quinta-feira, 6 de abril de 2023

Pequeno dicionário do machismo (parte 1)

O machismo, por ser conservador por natureza, não tem o hábito de reinventar-se. As expressões “inofensivas” e “bem-humoradas” que perpetuam a ignorância e a desigualdade são as mesmas há muitas décadas, reproduzidas até hoje por muitos homens e também por um número considerável de mulheres. Este é um pequeno dicionário de expressões machistas – algumas clássicas e evidentes, outras mais sutis e escorregadias.

A de Ajudar nas tarefas domésticas
O machismo gosta muito do verbo “ajudar”. Ajudar é algo moralmente bem-visto porque não se trata de uma obrigação, só faz quem quer. Num cenário no qual homem e mulher trabalham fora de casa, o machismo adora cultivar o verbo “ajudar” em vez de optar pela democrática (e correta) expressão “fazer a sua parte”, seja na casa ou no cuidado com os filhos. O ato de ajudar assemelha-se muito à noção de fazer um favor. E o machismo adorar cobrar favores mais tarde, com sua tradicional síndrome de autoridade.

B de Boa coisa não deve ser
O machismo também aprecia dizer que mulheres que usam roupa curta ou justa não devem ser boa coisa. Assim como mulheres que nunca se casaram não devem ser boa coisa. Assim como mulheres que já se casaram muitas vezes não devem ser boa coisa. Porque para o machismo não basta considerar-se no direito de julgar uma mulher: é preciso tratá-la como coisa também.

C de Casa, comida e roupa lavada
A expressão “casa, comida e roupa lavada” pertence à mesma família do “bela, recatada e do lar” e também tem fortes ligações com a noção de “ajudar em casa”. Casa, comida e roupa lavada é o patamar mínimo de conforto para o machismo. Obviamente não é ele quem garante essa tríade, mas sim uma mulher, seja ela a mãe, a irmã, a cunhada, a esposa, a filha, a nora, a neta, a sogra ou a empregada. Nunca um homem. Ou pelo menos nunca um “homem de verdade”, como veremos adiante.

D de Difícil mesmo é trabalhar com mulher
Como se sabe, o machismo não é exclusividade dos homens. Mulheres muitas vezes também protagonizam cenas de machismo. E essa expressão é uma das que são proferidas por mulheres quase com tanta frequência quanto por homens, ainda que isso configure uma evidente autossabotagem. Porque, para o machismo, mulher não tem opinião forte nem espírito de liderança: mulher dá chilique e é mandona. Trabalhar com mulher é mesmo uma tarefa muito difícil – mas apenas quando se pensa dessa forma.

E de Essa é pra casar
Além de classificar as mulheres em “boa coisa” ou não, o machismo também classifica as mulheres em “pra casar” ou “pra pegar”. Claro que os critérios para essa classificação só envolvem aparência física, forma de se vestir, desempenho nas tarefas domésticas e vida sexual pregressa. Ninguém se preocupa se a mulher “pra casar” é inteligente, bem-humorada ou divertida. Até porque o machismo acha uma certa graça nessa história de pular cerca.

F de Filha minha vai ser freira
Como veremos adiante, o machismo gosta muito de pronomes possessivos. Uma das utilizações preferidas dos pronomes possessivos é para a expressão “filha minha”, seguida de alguma regra intransponível, sexista e sem cabimento. Porque o machismo também gosta muito de andar por aí disfarçado de ciúme ou de superproteção. Embora nenhum dos dois seja boa coisa, eles ainda parecem menos vergonhosos do que o machismo puro e simples, in natura.

G de Gorda
Gorda é uma das palavras preferidas do machismo. O ato de chamar uma mulher de gorda é uma espécie de auge ideológico. Porque trata-se de uma prerrogativa que sintetiza o direito de julgar uma mulher, o direito de classificá-la de acordo com seus interesses, o direito de olhar para ela apenas pelo viés da estética, o direito de tratar mulher como objeto e o direito ao desprezo. Os machistas se sentem muito poderosos ao chamar uma mulher de gorda, não se sabe bem por quê. Cientistas ainda estudam esse fenômeno.

H de Homem de verdade
Machistas não entendem muito (frequentemente não entendem nada) acerca de homossexualidade, muito menos sobre questões de identidade de gênero. Machistas gostam muito de dizer que gay, transexual, travesti e drag queen é tudo a mesma coisa. Há um certo orgulho nessa ignorância, como se isso reforçasse a masculinidade deles. Eles resumem tudo na célebre expressão “não é homem de verdade”, como se “homem” fosse um conceito fechado e “verdade” fosse um conceito universal. O machismo, sobretudo, tem a certeza de ser dono da verdade.

I de Impedimento
O machismo gosta muito de pensar que os homens são os únicos que dominam determinados assuntos. Basicamente não se cogita que mulheres entendam de futebol, mecânica, finanças, lutas e cerveja. Quando uma mulher dá a entender que manja de futebol, o machismo infla-se de poder e diz “então me explica o que é um impedimento”, como se tivessem o direito de testá-las e como se isso fosse algum desafio para mulheres que acompanham a Champions League, o Campeonato Pernambucano e a Bundesliga. O machismo realmente não entendeu nada acerca do século XXI.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

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