Acordo
cedo, tomo café da manhã, coloco um legging preto, uma camiseta e
saio a pé. Opa, esqueci uma coisa. O casaco que vai na cintura. Não
porque eu ache que vou sentir frio na aula de zumba, mas porque
“legging”, “mulher” e “andar na rua” formam uma
combinação que tende a trazer aborrecimentos.
E
não precisa ser legging. Quem de nós, ao se vestir, usa aquilo que
realmente tem vontade? O minishort num dia de calor, a calça branca
quando dá vontade, a blusa decotada quando estamos bronzeadas?
Somos, efetivamente, donas do nosso corpo e do nosso guarda-roupa? Ou
há uma censura, da porta para fora, que nos faz pensar vinte vezes
antes de escolher?
E
sabemos que não é preciso ser nenhuma atriz global para sofrer com
esses incômodos. Qualquer uma de nós, reles mortais com todas as
suas imperfeições, lida com esse tormento diário, ao qual vamos
tristemente tentando nos habituar.
Quantas
de nós já atravessaram a rua para fugir de um grupo de homens,
tentando evitar seus gentis “elogios”?E quando coloco a palavra
elogio entre aspas, não estou me referindo só àqueles comentários
grosseiros da família do “Ô, delícia” e do “Ô, lá em
casa”. Coloco também aqueles que supostamente não são agressivos
como o “Linda você, hein, gata?” e os beijos estalados lançados
pela janela dos carros.
Todos
eles pertencem à mesma categoria: aquela dos elogios que não
queremos ouvir.
Junto
a eles, e tão indigestos quanto, entram os olhares insistentes.
Aqueles que não vêm acompanhados de nenhum ruído, mas que
conseguem nos constranger, nos acuar, nos ofender.
Alguém
consegue me dizer que isso não é uma forma de violência?
E
acontece em todo canto. No trânsito, quando estamos cantarolando
animadas até perceber que estamos sendo ostensivamente observadas.
No restaurante, por aquele cara da outra mesa que nos faz ter vontade
de mudar de lugar. Na praia. No metrô. Na fila do banco. No balcão
da farmácia.
Minha
mãe diz que um lado bom de envelhecer é ir se livrando de tudo
isso. Precisaremos esperar por isso? E será que nossas filhas ou
netas passarão pelas mesmas coisas? Será que, aos 12 anos, elas já
vão se culpar por um vestido de verão num dia de 30 graus porque
alguém gritou “Gostosa!!” do outro lado da rua? Será que elas
também vão precisar do moletom desnecessário na cintura?
Prezado
Cara Que Não Conhecemos,
(Não
nos importa quem é você: se está de terno ou de capacete, se
trabalha no escritório ou no lava-rápido, se está de Kombi ou de
Corolla.)
Não
nos elogie. Não nos olhe desse jeito. Guarde suas palavras para sua
esposa, sua mãe, sua tia. Alguém que as queira.
Mas
nos dê de presente o direito de andar pela rua prestando mais
atenção nas árvores que estão floridas do que ansiando pela
possibilidade de você nos aborrecer.
Elogio
goela abaixo não é elogio, moço. É grosseria. E obrigada por
oferecer, mas, sinceramente, dispensamos.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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