Quando
a ponta do véu de Maia (a ilusão da vida individual) se ergue ante
os olhos de um homem, de tal modo que já não faz diferença egoísta
entre a sua pessoa e os restantes homens, e toma tanto interesse
pelos sofrimentos estranhos como pelos seus próprios, tornando-se
assim caritativo até a dedicação, pronto a sacrificar-se pela
salvação dos seus semelhantes – esse homem, chegado ao ponto de
se reconhecer a si mesmo em todos os seres, considera como seus os
sofrimentos infinitos de tudo quanto vive, e apodera-se, dessa
maneira, da dor do mundo. Nenhuma miséria lhe é indiferente. Todos
os tormentos que vê e tão raramente lhe são dados suavizar, todas
as angústias de que ouve falar, mesmo aquelas que lhe é possível
conceber, perturbam-lhe o espírito como se fosse ele a vítima.
Insensível
às alternativas de bens e de males que se sucedem no seu destino,
livre de todo egoísmo, penetra os véus da ilusão individual; tudo
quanto vive, tudo quanto sofre, está igualmente junto do seu
coração. Imagina o conjunto das coisas, a sua essência, a sua
eterna passagem, os esforços vãos, as lutas íntimas e os
sofrimentos sem fim; para qualquer lado que se volte, vê o homem que
sofre, o animal que sofre, e um mundo que se desvanece eternamente. E
une-se tão estreitamente às dores do mundo como o egoísta à sua
pessoa. Como poderia ele, com tão grande conhecimento do mundo,
afirmar com desejos incessantes a sua vontade de viver, prender-se
cada vez mais estreitamente à vida?
O
homem seduzido pela ilusão da vida individual, escravo do egoísmo,
só vê as coisas que o tocam pessoalmente, e encontra aí motivos
incessantemente renovados para desejar e querer; pelo contrário,
aquele que penetra a essência das coisas, que domina o conjunto,
chega ao repouso de todo desejo e de todo querer. Daí em diante, a
sua vontade desvia-se da vida, repele com susto os gozos que a
perpetuam. O homem chega então ao estado da renúncia voluntária,
da resignação, da tranquilidade verdadeira, e da ausência absoluta
de vontade.
Enquanto
o mau, entregue pela violência da vontade e dos desejos a tormentos
íntimos, contínuos e devoradores, se vê reduzido, quando se lhe
esgota o manancial de todos os gozos, a saciar a sede ardente dos
desejos no espetáculo das desgraças alheias, o homem penetrado da
ideia de renúncia absoluta, seja qual for o seu desenlace, embora
privado exteriormente de toda alegria e de todo bem, goza contudo uma
aventura completa e um repouso verdadeiramente celeste. Para ele, não
existe já o ardor febril, a alegria exuberante, essa alegria
precedida e seguida de tantos desgostos, condição inevitável da
existência para o homem que tem gosto pela vida; o que ele
experimenta é uma paz inabalável, um repouso profundo, uma
serenidade íntima, um estado que não podemos ver ou imaginar sem o
desejarmos com ardor, porque se nos assemelha o único, justo,
infinitamente superior a qualquer outro, um estado para o qual nos
convidam e nos chamam o que há de melhor em nós e essa voz íntima
que nos brada: sapere aude. Sentimos então que todo desejo
realizado, toda felicidade arrancada à miséria do mundo são como a
esmola que hoje sustenta o mendigo, para que amanhã morra de fome,
enquanto a resignação é como um bem que se herdou, que coloca para
sempre o feliz possuidor ao abrigo dos cuidados.
Sabemos
que os momentos em que a contemplação das obras de arte nos livra
dos desejos ávidos, como se pairássemos acima da atmosfera pesada
da terra, são ao mesmo tempo os mais felizes que conhecemos.
