Às
vezes – muitas vezes – me flagro pensando que a vida seria mais
fácil se eu tivesse nascido homem.
Não
que eu ache que a vida de um homem seja fácil. Mas, se eu fosse
homem, eu sentiria, simplesmente, que devo menos ao mundo.
Haveria
menos fiscalização sobre meu corpo, sobre minha vida afetiva, sobre
minha roupa, sobre meus planos. Haveria, sim, mas haveria menos.
E
eu poderia andar à noite com menos medo, poderia ser avaliada no
trabalho somente pela minha competência, poderia me sentir um pouco
mais dona de mim mesma.
Mas,
para a vida ser mais fácil, não bastaria só ser homem. Eu teria
que ser um homem hétero.
Porque
se eu fosse um homem que amasse outro homem, talvez o medo de andar
na rua à noite persistisse. E o medo de não ser aceito numa
entrevista de trabalho também.
E
se eu fosse um homem que amasse outro homem, talvez eu tivesse que
continuar fingindo, muitas vezes, ser o que não sou, por saber que o
que sou não é o que acham que eu deveria ser.
Talvez
a vida fosse mais fácil se eu fosse um homem hétero. Mas ainda
assim não bastaria.
Eu
precisaria ser magro. Porque se eu fosse um homem obeso, a vida não
seria exatamente tranquila.
Eu
continuaria sendo julgado pelo meu corpo, como sou enquanto mulher.
Fiscalizariam meu prato. Condenariam meu comportamento, certos de que
minha condição física, além de condenável, era uma simples
opção.
Homem.
Heterossexual. Magro. Sim. A vida já seria mais fácil. Mas não
bastaria.
De
que adiantaria tudo isso, se, ao chegar aos EUA, eu fosse
latino-americano? Ou, ao chegar na Europa, eu fosse africano? Os
olhares dos policiais na imigração, “Pode ser traficante”, “Vai
tentar ficar de forma ilegal”, “Deve ter vindo trabalhar sem
autorização”, seria como o olhar de “Será que ela vem para se
prostituir?”.Não. Não funciona.
A
vida seria mais fácil se eu fosse um homem, heterossexual, magro,
europeu. Mas não de qualquer parte da Europa. A Alemanha não me
abraçaria se eu fosse romeno. A Inglaterra não me desejaria se eu
fosse bósnio. A França não me admiraria se eu fosse português.
Pois
bem. Homem, hétero, magro e um “bom” europeu.
Mas
não bastaria.
De
que me adiantaria tudo isso, ainda que nascido na França, mas tendo
pais negros, pele negra, origens negras? Me aceitariam em qualquer
emprego? Me olhariam tranquilamente enquanto eu circulasse no
comércio? Me indicariam ao Oscar? Não, minha vida não seria fácil.
Seria
preciso ser homem. Ser hétero. Ser magro. Ser um “bom” europeu.
Ser branco. Talvez assim a vida caminhasse melhor.
Mas
não se eu usasse um turbante. Ou um quipá. Nem se eu carregasse
minha estrela de Davi no pescoço. Seria preciso, além de tudo, ser
cristão e, de preferência, católico.
Homem.
Heterossexual. Magro. Europeu. Branco. Católico.
Talvez.
Talvez assim a minha vida começasse do zero, e não do negativo.
Talvez assim eu pudesse lidar só com os problemas da vida –
doença, falta de grana, desamores, desemprego, mortes na família.
Talvez assim eu tivesse só as preocupações que a gente deveria ter
na vida, sem esses “pequenos” bônus de medo e de
constrangimento.
Eu
não nasci homem. Nasci mulher, latino-americana. Poderia ter nascido
negra. Poderia me descobrir homossexual. Posso me tornar obesa.
Nenhuma vida é fácil. Sobretudo, nenhuma vida é fácil num mundo
que criou tantas regras de merda.
É
privilégio ser homem? Ser hétero? Ser magro? Ser europeu? Ser
branco? Ser cristão? Alguém é culpado por ser ou não ser?
Claro
que não. Mas é preciso – talvez indispensável – não perder de
vista a complexidade da vida daqueles que nos cercam. É preciso
parar de insistir em olhar de forma tão ferrenha somente para os
nossos problemas e ter um mínimo de empatia. E perceber que, quanto
menos entraves há na nossa vida, maior é o nosso dever moral de
fazer algo para derrubar os obstáculos que impedem os outros de
viver normalmente. É preciso, em alguma medida, fazer o mínimo que
nos cabe para ajudar a desconstruir esse lixo de estrutura na qual
estamos inseridos.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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