sexta-feira, 19 de maio de 2023

As rãs | Parte I (Prólogo)


Prezado professor Yoshihito Sugitani:

Faz quase um mês que nos despedimos, mas ainda vejo com nitidez os dias em que tivemos sua companhia na minha terra natal. Ficamos profundamente tocados pelo fato de o senhor se dispor a atravessar mares e montanhas, apesar dos inconvenientes da idade e da saúde, para falar de literatura para mim e meus colegas aficionados nesta aldeia remota e atrasada. Acabamos de transcrever a gravação da extensa palestra intitulada “Literatura e vida”, ministrada pelo senhor na manhã do segundo dia do Ano-Novo lunar no auditório da hospedaria oficial. Se for do seu consentimento, gostaríamos de inserir esse texto no Canto das Rãs, publicação interna da Federação Literária Distrital. Queremos, dessa forma, estender aos que não puderam estar presentes a oportunidade de apreciar a elegância de seu discurso e dele extrair lições proveitosas.
Na manhã de Ano-Novo, acompanhei o senhor na visita a minha tia paterna, que trabalhou cinquenta anos como ginecologista e obstetra. Mesmo sem entender tudo o que ela dizia, devido ao sotaque carregado e à rapidez de sua fala, acredito que minha tia o tenha impressionado profundamente. O senhor a tomou como exemplo em diversos trechos de sua palestra para expor sua visão de literatura. Disse que lhe vinha à mente a imagem de uma médica correndo de bicicleta sobre um rio congelado, a imagem de uma médica com a maleta de remédios nas costas, um guarda-chuva na mão e as calças arregaçadas abrindo caminho em meio a uma enxurrada de rãs, a imagem de uma médica com um bebê nos braços, as mangas sujas de sangue, rindo às gargalhadas, a imagem de uma médica de cigarro no canto da boca, semblante angustiado e roupa amarrotada…
O senhor nos contou que essas imagens ora se fundiam, ora se multiplicavam, como num grupo de estátuas de uma mesma pessoa. Incentivou cada amante da literatura de nossa comunidade a escrever algo inspirado em minha tia: um romance, um poema, uma peça de teatro. Com o entusiasmo criativo despertado pelo senhor, muitos estão ávidos para tentar. Um amigo do círculo literário local já começou a escrever um romance sobre uma médica da aldeia. Não quero entrar em choque com ele. Vou deixá-lo escrever, apesar de ninguém saber das histórias de minha tia melhor do que eu. Minha intenção é escrever uma peça de teatro sobre ela.
A avaliação profunda e a análise minuciosa e diferenciada que o senhor fez de Sartre durante a agradável conversa que tivemos sentados no kang da minha casa ao anoitecer do segundo dia do Ano-Novo foram ao mesmo tempo inspiradoras e esclarecedoras! Quero escrever algo tão bom como As moscas ou Mãos sujas, para avançar decidido rumo ao objetivo de me tornar um grande dramaturgo. Seguirei seu ensinamento: não me apressar, ir com calma, com a paciência de uma rã que espera pousada sobre uma folha de lótus; quando me decidir a correr a pena sobre o papel, devo ser rápido como a rã que salta sobre o inseto.
No aeroporto de Qingdao, antes de embarcar, o senhor me sugeriu que escrevesse para contar as histórias da minha tia por carta. A vida dela, embora longe de acabar, pode ser descrita em palavras grandiloquentes como “memorável” ou “destemida”. Suas histórias são muitas, não sei quantas páginas vão ocupar nesta carta. De antemão peço desculpas pelos garranchos e, se me permite, escreverei até onde me for possível. Na era da informática, escrever cartas com caneta e papel é um luxo, mas também um prazer. Espero que, ao ler minha carta, também o senhor possa desfrutar esse prazer com sabor de outros tempos.
Aproveito para informar que meu pai me telefonou dizendo que, no dia 25 do primeiro mês lunar, a velha ameixeira de nosso quintal, aquela que o senhor qualificou de “talentosa” por causa de sua forma peculiar, desabrochou numa profusão de flores vermelhas. Muita gente foi apreciar a florada, até mesmo minha tia. Segundo conta meu pai, nevava muito naquele dia, o perfume das flores de ameixeira permeava os cristais de neve e revigorava os sentidos de quem o inalava.

Seu aluno, Girino
Pequim, 21 de março de 2002

Mo Yan, in As rãs

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