Por
aqui podemos deduzir a felicidade que deve experimentar o homem cuja
vontade se acha apaziguada, não por alguns instantes como no gozo
desinteressado do belo, mas para sempre, e se extingue mesmo
inteiramente, de modo que só resta a última centelha da luz
vacilante, que anima o corpo e se extinguirá com ele. Quando esse
homem, após muitos e rudes combates contra o seu próprio
temperamento, acaba por triunfar completamente, apenas existe como um
ser puramente intelectual, como um espelho do mundo que coisa alguma
perturba. Daí em diante nada há que possa causar-lhe angústia, que
consiga agitá-lo; porque os mil laços do querer que nos mantêm
acorrentados ao mundo e nos atormentam em todos os sentidos com
incessantes dores sob a forma de desejo, receio, inveja, cólera,
esses mil laços quebra-os ele. Lança um olhar para trás, tranquilo
e risonho, às imagens ilusórias deste mundo que puderam um dia
agitá-lo e torturar-lhe o coração; olha para elas com tanta
indiferença como para o xadrez, depois de finda a partida ou para as
máscaras de carnaval que se largaram de manhã e cujas figuras
lograram irritar-nos ou perturbar-nos na noite de terça-feira gorda.
A vida e todas as formas passam-lhe diante dos olhos como aparição
passageira, como um ligeiro sonho matutino para o homem meio
desperto, um sonho que a verdade trespassa já com os seus raios e
que não consegue nos iludir; e, assim como um sonho, a vida também
por fim se desvanece, sem transição brusca.
Se
refletirmos sobre como a miséria e os infortúnios são geralmente
necessários para a nossa libertação, reconheceremos que deveríamos
invejar menos a felicidade do que a desgraça dos nossos semelhantes.
É por essa razão que o estoicismo, que afronta o destino, é na
verdade para a alma uma espessa couraça contra as dores da
existência e ajuda a suportar melhor o presente; mas opõe-se à
verdadeira salvação porque torna o coração endurecido. E como
poderia o estóico tornar-se melhor pelo sofrimento, se é insensível
a ele sob a camada de pedra com que se cobre? – Até um certo grau,
esse estoicismo não é muito raro. Muitas vezes não passa de uma
pura afetação, de um modo de dissimular o enfado; e quando é real,
provém quase sempre da pura insensibilidade, da falta de energia, de
vivacidade, de sentimento e de imaginação, necessária para sentir
uma dor.
Quem
se mata quer a vida, só se queixa das condições sob as quais ela
se lhe oferece. Não renuncia portanto à vontade de viver, mas
unicamente à vida, de que destrói na sua pessoa um dos fenômenos
passageiros… É precisamente porque não pode cessar de querer que
cessa de viver, e é suprimindo em si o fenômeno da vida que afirma
o seu desejo de viver. Porque era justamente a dor a que se subtrai,
que poderia, como mortificação da vontade, conduzi-lo à renúncia
e à libertação. Sucede àquele que se mata o mesmo que a um doente
que, não tendo a energia precisa para deixar terminar uma operação
dolorosa mas salutar, preferisse continuar doente. O sofrimento
suportado com coragem permitir-lhe-ia suprimir a vontade; mas
subtrair-se ao sofrimento, destruindo no corpo essa manifestação da
vontade, de tal modo que ela subsiste sem obstáculos.
Poucos
homens, pelo simples conhecimento refletido das coisas, conseguem
penetrar a ilusão do principium individuationis, poucos
homens possuidores de uma perfeita bondade de alma, de caridade
universal, chegam por fim a reconhecer todas as dores do mundo como
as suas próprias, para obterem a negação da vontade. Mesmo nos que
mais se aproximam desse grau superior, as comodidades pessoais, o
encanto fascinador do momento, a visão da esperança, os desejos
incessantemente renovados são um eterno obstáculo à renúncia, um
eterno incentivo à vontade; donde resulta que personificaram nos
demônios infinidade de seduções que nos tentam e atraem.
Tem
portanto a nossa vontade que ser quebrada por um imenso sofrimento
antes que chegue à renúncia de si própria. Quando ela percorreu
todos os graus da angústia, quando após uma suprema resistência
toca o abismo do desespero, o homem volta subitamente a si,
conhece-se, conhece o mundo, transforma-se-lhe a alma, eleva-se acima
de si mesmo e de todo sofrimento; então purificado, santificado de
algum modo num repouso, numa felicidade inabalável, numa elevação
inacessível, renuncia a todos os objetos dos seus apaixonados
desejos, e recebe a morte com alegria. Como um pálido clarão, a
negação da vontade de viver, isto é, a libertação, jorra
subitamente da chama purificadora da dor.
