma paciente sua que frequentava o consultório
perguntou-lhe sem mais nem menos: “E aquela rosa?” Ele nem
perguntou qual, sabia da que a paciente falava. Essa rosa, que viveu
mais longamente por amor, era lembrada porque a paciente, tendo visto
o modo como o médico olhava a flor, transmitindo-lhe em ondas a
própria energia vital, intuíra cegamente que algo se passava entre
ele e a rosa. Esta – e deu-me vontade de chamá-la de “joia da
vida” – tinha tanto instinto de natureza que o médico e ela
haviam podido se viverem um ao outro profundamente, como só acontece
entre bichos e homens.
E
eis que de repente fiquei agora mesmo com saudade de Dilermando, meu
cão, uma saudade aguda e dolorida e desconsolável, a mesma que
tenho certeza ele sentiu quando foi obrigado a viver com outra
família porque eu ia morar na Suíça e haviam me informado
erradamente que lá os hotéis, onde teríamos que permanecer algum
tempo, não permitiam a entrada de animais. Lembro-me, e a lembrança
ainda me faz sorrir, de que uma vez, morando ainda na Itália, vim ao
Brasil, deixando Dilermando com uma amiga. Quando voltei, fui à
minha amiga para buscá-lo para casa. Mas acontece que nesse ínterim
se tornara inverno e eu estava com um casaco de peles. O cão ficou
parado me olhando, petrificado. Depois aventurou cautelosamente
aproximar-se e sentiu o odor do casaco, talvez de algum animal
ameaçador. E ao mesmo tempo, para a sua confusão, farejava meu
cheiro. Tornou-se inquietíssimo, chegava a rodar em torno de si
mesmo. E eu imóvel, esperando que ele viesse a mim, e me sentisse:
se eu me precipitasse, ele se assustaria. Quando comecei a sentir
calor na sala aquecida, tirei o casaco e da distância mesmo joguei-o
longe num divã. Dilermando, ao me farejar puramente, atirou-se de
repente num grande salto sobre mim, um pulo fantástico do chão ao
meu peito, inteiramente alvoroçado, fora de si, me fazendo tanta
festa doida que me deixou bem arranhada nos braços e no rosto, mas
eu ria de prazer, e sorria às fingidas e rápidas mordidas leves que
ele aloucadamente me dava, não doíam, eram mordidas de amor.
Não
ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles
às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso
responder senão ficando desassossegada. É o chamado.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Nenhum comentário:
Postar um comentário