Ilustração: Leya
Mira Brander
Tia
Alda era um mistério para mim, menina tímida, de pouca conversa.
Tinha o dom de encantar com as palavras. Qualquer mal-entendido entre
os parentes, lá vinha ela, por vontade própria, ou convocada com
urgência, para colocar as coisas em ordem. Se um conflito avultava,
tia Alda o reduzia; se o rio familiar transbordava de intrigas, ela o
devolvia à calma de suas nascentes; se o vento da discórdia
soprava, ela o recolhia com a agilidade de quem caçava borboletas.
Lembro-me
de uma de suas proezas, uma das que mais me impressionaram. Sem
sabermos o motivo, uma de nossas vizinhas um dia desentendeu-se com o
marido: pegou uma faca de repente e saiu em correria pelo quintal
atrás dele, ameaçando matá-lo. Era um caso perigoso porque a
mulher usava habilmente facas, facões e machadinhas: degolava
frangos para outras donas de casa, matava leitoas e limpava peixes a
pedido dos homens do bairro. O marido, encurralado entre o tanque e a
jabuticabeira, tentava se safar e suplicava para que ela o poupasse.
Alguém
chamou tia Alda às pressas. Eu estava na varanda de casa, apavorada,
quando ela voltou da vizinha com a faca na mão, o rosto sereno.
Minha mãe, pasma com aquele milagre, perguntou-lhe:
— Deus,
como você conseguiu?
— Com
paciência! — respondeu tia Alda.
— Sim,
mas qual é o segredo?
— O
segredo está nas palavras.
Nessa
época, eu aprendia a ler e a escrever e me peguei imaginando quais
palavras ela usara para desarmar a vizinha e conseguir a sua
rendição.
Então,
uma tarde na escola, depois de soar a campainha anunciando o fim das
aulas, demorei para sair e, ao fazê-lo, umas meninas pararam no
portão e me impediram a passagem. Pedi educadamente que me deixassem
passar. Negaram-se. E, como tentei escapar à força, empurraram-me
de lá para cá, beliscaram-me e só não me bateram porque um
inspetor viu a provocação e veio em meu socorro. Cheguei arrasada
em casa, as marcas de arranhões nos braços, os olhos vermelhos. De
nada valeu minha mãe tentar me extrair a verdade, eu me recolhera
num mutismo de aço. Aborrecida com minha teimosia, telefonou para a
irmã, pedindo-lhe que viesse falar comigo.
Pouco
depois, ouvi tia Alda bater à porta de meu quarto.
— Posso
entrar? — perguntou.
Já
que eu não respondia nem sim nem não, ela girou a maçaneta,
entrou, mansamente, e se sentou ao pé da cama. Não disse nada e se
manteve assim um tempão. Em vez de me sentir acuada, animei-me a
falar e pensei que seu segredo não estava nas palavras, mas em seu
silêncio. Contei-lhe, então, aos pedaços, o que me sucedera. Ao
relembrar a humilhação de que fora vítima, voltei a soluçar. Por
que as meninas tinham feito aquilo comigo?
Depois
de meu desabafo, ela se levantou; vendo minha mochila escolar, pegou
um caderno e o folheou por longo tempo, como se não encontrasse o
que me dizer. Seria a primeira derrota dela e me senti duplamente
triste em imaginar que meu ídolo cairia diante de meus pés. Mas, de
repente, ela fechou o caderno, suspirou e perguntou se eu sabia a
diferença entre vogais e consoantes, o que me decepcionou ainda
mais; eu precisava da ajuda dela e desejava experimentar plenamente
em mim o seu milagre.
Virei
o rosto e me recusei a responder, não queria falar de nada que
lembrasse a escola onde eu, havia pouco, provara aquela lição
dolorosa. Aí ela disse que o mundo era como o alfabeto, feito de
vogais e consoantes. As vogais eram sons que nasciam quando o ar saía
livremente pela nossa boca. As consoantes não: os lábios, os
dentes, a língua e o palato criavam obstáculos à passagem do ar
quando a gente as pronunciava.
Eu
era uma vogal e tentara passar livremente pelo portão, mas as
meninas, consoantes, haviam me impedido. E se existissem apenas
vogais, ou só consoantes, o mundo teria de ser escrito de outra
maneira; o bonito era que podíamos fazer inúmeras combinações.
Conforme
tia Alda falava, comecei a pensar nas pessoas que eu conhecia, a
comparar uma das garotas balofas com a letra B, o inspetor alto e
magro que me socorrera com a letra I, a minha rechonchuda prima com a
letra O, e, assim, fui me alegrando a cada vez que encontrava no
alfabeto uma vogal ou consoante que lembrava algum conhecido.
Agora,
tantos anos depois, recebo por telefone a notícia de que ela morreu.
Ao saber pela voz de minha mãe as circunstâncias, estremeço com a
escrita do destino, ou do acaso, se é que ambos não são faces da
mesma moeda: tia Alda fora ao banco pagar uma conta, quando três
assaltantes, entre eles uma mulher, renderam os seguranças e
exigiram o dinheiro do cofre. A polícia cercou o banco, os
ladrões fizeram clientes e funcionários seus reféns.
Meu
coração se comprimia, enquanto ela me contava os detalhes: o tempo
passara e as negociações não evoluíam. Então, os assaltantes
ameaçaram matar uma pessoa a cada meia hora, se não lhes
facilitassem a fuga. Depois de uma hora, soaram dois estampidos; Era
só pra assustar, minha mãe disse, chorando, ninguém tinha se
ferido, como se soube mais tarde.
Mas
aí, quando os policiais invadiam o banco para libertar os reféns,
tia Alda surgiu à porta com umas armas nas mãos. Tinha
convencido os assaltantes a se entregarem, filha! Só que os
policiais a confundiram com a cúmplice dos ladrões. Não sabiam o
que eu descobri, naquela tarde, com as suas palavras: que ela era uma
vogal. Ela estava ali para lhes abrir a passagem.
João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda
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