“Quando
se começa a apertar, não há volta.”
– Herta
Müller
“Você
vai no carro com o seu avô.” Bisavô, eu quis dizer, mas o rabino
já tinha fechado a porta da Kombi e agora éramos eu, o caixão do
meu bisavô e o motorista – um rapaz apenas alguns anos mais velho
que defendia sua responsabilidade com um bigode ralo.
Eu
abri o vidro do carro fazendo uma força incrível para girar a
manivela, a porta gemendo como se fosse desmontar. O rapaz colocou a
chave na ignição da Kombi, o motor acordou, espreguiçando-se com
um arroto, um barulho assustador, nem um pouco solene. O carro todo
tremelicava, minhas bochechas ondulavam. Chamei o rabino e a voz saiu
como um soluço engasgado pelo motor da Kombi. “O que eu tenho que
fazer?”, perguntei. Ele me olhou, impaciente, gelado, e perguntou a
minha idade. “Treze”, respondi. “Você fez o bar mitzvah, não
é?” A pergunta, uma afirmação. Não, a resposta verdadeira. Sim,
a esperada, e assenti positivamente, um aceno de cabeça comicamente
exagerado pelo tremer do carro. Com o corpo do meu bisavô morto na
Kombi, sob o mesmo teto do meu bisavô que trabalhou por 60 anos,
rezava todas as sextas e jejuava no Yom Kipur, eu disse que sim,
menti.
O
rabino fechou os olhos, a pálpebra parecendo ter o peso da minha
mentira, e disse, ainda sem abrir os olhos: “Então pense nele,
reze por ele.”
Um
solavanco, o carro começou a andar, o caixão dando leves quiques na
parte de trás da Kombi. “Não se preocupe”, o motorista, “não
vai soltar. O caixão está bem preso.” O carro passou pelo portão
do Chevra Kadisha e o calor então era absurdo, só me vinham à
mente os ternos negros do meu bisavô e a história que a minha avó
sempre contava sobre o dia em que ele teve que assumir o negócio do
pai, falecido, aos 19 anos, que do trabalho dele dependiam a mãe e
ele próprio, sem isso não teriam dinheiro para a comida no mês
seguinte. E eu ali, bastava pensar nele, sobre ele, e já morrendo de
medo e preocupação em falhar.
O
rabino tinha dito: “Pense nele, reze por ele”, mas rezar eu não
podia, sabia e muito mais não tinha conhecimento sobre aquela pessoa
morta cujo corpo, caixão, quicava numa Kombi branca em pleno sol de
meio-dia, meu bisavô. Meu contato com ele fora mínimo; ele no Rio,
eu em São Paulo. Ele velho, muito velho desde que nasci e nos
últimos anos com o corpo desmilinguindo em pele e osso, o olhar
apagado pela névoa branca que tirava o viço dos olhos, a boca
levemente torta quando falava. Pense nele. Tentei, e minha última
lembrança, a primeira que veio, foi do dia em que ele me dera seu
canivete gasto, a lâmina enferrujada, alaranjada pelo desuso. Ele me
entregou o canivete e eu olhei como se perguntasse: o que vou fazer
com isso?, e meu bisavô disse, em seu tom baixíssimo, um sopro
quase inaudível, que com ele eu poderia cortar a camisa quando uma
pessoa da família morresse, em sinal de luto. Logo arregalei os
olhos, pensando que presente mais fúnebre, triste, chato, inútil,
mas depois fiquei imaginando quem seria a pessoa da família que
poderia morrer. Acho que não agradeci, baixei a cabeça, esperava um
presente mais interessante, tive medo que a pessoa que morresse fosse
meu pai, minha mãe. Não: definitivamente meu pai, o neto dele.
Levantei a cabeça, já pensando em retornar o presente, ele sorria
triste, e tossiu – meu bisavô vivia tossindo; talvez minha memória
mais forte dele seja essa, ele sempre tossindo, acenando para a minha
avó, sua filha, trazer um cinzeiro de prata que ele chamava de minha
escarradeira, enquanto a baba pendia entre a boca e a escarradeira, o
cinzeiro, num equilíbrio improvável que poderia durar minutos,
valsa demorada, dois para lá, um para cá – até que entendi que
aquele canivete seria usado para cortar minha roupa justamente no dia
da morte dele.
Apalpei
meus bolsos, desperto depois de mais uma curva e um rufar do caixão
– um lamento? –, em busca do canivete. Nada nos bolsos da calça,
procurei na mochila, bolso da frente, e lá estava, mesma forma, o
mesmo peso, mas não era. Meu celular. Tinha esquecido o canivete,
relegado ao fundo de uma gaveta e logo agora a lembrança, o peso na
consciência. Olhei novamente para trás, o corpo do meu bisavô. Em
seguida, serpenteando pela avenida Brasil, uma rabiola de carros
seguindo a Kombi, primeiro o do meu pai, com minha avó na frente,
seu olhar duro, distante.
O
motorista perguntou: “Seu avô?” “Bisavô”, disse, contente
em finalmente conseguir retificar. “Posso fazer outra pergunta?”
Respondi que sim, quase agradecendo a ele por me puxar daquele
emaranhado de lamentações e culpa: “Por que vocês enterram com
caixão fechado?” Vocês, nós judeus. Eu, judeu. Simples, uma
pergunta boba, e acho que até sorri, a resposta esgueirando-se entre
os caninos; mas ela não saiu, ficou presa, enclausurada, e minha
boca fechou-se levando com a demora o sorriso. Vasculhei minhas
lembranças, as aulas de judaísmo que não frequentei pela decisão
de ignorar o bar mitzvah, com o apoio da minha mãe e a anuência
calada do meu pai, descrente, e nada. O silêncio pesando, os
segundos correndo mais que a Kombi; o motorista repetiu a pergunta,
um tom acima, acreditando que eu não tinha ouvido.
“Por
que vocês enterram com caixão fechado?”
“Não
sei.”
Um
fiapo envergonhado de voz. Ele olhou da avenida para os meus olhos, e
enxergou a culpa, a vergonha, e novamente para a avenida, em
silêncio. Aquela situação não poderia se prolongar mais. “Quanto
tempo ainda?”, perguntei.
“Quinze
minutos.”
Flávio Izhaki, in Amanhã não tem ninguém
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