Emília
era uma bela jovem com quem eu mantinha uma relação amorosa. Não
morávamos na mesma casa. O casamento, ou outra coisa parecida, não
faz bem aos amantes.
Um
dia, Emília estava conversando comigo quando disse, inesperadamente:
“Você
escreveu que o amor, como a borboleta, tem uma curta vida de
esplendor. Nosso amor está acabando?”
Sem
esperar a resposta, Emília, que sonhava casar comigo e, como todas
as mulheres, ter filhos, perguntou:
“Gostaria
de ter uma namorada escritora, doutora em Letras?”
“As
que conheço são feias e chatas. Não possuem, como você, as
necessárias virtudes físicas.”
“Físicas?”
“Do
grego physikós”, soletrei a palavra. “As qualidades
exteriores e materiais — aspecto, configurações, compleição.”
Emília
respondeu:
“Você
ainda vai encontrar uma.”
“É
uma profecia?”
“Não,
uma maldição.”
No
dia seguinte, aconteceu o episódio da churrascaria. Emília era
vegetariana e eu louco por carne. Pelo menos uma vez por semana
jantava sozinho numa churrascaria. A própria Emília sugerira esse
arranjo.
Estava
devorando uma picanha com farofa quando uma mulher linda se aproximou
da minha mesa.
“Você
não é o Salustiano Gonçalo?”
Ela
vai dizer que leu um dos meus livros, pensei. Larguei no prato o
pedaço de picanha que ia enfiar na boca e levantei-me.
“Fomos
apresentados na festa da Carmita, lembra?”
“Claro.
Na festa da Carmita.”
“Está
lembrado mesmo? Há uns três ou quatro meses?”
“Não,
desculpe. Há três ou quatro meses eu ficava bêbado em todas as
festas.”
“Eu
notei.”
“Mas
agora”, eu disse, olhando fixamente para a mulher, “não esqueço
você nunca mais. Só tomo guaraná.”
“Soube,
na festa da Carmita, que você era especialista em literatura
elisabetana e como me doutorei nessa área fui lhe perguntar algo
sobre o Webster. Você me respondeu de maneira muito rude.”
Eu
estava perplexo. Encontrar uma mulher daquelas, doutora em Letras,
numa churrascaria? Que coincidência mais diabólica.
Afinal,
consegui falar. “O que foi que eu disse na festa? Já peço
desculpas, antes mesmo de saber os detalhes da minha grosseria.”
“Você
disse: eu quero que o Webster se foda.”
“Posso
imaginar o choque que você teve.”
“Apenas
um pouco surpresa, mas achei graça. Quem ficou muito constrangida
foi a moça que estava ao seu lado. Haviam dito que você era um
pernóstico que gostava de exibir erudição. Um homem pedante é
pior do que um bêbado impaciente. O guaraná melhorou o seu
pernosticismo?”
“Continuou
igual. Quer conversar sobre o Webster?” Sentamos, comemos
churrasco, e falamos sobre Webster, Shakespeare evidentemente,
Marlowe, Peele, Dekker, Ford, Lyly e outros elisabetanos. Ela gostava
muito de carne, o que era óbvio, pois a encontrei numa churrascaria,
e também era escritora, e, como eu, havia publicado dois livros.
Marcamos outro encontro, na churrascaria. A profecia de Emília se
realizara.
Emília,
ao contrário da doutora em Letras, era muito introvertida, mas a
nossa relação era a melhor possível, sob todos os aspectos. Emília
era meiga e sua bondade não tinha limites, deixei de beber graças a
ela e sentia-me feliz ao seu lado. Mas me apaixonei pela mulher da
churrascaria.
Não
foi só Emília que sofreu, quando rompemos. Não vou entrar em
detalhes, foi tudo muito doloroso para ambos. Quando penso nisso,
sinto sempre um aperto no coração.
O
nome da escritora doutora em Letras era Lucimar. Passei a me
encontrar com ela diariamente. Lucimar era professora numa dessas
faculdades de Letras. Eu não era empregado de ninguém, minha
situação financeira permitia que eu me dedicasse apenas aos estudos
e à literatura.
Uns
quinze dias após irmos para a cama, Lucimar sugeriu que morássemos
juntos, mas os meus livros não caberiam na sua casa, onde não havia
lugar para novas estantes.
“Tenho
livros até debaixo da cama”, ela disse.
Nunca
pensei em morar com nenhuma mulher, mas Lucimar mudou-se para o meu
apartamento e eu aceitei a situação. Também não me incomodei com
as obras que ela mandou fazer, derrubar uma parede, reformar os
banheiros e a cozinha. Nem com a compra de móveis novos, entre os
quais uma grande estante de madeira maciça, o que era absolutamente
necessário, pois ela também possuía muitos livros, era uma
professora de Letras.
