quinta-feira, 18 de maio de 2023

A política

O Estado, uma mordaça – O homem, um animal selvagem – Anarquia ou despotismo – O rei – Imprudência dos demagogos – Miséria inevitável – Bonaparte e Robespierre – Planos utopistas

O Estado não é mais do que uma mordaça cujo fim é tornar inofensivo esse animal carnívoro que é o homem, e dar-lhe o aspecto de um herbívoro.
O homem, no íntimo, é um animal selvagem, uma fera. Só o conhecemos domesticado, domado, nesse estado que se chama civilização, por isso recuamos assustados ante as explosões acidentais do seu temperamento. Se caíssem os ferrolhos e as cadeias da ordem legal, se a anarquia rebentasse, ver-se-ia então o que é o homem.
A organização da sociedade humana oscila como um pêndulo entre dois extremos, dois pólos, dois males opostos: o despotismo e a anarquia. Quanto mais se afasta de um, mais se aproxima do outro. Surge então o pensamento que o justo meio seria o ponto conveniente: que erro! Esses dois males não são igualmente nocivos e perigosos; o primeiro é muito menos para recear: em primeiro lugar, os golpes do despotismo só existem no estado de possibilidade, e, quando se traduzem em atos, só atingem um homem entre milhões deles. Quanto à anarquia, possibilidade e realidade são inseparáveis: os seus golpes ferem cada cidadão, o que sucede todos os dias. Por isso toda Constituição deve se aproximar muito mais do despotismo que da anarquia: deve até conter uma ligeira possibilidade de despotismo.
O rei, em lugar do “nós, pela graça de Deus”, poderia dizer mais justamente “nós, de dois males o menor”. Porque sem rei as coisas não seguiriam bem; ele é a chave de abóbada do edifício que, sem a qual, se desmoronaria.
Em toda parte, em todo o tempo, tem havido grande descontentamento contra os governos, as leis e as instituições públicas; é o resultado do estarem sempre dispostos a torná-los responsáveis pela miséria inseparável da existência humana, pois tem por origem, segundo o mito, a maldição que feriu Adão e com ele toda a raça humana. Contudo, nunca essa tendência injusta foi explorada de um modo mais mentiroso e mais impudente do que pelos nossos demagogos contemporâneos. Esses, de fato, por ódio ao cristianismo, proclamam-se otimistas: aos seus olhos, o mundo não tem fim algum fora de si mesmo, e, pela sua natureza, parece-lhes organizado na perfeição, uma verdadeira mansão de felicidade. É aos governos somente que atribuem as misérias colossais do mundo que bradam contra essa teoria; parece-lhes que, se os governos fizessem o seu dever, o céu existiria na Terra, isto é, todos os homens poderiam sem trabalho e sem cuidados comer e beber à farta, propagar-se e morrer: porque é isso o que eles entendem quando falam do progresso infinito da humanidade, de que fazem o fim da vida e do mundo, e que não se cansam de anunciar em frases pomposas e enfáticas.
A raça humana é, de uma vez por todas e por natureza, voltada ao sofrimento e à ruína; embora fosse possível com auxílio do Estado e da história remediar a injustiça e a miséria ao ponto de a Terra se tornar uma espécie de país de Cocanha, os homens chegariam a disputar por aborrecimento, precipitar-se-iam uns sobre os outros, ou então o excesso de população daria em resultado a fome, e essa os destruiria.
É extremamente raro que um homem reconheça toda a sua horrorosa malícia no espelho das suas ações. Demais, pensam realmente que Robespierre, Bonaparte, o imperador de Marrocos, os assassinos que morrem no suplício, são os únicos maus entre todos? Não veem que muitos fariam outro tanto se pudessem?
Bonaparte, falando imparcialmente, não é pior que muitos homens, para não dizer a maior parte dos homens. Apenas tem o egoísmo perfeitamente vulgar que consiste em procurar o seu bem à custa dos outros. O que o distingue é unicamente uma força superior para satisfazer essa vontade, uma inteligência mais vasta, uma razão melhor, uma maior coragem, e o acaso deu-lhe, além disso, um campo favorável. Graças a todas essas condições reunidas, realizou para o seu egoísmo o que milhares de outros bem gostariam, mas não lhes é dado fazer. Todo garoto incorrigível, que, pela maldade, procura uma pequena vantagem em detrimento dos seus camaradas, embora seja insignificante o dano que cause, é tão mau como Bonaparte.
Querem planos utopistas: a única solução do problema político e social seria o despotismo dos sábios e dos nobres, de uma aristocracia pura e verdadeira, obtida por meio da geração, pela união dos homens de sentimentos altamente generosos com as mulheres mais inteligentes e finas. Essa proposta é a minha “utopia” e a minha “república” de Platão.

Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo

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