Os
próprios criminosos podem-se purificar por uma enorme dor;
transformam-se inteiramente. Os crimes passados deixam de lhes
oprimir a consciência; contudo, estão prontos a expiá-los pela
morte e vêm de bom grado extinguir-se com eles esse fenômeno
passageiro da vontade, que se lhes tem tornado estranho e como um
objeto de horror. No tocante episódio de Gretchen, Goethe
ofereceu-nos uma pintura incomparável e brilhante dessa negação da
vontade causada por um imenso infortúnio e pelo desespero. É um
modelo perfeito dessa segunda maneira de atingir a renúncia, a
negação da vontade, não pelo puro conhecimento das dores do mundo
inteiro, às quais nos identificamos voluntariamente, mas por uma dor
esmagadora que nos acabrunhou.Uma grande dor, uma grande desgraça
podem nos obrigar a conhecer as contradições da vontade de viver
consigo mesmo, e mostrar-nos nitidamente a inutilidade de todos os
esforços. É por esse motivo que se têm visto muitas vezes alguns
homens, depois de uma existência agitada de paixões tumultuosas,
reis, heróis, aventureiros, mudarem subitamente, resignarem-se,
arrependerem-se, fazerem-se frades ou anacoretas. É esse o assunto
de todas as histórias de conversões autênticas, por exemplo a de
Raimundo Lulio: um dia uma mulher que ele amava havia muito
marcou-lhe enfim uma entrevista em sua casa, ele entra no quarto,
louco de alegria, mas a bela, entreabrindo o vestido, mostrou-lhe um
seio corroído por um medonho cancro. Desde esse momento, como se
tivesse entrevisto o inferno, converteu-se, abandonou a corte do rei
de Maiorca, retirou-se para um deserto, fez penitência.
A
conversão de Rancé assemelha-se muito à de Raimundo Lulio.
Consagrara a mocidade a todos os prazeres e vivia, por fim, com uma
dama de Monbazon. Uma noite, à hora da entrevista, encontra o quarto
vazio, escuro, em desordem; tropeça em qualquer coisa, era a cabeça
da amante que haviam separado do tronco; morrera subitamente, e não
haviam conseguido meter o cadáver no caixão de chumbo colocado ali
perto. – Torturado por uma angústia sem limites, Rancé tornou-se,
em 1663, o Reformador da Ordem dos Trapistas, então completamente
degenerada da sua antiga disciplina; em pouco tempo elevou-a a essa
grandeza de renúncia que ainda hoje vemos, a essa negação da
vontade, conduzida metodicamente por meio das mais duras privações,
a essa vida de austeridade, de trabalhos incríveis que penetra o
estrangeiro de um santo horror, quando, entrando no convento, observa
ato contínuo a humildade desses verdadeiros frades que, extenuados
de jejuns, de vigílias, de orações, de trabalhos, se ajoelha
diante dele, filho do mundo e pecador, pedindo-lhe a benção. É
entre o povo mais alegre, mais divertido, mais sensual e mais leviano
– será preciso nomear a França? – que essa ordem, única entre
todas, manteve-se intacta por entre todas as revoluções, e deve-se
atribuir a sua duração à seriedade profunda que não se pode
deixar de reconhecer no espírito que anima e que exclui qualquer
consideração secundária. A decadência da religião não a
atingiu, porque as raízes dessa ordem encontram-se nas profundidades
da natureza humana, bem mais do que num dogma positivo qualquer.
Desviemos
os olhos da nossa própria insuficiência, da mesquinhez dos nossos
sentimentos e preconceitos, para os erguermos para aqueles que
venceram o mundo, para aqueles em que a vontade, levada ao pleno
conhecimento de si própria, se encontrou em todas as coisas e se
negou livremente e que esperam que os últimos clarões se apaguem
com o corpo que os anima; vemos então, em lugar dessas paixões
irresistíveis, dessa atividade sem repouso, em vez dessa passagem
incessante do desejo ao receio e da alegria à dor, em vez da
esperança que coisa alguma satisfaz e que nunca se sacia e se
dissipa, e de que é feito o sonho da vida para o homem subjugado
pela vontade – vemos a paz, superior a toda razão, esse grande mar
calmo do sentimento, esse sossego profundo, essa segurança
inabalável, essa serenidade, cujo único reflexo no rosto, tais como
Rafael e Correggio o pintaram, é um completo evangelho no qual nos
podemos fiar: só resta o conhecimento; a vontade desapareceu.
