terça-feira, 2 de maio de 2023

Bichos (conclusão)

A mudez do coelho, seu modo de comer depressinha-depressinha as cenouras, sua desinibida relação sexual tão frequente quanto veloz – não sei por que acho as tais relações mútuas dos coelhos de uma grande futilidade, nem parecem ter raízes profundas. O coelho faz-me ficar de um meditativo vazio: é que simplesmente nada tenho a ver com ele, somos estranhos, minha raça não vai com a dele. O curioso é que pode ser aprisionado e parece até conformado, mas não é domesticável: apenas aparente é a sua resignação. Em verdade, fútil e assustado como é, ele é um livre, o que não combina com sua superficialidade.
Quanto a cavalos, já escrevi muito sobre cavalos soltos no morro do pasto (A cidade sitiada), onde de noite o cavalo branco, rei da natureza, lançava para o ar o seu longo relincho de glória. E já tive perfeitas relações com eles. Lembro-me de mim adolescente, de pé, com a mesma altivez do cavalo, passando a mão pelo seu pelo aveludado, pela sua crina agreste. Eu me sentia assim: “a moça e o cavalo.”
Os peixes no aquário não param nem um segundo de nadar. Isso me inquieta. Além do mais acho esse peixe de aquário um ser vazio e raso. Mas deve ser engano meu, pois não só eles devoram comida como procriam: e é preciso ser matéria viva para isso. O que me intriga é que, pelo menos nos peixes de aquário, o instinto falha: eles comem até estourar, não sabem parar, eis um peixe morto. São seres aterrorizados quando pequenos, perigosos quando grandes. Além de pertencerem a um reino que não me é familiar, o que de novo me inquieta.
Sei de uma história muito bonita. Um espanhol amigo meu, Jaime Vilaseca, contou-me que morou uns tempos com parte de sua família que vivia em pequena aldeia num vale dos altos e nevados Pireneus. No inverno os lobos esfaimados terminavam descendo das montanhas até a aldeia, farejando presa, e todos os habitantes se trancavam atentos em casa, abrigando na sala ovelhas, cavalos, cães, cabras, calor humano e calor animal, todos alertas ouvindo o arranhar das garras dos lobos nas portas cerradas, escutando, escutando…
Mas sei da história de uma rosa. Parece estranho falar nela quando estou me ocupando de bichos. Mas é que agiu de um modo tal que lembra os mistérios instintivos e intuitivos do animal. Um médico amigo meu, Dr. Azulay, psicanalista, autor de Um Deus esquecido, de dois em dois dias trazia para o consultório uma rosa que ele punha na água dentro de uma dessas jarras muito estreitas, feitas especialmente para abrigar o longo talo de uma só flor. De dois em dois dias a rosa murchava e meu amigo a trocava por outra. Mas houve uma determinada Rosa. Era cor-de-rosa, não por artifícios de corantes ou enxertos, porém do mais requintado rosa pela natureza mesmo. Sua beleza alargava o coração em amplidões. E parecia tão orgulhosa da turgidez de sua corola toda aberta, das próprias pétalas grossas e macias, que era com uma altivez linda que se mantinha quase ereta. Pois não ficava totalmente ereta: com infinita graciosidade inclinava-se bem levemente sobre o talo que era fino. E uma relação íntima estabeleceu-se entre o homem e a flor: ele a admirava e ela parecia sentir-se admirada. E tão gloriosa ficou, e com tanto amor era observada, que se passavam os dias e ela não murchava: continuava de corola toda aberta e túmida e fresca como flor nova. Durou em beleza e vida uma semana inteira. Só depois começou a dar mostras de algum cansaço. Depois morreu. Foi com relutância que meu amigo a trocou por outra. E nunca a esqueceu. O curioso é que uma paciente sua que frequentava o consultório perguntou-lhe sem mais nem menos: “E aquela rosa?” Ele nem perguntou qual, sabia da que a paciente falava. Essa rosa, que viveu mais longamente por amor, era lembrada porque a paciente, tendo visto o modo como o médico olhava a flor, transmitindo-lhe em ondas a própria energia vital, intuíra cegamente que algo se passava entre ele e a rosa. Esta – e deu-me vontade de chamá-la de “joia da vida” – tinha tanto instinto de natureza que o médico e ela haviam podido se viverem um ao outro profundamente, como só acontece entre bichos e homens.
E eis que de repente fiquei agora mesmo com saudade de Dilermando, meu cão, uma saudade aguda e dolorida e desconsolável, a mesma que tenho certeza ele sentiu quando foi obrigado a viver com outra família porque eu ia morar na Suíça e haviam me informado erradamente que lá os hotéis, onde teríamos que permanecer algum tempo, não permitiam a entrada de animais. Lembro-me, e a lembrança ainda me faz sorrir, de que uma vez, morando ainda na Itália, vim ao Brasil, deixando Dilermando com uma amiga. Quando voltei, fui à minha amiga para buscá-lo para casa. Mas acontece que nesse ínterim se tornara inverno e eu estava com um casaco de peles. O cão ficou parado me olhando, petrificado. Depois aventurou cautelosamente aproximar-se e sentiu o odor do casaco, talvez de algum animal ameaçador. E ao mesmo tempo, para a sua confusão, farejava meu cheiro. Tornou-se inquietíssimo, chegava a rodar em torno de si mesmo. E eu imóvel, esperando que ele viesse a mim, e me sentisse: se eu me precipitasse, ele se assustaria. Quando comecei a sentir calor na sala aquecida, tirei o casaco e da distância mesmo joguei-o longe num divã. Dilermando, ao me farejar puramente, atirou-se de repente num grande salto sobre mim, um pulo fantástico do chão ao meu peito, inteiramente alvoroçado, fora de si, me fazendo tanta festa doida que me deixou bem arranhada nos braços e no rosto, mas eu ria de prazer, e sorria às fingidas e rápidas mordidas leves que ele aloucadamente me dava, não doíam, eram mordidas de amor.
Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso responder senão ficando desassossegada. É o chamado.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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