Eu
gostava muito de conversar e fazer amor com Lucimar. Mas deixei claro
para ela que não pretendia me casar ou coisa parecida, isto é, ter
filhos, essa mania das mulheres. Odeio bebezinhos.
Estávamos
juntos havia alguns meses, quando um dia, ao chegar em casa,
encontrei Lucimar sentada no sofá com ar preocupado.
“Tudo
bem?”, perguntei.
“Você
leu? Shakespeare foi escolhido o homem do Milênio. Você não odeia
essa coisa de o homem disso e o homem daquilo?”
“Você
prefere a pessoa do ano, como fazem os americanos politicamente
corretos?”
“A
pessoa notável nunca é uma mulher.”
“A
Musa do Verão nunca é um homem.”
“Estou
falando sério. Você acha que não podiam escolher uma mulher do
milênio? Em mil anos, não houve uma mulher que merecesse essa
honraria?”
“Bem,
acho que transcorridos os próximos mil anos vão eleger certamente a
Mulher do Milênio. Quer dizer, a Pessoa do Milênio.”
“Estou
falando sério.”
“Também
estou falando sério. Acho isso mesmo. Mas, nesse milênio que
passou, não dá para ser uma mulher.”
“Então
não existe uma escritora, uma cientista, uma artista, uma filósofa,
uma humanista, uma santa, uma mulher, enfim, digna do galardão?”
“Esse
título é uma besteira.”
“Mas
você gostaria de ser o Escritor do Ano.”
“Isso
é invenção sua.”
“Ouvi
você dizer várias vezes que é melhor escritor do que a grande
maioria dos escolhidos, muitos dos quais não passam de imbecis
rabiscadores de asneiras.”
“Eu
disse isso?”
“Salustiano,
eu não esqueço nada. Por isso me doutorei com a nota máxima. Para
você, a escolha do Escritor do Ano é sempre produto de uma esperta
manipulação da mídia, feita pelo editor e pelo autor.”
“Mas
não é por ciúme ou inveja que digo isso. Não me interessa esse
laurel ordinário.”
“Você
sofre porque o seu nome nunca aparece nos suplementos literários dos
jornais do eixo Rio-São Paulo.”
“Apenas
comento que os nomes badalados nesses veículos são sempre os
mesmos, páginas inteiras são dedicadas aos livrecos lançados por
eles.”
“Também
lamenta nunca ter saído nenhuma notícia sobre a publicação de um
livro seu.”
“Saiu
alguma, sobre os que você escreveu?” Lucimar estava me irritando.
“Não.”
“Eles
estão nas livrarias?”
“E
os seus, por acaso estão nas livrarias?”
“Meu
editor diz que eu não sou conhecido, os livreiros só compram livros
de autores conhecidos.”
“Não
será porque você pagou pela edição dos livros e por isso o seu
editor não se interessa como devia pela distribuição?”
“Está
aborrecida comigo porque o Shakespeare foi escolhido o Homem do
Milênio, e não a madame de Staël?”
“Salustiano,
ironia não é o seu forte. Você não acha excessiva essa fúria
encomiástica shakespeariana?”
“Não.
Até me agrada que o nome escolhido seja o de um poeta, num milênio
de grandes avanços da ciência e da tecnologia, em que surgiram
grandes figuras no ensaísmo e nas artes em geral. Preciso defender o
nosso homem para uma professora doutora em literatura elisabetana?
Bastam cinco minutos.”
“O
seu homem. Vai usar que argumentos? Dos autores mais recentes? Os
fastidiosos, de Honan? Ou irá me repetir a lengalenga hagiográfica
do Bloom, sobre Shakespeare-o-inventor-do humano e sua influência
não apenas sobre a literatura, mas sobre a Vida? O homem que
modificou o caráter e a personalidade humanas? Maior que Homero,
Platão et caetera?”
A
palavra homem era proferida por Lucimar como se fosse uma obscenidade
repugnante.
“Nessa
linha.”
“Vai
me dizer, ainda, que o vocabulário de Shakespeare tem vinte mil
palavras enquanto o de Milton, por exemplo, tem apenas seis mil?”
“Você
sabe que isso é verdade.”
“Milton
estava cego quando escreveu Paraíso perdido. E inúmeras das vinte
mil palavras de Shakespeare são contribuições dos atores,
improvisos que, introduzidos nas peças, passaram a fazer parte do
texto do homem. Isso também não é uma verdade?”