O
espírito íntimo e o sentido da vida verdadeira e pura do claustro e
do ascetismo em geral é nos sentirmos dignos e capazes de uma
existência melhor do que a nossa, e querermos fortificar e manter
essa convicção pelo desprezo de todos os vãos gozos deste mundo.
Espera-se com segurança e calma o fim desta vida livre das ilusões
enganadoras, para saudar um dia a hora da morte como a da libertação.
Quietismo,
isto é, renúncia a todo desejo; ascetismo, isto é, imolação
refletida da vontade egoísta; e misticismo, isto é, consciência da
identidade do seu ser com o conjunto das causas e o princípio do
universo – três disposições da alma que se ligam estreitamente;
quem fizer profissão de uma é atraído para a outra, mau grado seu.
– Não há nada mais surpreendente do que ver o acordo de todos
aqueles que nos pregaram essas doutrinas, por entre a extrema
variedade dos tempos, dos países e das religiões, e nada mais
curioso do que a segurança inabalável como o rochedo, a certeza
interior com que nos apresentam o resultado da sua experiência
íntima.
Não
é na verdade o judaísmo com a sua máxima: “Deus viu todas as
coisas que havia feito, e estavam muito boas” (Moisés,
1:31), mas o bramanismo e o budismo, que pelo espírito e pela
tendência moral se aproximam do cristianismo. O espírito e a
tendência moral são o que há de essencial numa religião, e não
os mitos com que ela os envolve.
Essa
máxima do Antigo Testamento é realmente estranha ao puro
cristianismo; porque em todo o Novo Testamento trata-se do
mundo como de uma coisa a que se não pertence, que não se ama, de
uma coisa que está sob o poder do diabo. Isso concorda com o
espírito do ascetismo, de renúncia e de vitória sobre o mundo,
esse espírito que junto ao amor ao próximo e ao perdão das
injúrias marca o traço fundamental e a estreita afinidade que unem
o cristianismo, o bramanismo e o budismo. É no cristianismo
principalmente que é necessário sondar bem a fundo as coisas e não
se contentar com as aparências.
O
protestantismo, eliminado o ascetismo e o celibato, que é o seu
ponto capital, atingiu a própria essência do cristianismo, e desse
ponto de vista pode ser considerado como uma apostasia. Viu-se bem
nos nossos dias quanto o protestantismo degenerou pouco a pouco num
vulgar racionalismo, espécie de pelagianismo moderno, que se resume
na doutrina de um bom pai criando o mundo para que aí se divirtam
muito (no que se teria redondamente enganado); e esse bom pai, sob
certas condições, promete também procurar mais tarde aos seus
servos fiéis um mundo muito mais belo, cujo único inconveniente é
ter uma entrada tão funesta. Isso pode ser certamente uma boa
religião para padres protestantes casados e esclarecidos, mas não é
esse o cristianismo. O cristianismo é a doutrina que afirma que o
homem é profundamente culpado pelo único fato de ter nascido e
ensina ao mesmo tempo que o coração deve aspirar à libertação,
que só se pode obter à custa de grandes sacrifícios, pela
renúncia, pelo aniquilamento de si próprio, isto é, por uma
transformação total da natureza humana.
O
otimismo não é mais do que uma forma de louvores que a vontade de
viver, única e primeira causa do mundo, concede sem razão a si
mesma, quando se revê com gosto na sua obra; não é só uma
doutrina falsa, é uma doutrina corruptora, porque apresenta a vida
como um estado desejável, e dá-lhe como fim a felicidade do homem.
