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Grego e Latino chegaram à rua onde os Compostos Eruditos costumavam se encontrar. A casa em que se reuniam ficava numa quadra de poesia que antigamente fora uma quadrinha popular. Com o passar dos anos o lugar se sofisticara, até tornar-se conhecido como uma zona de versos tradicionais, sem, no entanto, chegar a se transformar em área exclusiva de moradores abastados. A vizinhança era principalmente de rimas ricas, mas muitas rimas pobres ainda viviam por ali, emparelhadas, alternadas ou interpoladas. A atmosfera da rua era austera, pelo aspecto tanto das construções como dos moradores e até dos passantes. Mas, ao mesmo tempo, algo parecia contagiar tudo e todos com um ar de desapego e loucura, uma espécie de abstração transbordante que conferia ao lugar um quê de charmosa extravagância. Era uma área residencial. O único empreendimento comercial era o Centro de Cavalgamento, conforme inscrição em um pórtico de mármor de Carrara – da calçada ouviam-se os cavalos trotear: apócope, apócope, apócope –, dirigido por um francês, o professor Enjam Bement. “Vamos atravessar, que aquele eneassílabo é um anapéstico”, disse Latino. “Ao ladino saúdo de longe”, cumprimentou o eneassílabo, de maneira pausada e irônica, ao ver que Grego e Latino mudavam de calçada para não cruzar com ele. “O chato me chamou de ladino…”, sussurrou Latino ao Grego, indignado, acenando de volta com má vontade. “Esqueceste que esta rua nunca está deserta”, observou Grego, chamando a atenção de Latino para as irmãs Redondilha, que se aproximavam. “Como é bom te ver!”, exclamou a menor para Latino, abrindo os braços. As rechonchudas irmãs eram muito queridas por todos. A maior conseguia ser, ao mesmo tempo, popular e admirada pelos poetas cultos, mas a verdade é que as duas falavam demais. Grego passou reto, sem sequer saudá-las. Foi sua vez de ouvir uma ironia: “Grego a passo em branco passa”, disse a maior, dando o troco da descortesia. Latino não teve saída: parou para uma breve conversa. Grego não fez menção de esperá-lo, apenas foi em frente. Pensava que as manifestações não deveriam repercutir por ali, onde a pontuação era pouco vista. Se a cidade entrasse em ponto de ebulição, aquele se confirmaria como um lugar perfeito para conspirar sem levantar suspeitas. Andou até a esquina e parou diante do muro derruído da quinta do Heroico Quebrado, um ex-militar e ex-ricaço. Absorto em seus pensamentos, nem reparou no Galego, que, em troca de moedas lançadas na boina puída, costumava tocar e cantar ali seus versos de gaita galega. O lugar das reuniões ficava em frente, na quinta em estilo clássico de Carlos Alexandrino, poeta e político conservador que defendia a volta da cesura. A propriedade, de extensos jardins, era ladeada pelas quintas de dois nobres, um Soneto Italiano e um Soneto Inglês, com os quais Carlos Alexandrino mantinha boas relações. Desvencilhado das irmãs, Latino alcançou Grego a tempo de voltar a atravessar a rua com ele. “Ai, que saudade, galega querida”, cantava o Galego.
A manifestação no local do atropelamento foi sufocada pela ação implacável dos guarda-livros. Os manifestantes mais exaltados estavam presos; os feridos eram atendidos pelos pronomes de tratamento ali mesmo, na rua. Mas a revolta da pontuação estava longe de ser contida. Os recém-dispersos recusavam-se a voltar para o sossego de suas casas. Pelo contrário, aqueles que estavam no sossego de suas casas é que saíam às ruas para juntar-se aos que agora vagavam sem rumo certo, interrompendo frases e gritando palavras de ordem. Rádios e televisões começaram a cobrir protestos em muitos pontos da cidade. Na internet, além de imagens, multiplicavam-se discussões sobre o tema. Já era grande o número de comunidades de internautas que, ostentando nomes como “Os pontos são o fim” ou “Os pontos são fofos”, se diziam contra ou a favor do movimento. Inspirado na pontuação, ainda que defendendo algo próximo de seu descarte, o Coletivo Virtual Revolucionário ia mais longe: pregava a substituição total do sistema ortográfico vigente pelo internetês. “Ninguém vai nos botar um ponto final;)”, postou a militante Penélope Bloom, pseudônimo utilizado pela Rainha para se manifestar de forma anônima na página do CVR no Facebook. Depois ela passou a mão no telefone e ligou para o Regente. “Escuta aqui, seu inominável”, disse quando ele atendeu, “todos esses pontos que aí estão atravancando o meu caminho: eles passarão, eu ficarinho? Devo trocar minha carruagem por um helicóptero? Passarei a me expressar como uma tartamuda? Terei de contratar um pintor pontilhista para pintar o meu retrato?” “Sim, quer dizer, não”, tentou responder o Regente, atordoado, “não o sim, sim o não.” “O que estás esperando para esmagar esses irresponsáveis? O que eles estão querendo afinal de contas?”, ela vociferou. “A pontuação exige por mudanças. Todos pontos sentem atropelados. Alegam. Ou são mal empregados ou perdem dos empregos cada vez mais, devido”, esforçava-se para explicar o Regente. A Rainha não o deixava falar: “Pois acaba também com os maus empregadores! Sem um pulso firme, essa revolta vai se espalhar, e aí é que não vais mais controlar coisa nenhuma. Prende os teus vizinhos, o dono do armazém, o barbeiro… Há um movimento revolucionário na internet que não emprega um só ponto final, substitui interrogações por barras, usa dois-pontos e parênteses para fazer carinhas, coloca vírgulas nos lugares mais degradantes e obriga exclamações a enfrentar filas. O que estás esperando para descobrir quem está por trás disso? Encontra esses bandidos e dá uma porretada fatal na cabeça de cada um deles”. “Mas isso vai transformar caos definitivo! Infelizmente preciso conversas contra negociadores antes”, quis argumentar o Regente. E isso foi tudo o que a Rainha ouviu, ou fez que ouviu, pois desligou o telefone enquanto ele falava. Passos familiares soavam no corredor. Ela correu e entreabriu a porta do quarto a tempo de ver o Rei, ainda sujo de vômito, vacilando diante da porta em feitio de guilhotina que ela havia encomendado ao marceneiro real e mandado instalar na entrada dos aposentos do marido. Silenciosamente, voltou a fechar a porta. Então jogou-se na cama e afundou o rosto nos travesseiros para abafar o riso que já não podia conter. [...]
Vitor Ramil, in A primavera da pontuação
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