O
Estado, uma mordaça – O homem, um animal selvagem – Anarquia
ou despotismo – O rei – Imprudência dos demagogos – Miséria
inevitável – Bonaparte e Robespierre – Planos utopistas
O
Estado não é mais do que uma mordaça cujo fim é tornar inofensivo
esse animal carnívoro que é o homem, e dar-lhe o aspecto de um
herbívoro.
O
homem, no íntimo, é um animal selvagem, uma fera. Só o conhecemos
domesticado, domado, nesse estado que se chama civilização, por
isso recuamos assustados ante as explosões acidentais do seu
temperamento. Se caíssem os ferrolhos e as cadeias da ordem legal,
se a anarquia rebentasse, ver-se-ia então o que é o homem.
A
organização da sociedade humana oscila como um pêndulo entre dois
extremos, dois pólos, dois males opostos: o despotismo e a anarquia.
Quanto mais se afasta de um, mais se aproxima do outro. Surge então
o pensamento que o justo meio seria o ponto conveniente: que erro!
Esses dois males não são igualmente nocivos e perigosos; o primeiro
é muito menos para recear: em primeiro lugar, os golpes do
despotismo só existem no estado de possibilidade, e, quando se
traduzem em atos, só atingem um homem entre milhões deles. Quanto à
anarquia, possibilidade e realidade são inseparáveis: os seus
golpes ferem cada cidadão, o que sucede todos os dias. Por isso toda
Constituição deve se aproximar muito mais do despotismo que da
anarquia: deve até conter uma ligeira possibilidade de despotismo.
O
rei, em lugar do “nós, pela graça de Deus”, poderia dizer mais
justamente “nós, de dois males o menor”. Porque sem rei as
coisas não seguiriam bem; ele é a chave de abóbada do edifício
que, sem a qual, se desmoronaria.
Em
toda parte, em todo o tempo, tem havido grande descontentamento
contra os governos, as leis e as instituições públicas; é o
resultado do estarem sempre dispostos a torná-los responsáveis pela
miséria inseparável da existência humana, pois tem por origem,
segundo o mito, a maldição que feriu Adão e com ele toda a raça
humana. Contudo, nunca essa tendência injusta foi explorada de um
modo mais mentiroso e mais impudente do que pelos nossos demagogos
contemporâneos. Esses, de fato, por ódio ao cristianismo,
proclamam-se otimistas: aos seus olhos, o mundo não tem fim algum
fora de si mesmo, e, pela sua natureza, parece-lhes organizado na
perfeição, uma verdadeira mansão de felicidade. É aos governos
somente que atribuem as misérias colossais do mundo que bradam
contra essa teoria; parece-lhes que, se os governos fizessem o seu
dever, o céu existiria na Terra, isto é, todos os homens poderiam
sem trabalho e sem cuidados comer e beber à farta, propagar-se e
morrer: porque é isso o que eles entendem quando falam do progresso
infinito da humanidade, de que fazem o fim da vida e do mundo, e que
não se cansam de anunciar em frases pomposas e enfáticas.
A
raça humana é, de uma vez por todas e por natureza, voltada ao
sofrimento e à ruína; embora fosse possível com auxílio do Estado
e da história remediar a injustiça e a miséria ao ponto de a Terra
se tornar uma espécie de país de Cocanha, os homens chegariam a
disputar por aborrecimento, precipitar-se-iam uns sobre os outros, ou
então o excesso de população daria em resultado a fome, e essa os
destruiria.
É
extremamente raro que um homem reconheça toda a sua horrorosa
malícia no espelho das suas ações. Demais, pensam realmente que
Robespierre, Bonaparte, o imperador de Marrocos, os assassinos que
morrem no suplício, são os únicos maus entre todos? Não veem que
muitos fariam outro tanto se pudessem?
Bonaparte,
falando imparcialmente, não é pior que muitos homens, para não
dizer a maior parte dos homens. Apenas tem o egoísmo perfeitamente
vulgar que consiste em procurar o seu bem à custa dos outros. O que
o distingue é unicamente uma força superior para satisfazer essa
vontade, uma inteligência mais vasta, uma razão melhor, uma maior
coragem, e o acaso deu-lhe, além disso, um campo favorável. Graças
a todas essas condições reunidas, realizou para o seu egoísmo o
que milhares de outros bem gostariam, mas não lhes é dado fazer.
Todo garoto incorrigível, que, pela maldade, procura uma pequena
vantagem em detrimento dos seus camaradas, embora seja insignificante
o dano que cause, é tão mau como Bonaparte.
Querem
planos utopistas: a única solução do problema político e social
seria o despotismo dos sábios e dos nobres, de uma aristocracia pura
e verdadeira, obtida por meio da geração, pela união dos homens de
sentimentos altamente generosos com as mulheres mais inteligentes e
finas. Essa proposta é a minha “utopia” e a minha “república”
de Platão.
Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo
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