Em vista disso, cada um imagina que possui os mais justificados
direitos à felicidade e ao gozo; se contudo esses bens, como sucede
frequentemente, não lhe são dados em partilha, julga-se vítima de
uma injustiça – não lhe falhou o fim da sua existência –, ao
passo que é bem mais justo considerar o trabalho, a privação, a
miséria e o sofrimento coroado pela morte como o único alvo da
nossa vida (assim fazem o bramanismo, o budismo e também o
verdadeiro cristianismo), porque todos esses males conduzem à
negação da vontade de viver. No Novo Testamento, o mundo é
representado como um vale de lágrimas; a vida, como um meio de
purificar a alma; e o símbolo do cristianismo é um instrumento de
martírio.
A
moral dos índios tal como é apresentada do modo mais variado e mais
enérgico nos Vedas, nos Puranas, pelos poetas nos
mitos e nas lendas dos santos, nas suas sentenças e regras de vida,
prescreve expressamente: o amor ao próximo, com absoluto
desprendimento de si mesmo, amor não só limitado aos homens mas a
todos os seres vivos: a beneficência levada até o abandono do
salário cotidiano obtido à custa de duro e pesado trabalho; uma
bondade sem limites para com aquele que nos ofende; o bem e o amor em
troca do mal que nos façam por maior que seja; o perdão alegre e
espontâneo para todas as injúrias; a abstinência de todo alimento
animal; uma castidade absoluta e a renúncia a todas as
voluptuosidades para aquele que aspira à verdadeira santidade; o
desprezo pelas riquezas, o abandono da moradia, da propriedade; uma
solidão profunda e absoluta, passada em muda contemplação, junto a
um arrependimento voluntário e sofrimentos lentos e horríveis para
mortificar absolutamente a vontade, a ponto de morrer de fome;
entregar-se aos crocodilos; precipitar-se do cimo de um rochedo do
Himalaia, santificado por esse uso; enterrar-se vivo; lançar-se
debaixo das rodas do carro gigantesco, que passeia as imagens dos
deuses, no meio de cantos, gritos de alegria e danças. E essas
prescrições, cuja origem data de mais de quatro mil anos, existem
ainda no maior rigor entre esse povo, por muito degenerado que se
encontre hoje. Um uso mantido há tanto tempo entre tantos milhões
de homens, uma prática que impõe tão pesados sacrifícios, não
pode ser a invenção arbitrária de algum cérebro alucinado, deve
ter raízes profundas na própria essência da humanidade. –
Acrescento que não se pode admirar assaz o acordo, a perfeita
unanimidade de sentimentos que se nota, se lermos a vida de um santo
ou a de um penitente cristão, e a de um índio. Por meio da
variedade da oposição absoluta dos dogmas, dos costumes, dos meios,
dos esforços, a vida íntima de um e de outro é idêntica.
Os
cristãos místicos e os mestres da filosofia vedanta concordam ainda
em considerar como supérfluas as obras exteriores e os exercícios
religiosos para aquele que consegue atingir a perfeição.
Tão
grande acordo entre povos tão diferentes, numa época muito remota,
é uma prova evidente de que não se trata aqui, como declaram os
banais otimistas, de uma aberração, de um desequilíbrio do
espírito e dos sentidos; pelo contrário, é um lado essencial da
natureza humana, um lado admirável que raramente se encontra e que
se exprime nesse ascetismo.
Assim
considerando a vida dos santos, que sem dúvida raramente nos é dado
encontrar e conhecer por experiência própria, mas de quem a arte
nos traça a história com uma verdade segura e profunda, devemos
dissipar a sombria impressão deste nada, que flutua com o último
objetivo atrás de toda a virtude e de toda a santidade, e que
tememos, como a criança teme as trevas, em vez de procurarmos
escapar como os índios, por meio de mitos e palavras destituídas de
sentido, tais como a ressorção no Brama, ou o Nirvana dos budistas.
Reconheçamos: o que resta após a supressão total da vontade não é
coisa alguma para todos aqueles que estão ainda cheios da vontade de
viver, é o nada. Mas também para aqueles nos quais a vontade chegou
a desviar-se do seu fito, a negar-se a si mesma o nosso mundo, que
nos parece tão real como todos os seus sóis e as suas vias lácteas,
o que é? Nada.
Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo
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