Ela
conta a história de uma freira que a atormentava no internato, em
seu tempo de menina; de um homem que a fez viver longamente entre o
desespero e o tédio, a revolta e a humilhação. E fica meio magoada
porque a tudo eu sorrio, porque eu não pareço participar do
sentimento com que ela fala contra essa gente que passou. Afinal ela
também sorri: “Você é meu amigo ou amigo da onça?”
Sou
seu amigo. Mas rico ri à toa, e eu me sinto vertiginosamente rico
porque essas histórias, alegres ou tristes, ela me conta de mãos
dadas, junto de mim. Digo-lhe isso; mas não lhe confesso que aprovo
e abençoo todas as coisas e pessoas que povoaram seu passado, e
tenho vontade de dizer: “Benditos teu pai e tua mãe; benditos os
que te amaram e os que te maltrataram; bendito o artista que te
adorou e te possuiu, e o pintor que te pintou nua, e o bêbedo de rua
que te assustou, e o mendigo que disse uma palavra obscena; bendita a
amiga que te salvou e bendita a amiga que te traiu; e o amigo de teu
pai que te fitava com concupiscência quando ainda eras menina; e a
corrente do mar que te ia arrastando; e o cão que uivava a noite
inteira e não te deixou dormir; e o pássaro que amanheceu cantando
em tua janela; e a insensata atriz inglesa que de repente te beijou
na boca; e o desconhecido que passou em um trem e te acenou adeus; e
teu medo e teu remorso a primeira vez que traíste alguém; e a
volúpia com que o fizeste; e a firme determinação, e o cinismo
tranquilo, e o tédio; e a mulher anônima que te vociferou insultos
pelo telefone; e a conquista de ti por ti mesma, para ti mesma; e os
intrigantes do bairro que tentaram te envolver em suas teias escuras;
e a porta que se abriu de repente sobre o mar; e a velhinha de preto
que ao te ver passar disse: ‘moça linda...’; bendita a chuva que
tombou de súbito em teu caminho, e bendito o raio que fez saltar teu
cavalo, e o mormaço que te fez inquieta e aborrecida, e a lua que te
surpreendeu nos braços de um homem escuro entre as grandes árvores
azuis. Bendito seja todo o teu passado, porque ele te fez como tu és
e te trouxe até mim. Bendita sejas tu.”
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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