Além
de todo o seu talento de melodista e letrista, Chico Buarque
desenvolveu, ao longo de sua carreira, uma habilidade especial para
fazer músicas não só sobre mulheres, mas pelas mulheres, falando
por elas e dando-lhes uma voz, várias vozes.
Nenhum
compositor, nem seu mestre Vinicius de Morais, mergulhou mais fundo
nos mistérios da alma feminina e expressou melhor os desejos e os
sentimentos das mulheres do que Chico. Personagens como a mulher
submissa que ama e espera o marido boêmio em “Com açúcar, com
afeto”, encomendada por Nara Leão, em 1966, e a do devastador
clássico “Atrás da porta” (em parceria com Francis Hime, 1971),
com Elis Regina, que dá voz pungente a uma mulher desesperada de dor
e abandono.
Pelos
versos do compositor também falaram a guerreira “Bárbara”, do
musical Calabar: o elogio da traição, em seu romance tórrido
com Ana de Amsterdam: “Vamos ceder enfim à tentação / Das nossas
bocas cruas / E mergulhar no poço escuro de nós duas.” A
protagonista rodriguiana de “Mil perdões”, que diz com sarcasmo
ao homem a seus pés: “Te perdoo por contares minhas horas / Nas
minhas demoras por aí / Te perdoo / Te perdoo porque choras / Quando
eu choro de rir / Te perdoo por te trair.” A perigosa e desafiadora
mulher de “Folhetim”: “Se acaso me quiseres / Sou dessas
mulheres que só dizem sim / Por uma coisa à toa, uma noitada boa /
Um cinema, um botequim.” Ou ainda a trágica Medeia de um subúrbio
carioca devastada pela traição e pela humilhação na dilacerante
“Gota d’água”: “Deixa em paz meu coração / Ele é um pote
até aqui de mágoa / E qualquer desatenção, faça não / Pode ser
a gota d’água.”
São
muitas as mulheres criadas por ele. Mas, além desse conhecimento dos
desvãos da alma feminina, Chico toca onde os homens mais sentem o
que as mulheres lhes dizem, onde mais doem suas palavras e
lembranças, onde mais os ferem seus ódios e rancores, suas mentiras
e traições. Nos diversos personagens que ele criou, as mulheres se
sentem representadas – os homens sofrem com as mulheres de Chico.
Com
tantas canções sobre o melhor e o pior do amor do ponto de vista
feminino, “Olhos nos olhos”, de 1976, é a que mais se destaca.
Em grande parte, devido à interpretação de Maria Bethânia,
visceralmente vivendo o melodrama da mulher abandonada que deu a
volta por cima e mudou de vida depois que “tantos homens me amaram
/ bem mais e melhor que você”. Desafiadora, a personagem comemora:
“Olhos
nos olhos, quero ver o que você diz / Quero ver como suporta me ver
tão feliz.”
Um
soco no coração.
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
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