segunda-feira, 24 de abril de 2023

Vogal

Ilustração: Leya Mira Brander


Tia Alda era um mistério para mim, menina tímida, de pouca conversa. Tinha o dom de encantar com as palavras. Qualquer mal-entendido entre os parentes, lá vinha ela, por vontade própria, ou convocada com urgência, para colocar as coisas em ordem. Se um conflito avultava, tia Alda o reduzia; se o rio familiar transbordava de intrigas, ela o devolvia à calma de suas nascentes; se o vento da discórdia soprava, ela o recolhia com a agilidade de quem caçava borboletas.
Lembro-me de uma de suas proezas, uma das que mais me impressionaram. Sem sabermos o motivo, uma de nossas vizinhas um dia desentendeu-se com o marido: pegou uma faca de repente e saiu em correria pelo quintal atrás dele, ameaçando matá-lo. Era um caso perigoso porque a mulher usava habilmente facas, facões e machadinhas: degolava frangos para outras donas de casa, matava leitoas e limpava peixes a pedido dos homens do bairro. O marido, encurralado entre o tanque e a jabuticabeira, tentava se safar e suplicava para que ela o poupasse.
Alguém chamou tia Alda às pressas. Eu estava na varanda de casa, apavorada, quando ela voltou da vizinha com a faca na mão, o rosto sereno. Minha mãe, pasma com aquele milagre, perguntou-lhe:
Deus, como você conseguiu?
Com paciência! — respondeu tia Alda.
Sim, mas qual é o segredo?
O segredo está nas palavras.
Nessa época, eu aprendia a ler e a escrever e me peguei imaginando quais palavras ela usara para desarmar a vizinha e conseguir a sua rendição.
Então, uma tarde na escola, depois de soar a campainha anunciando o fim das aulas, demorei para sair e, ao fazê-lo, umas meninas pararam no portão e me impediram a passagem. Pedi educadamente que me deixassem passar. Negaram-se. E, como tentei escapar à força, empurraram-me de lá para cá, beliscaram-me e só não me bateram porque um inspetor viu a provocação e veio em meu socorro. Cheguei arrasada em casa, as marcas de arranhões nos braços, os olhos vermelhos. De nada valeu minha mãe tentar me extrair a verdade, eu me recolhera num mutismo de aço. Aborrecida com minha teimosia, telefonou para a irmã, pedindo-lhe que viesse falar comigo.
Pouco depois, ouvi tia Alda bater à porta de meu quarto.
Posso entrar? — perguntou.
Já que eu não respondia nem sim nem não, ela girou a maçaneta, entrou, mansamente, e se sentou ao pé da cama. Não disse nada e se manteve assim um tempão. Em vez de me sentir acuada, animei-me a falar e pensei que seu segredo não estava nas palavras, mas em seu silêncio. Contei-lhe, então, aos pedaços, o que me sucedera. Ao relembrar a humilhação de que fora vítima, voltei a soluçar. Por que as meninas tinham feito aquilo comigo?
Depois de meu desabafo, ela se levantou; vendo minha mochila escolar, pegou um caderno e o folheou por longo tempo, como se não encontrasse o que me dizer. Seria a primeira derrota dela e me senti duplamente triste em imaginar que meu ídolo cairia diante de meus pés. Mas, de repente, ela fechou o caderno, suspirou e perguntou se eu sabia a diferença entre vogais e consoantes, o que me decepcionou ainda mais; eu precisava da ajuda dela e desejava experimentar plenamente em mim o seu milagre.
Virei o rosto e me recusei a responder, não queria falar de nada que lembrasse a escola onde eu, havia pouco, provara aquela lição dolorosa. Aí ela disse que o mundo era como o alfabeto, feito de vogais e consoantes. As vogais eram sons que nasciam quando o ar saía livremente pela nossa boca. As consoantes não: os lábios, os dentes, a língua e o palato criavam obstáculos à passagem do ar quando a gente as pronunciava.
Eu era uma vogal e tentara passar livremente pelo portão, mas as meninas, consoantes, haviam me impedido. E se existissem apenas vogais, ou só consoantes, o mundo teria de ser escrito de outra maneira; o bonito era que podíamos fazer inúmeras combinações.
Conforme tia Alda falava, comecei a pensar nas pessoas que eu conhecia, a comparar uma das garotas balofas com a letra B, o inspetor alto e magro que me socorrera com a letra I, a minha rechonchuda prima com a letra O, e, assim, fui me alegrando a cada vez que encontrava no alfabeto uma vogal ou consoante que lembrava algum conhecido.
Agora, tantos anos depois, recebo por telefone a notícia de que ela morreu. Ao saber pela voz de minha mãe as circunstâncias, estremeço com a escrita do destino, ou do acaso, se é que ambos não são faces da mesma moeda: tia Alda fora ao banco pagar uma conta, quando três assaltantes, entre eles uma mulher, renderam os seguranças e exigiram o dinheiro do cofre. A polícia cercou o banco, os ladrões fizeram clientes e funcionários seus reféns.
Meu coração se comprimia, enquanto ela me contava os detalhes: o tempo passara e as negociações não evoluíam. Então, os assaltantes ameaçaram matar uma pessoa a cada meia hora, se não lhes facilitassem a fuga. Depois de uma hora, soaram dois estampidos; Era só pra assustar, minha mãe disse, chorando, ninguém tinha se ferido, como se soube mais tarde.
Mas aí, quando os policiais invadiam o banco para libertar os reféns, tia Alda surgiu à porta com umas armas nas mãos. Tinha convencido os assaltantes a se entregarem, filha! Só que os policiais a confundiram com a cúmplice dos ladrões. Não sabiam o que eu descobri, naquela tarde, com as suas palavras: que ela era uma vogal. Ela estava ali para lhes abrir a passagem.

João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda

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