“Concordo.”
“Vai
citar também autores mais frívolos, como o Brode, e seus estudos
sobre Shakespeare e o cinema?”
“Está
chateada comigo por quê? Você me deu o livro do Brode, me fez
assistir a versões cinematográficas com ambientação moderna de
Hamlet, de Romeu e Julieta, de Ricardo III,
dizendo que eram a prova da incomparável atualidade de Shakespeare,
que nenhum outro autor...”
“Você
está se evadindo do foco da nossa discussão. Madame de Staël...
Que golpe baixo.”
“Lucimar,
você parece um desses detratores furibundos de Shakespeare,
felizmente poucos, que o chamam de verborrágico, antifeminista,
reacionário, um plagiário que teve a sorte de viver numa época
propícia à sua astúcia criativa.”
“É
isso mesmo. Agora, chega, cansei desse assunto.”
“Não
vamos brigar por causa de Shakespeare.”
“Você
não passa de um machista preconceituoso.”
“Vocês
vão ser as donas deste milênio que está começando.”
“Agradeço
em nome das mulheres.”
“Não
está com fome? Vamos comer naquela churrascaria, lembra? Nunca mais
voltamos lá.”
“Quer
me comprar com um pedaço de churrasco?”
“Com
farofa e outros acompanhamentos.”
“Vai
à merda. Quem é Emília?”
“Sei
lá quem é Emília. A do Monteiro Lobato?”
“Ontem
uma moça veio aqui, queria apanhar um livro. Disse que o nome dela
era Emília.”
“Não
tenho a menor ideia de quem seja.”
“Sabe
que livro era?”
“Não
sei do que você está falando.”
“Eram
os sonetos de Shakespeare.”
“É
mesmo?”
“E
você não sabe quem é essa moça? Vem aqui apanhar um livro dela e
você não sabe quem é?”
“Não
estou lembrado desse nome. Conheço um monte de gente. Minha memória
não é tão boa quanto a sua, não tirei a nota máxima no meu exame
final de doutorado.”
“Era
uma moça muito bonita, tive a impressão de conhecê-la de algum
lugar. Você é amiga do Salustiano?, perguntei, faça o favor de
entrar. Ela respondeu que sim, mas que vocês não se veem há algum
tempo, que se não fosse incômodo para mim, ela gostaria de apanhar
o livro com o qual tinha uma ligação sentimental. Parecia uma
pessoa muito romântica, aquela moça. Está calado? O gato comeu a
sua língua? Não quer saber o resto da história?”
“Lucimar,
não estou entendendo...”
“Ela
entrou e disse, os livros de Shakespeare estão todos juntos, eu
posso achar o meu. E foi procurar os sonetos do homem. Mas eu fui
mais rápida e achei o livro antes. Tinha uma dedicatória: Para
Emília, meu amor para sempre, Salustiano.”
“Não
existe amor para sempre, o amor tem a vida de uma borboleta...”
“Você
chama a mulher de meu amor para sempre e não sabe quem ela é?”
“Ela
levou o livro?”
“É
isso o que você tem a dizer? Em vez de responder, faz uma pergunta?
Além de mentiroso, maquiavélico?”
“Quando
penso que tudo isso começou porque o Shakespeare foi escolhido o
Homem do Milênio...”
“Isso
apenas ajudou, seu idiota. Jura que não vai se encontrar com essa
Emília. Odeio ser enganada.”
“Juramentos?
Uma doutora em Letras falando em juramentos? E que entidade sagrada
eu tomarei como testemunha?”
“Sabe
de uma coisa, Salustiano Gonçalo?”
“Diga.”
“Você
não passa de um idiota. Seus dois livros são um amontoado de
besteiras. Como aqueles a quem critica, você também é um
rabiscador de asneiras. O pior aluno do meu curso conhece mais
literatura elisabetana do que você.”
Lucimar
não mora mais comigo. Levou, junto com os seus livros, uma porção
dos meus, os melhores e mais raros. Indenizou-se.
Não
arranjei nenhuma nova namorada. Eu pensava constantemente em Emília.
Era amor, o que eu sentia por ela. Incrível, só agora eu percebia o
que havia perdido. Tentei uma reaproximação. Queria me casar com
ela, teria filhos, me tornaria vegetariano, mas Emília nem sequer me
deu a oportunidade de lhe dizer isso. A única coisa minha que Emília
queria, eram os sonetos de Shakespeare que eu havia lhe dado.
O
amor, a vida de uma borboleta ou de uma tartaruga?
Que
frase cretina.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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