Num
encontro social que tive com Nelson Rodrigues, disse-lhe que ia lhe
fazer algumas perguntas. Mas que, sendo ele homem de muitas facetas,
eu lhe pediria apenas uma: a da verdade. Ele aceitou
prontamente e cumpriu. Parecia aliás ansioso para dizer algumas
verdades. Eu também ando.
– Você
se inclina mais para a esquerda ou para a direita?
– Eu
me recuso absolutamente a ser de esquerda ou de direita. Sou um
sujeito que defende ferozmente a sua solidão. Cheguei a essa atitude
diante de duas coisas: lendo dois volumes sobre a guerra civil na
História. Verifiquei então o óbvio ululante: de parte a parte
todos eram canalhas. Rigorosamente todos. Eu não quero ser nem
canalha de esquerda nem canalha de direita.
– Você
se referiu à solidão. Você se sente um homem só?
– Do
ponto de vista amoroso eu encontrei Lúcia. E é preciso especificar:
a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal. Mas, diante
do resto do mundo sou um homem maravilhosamente só. Uma vez fiquei
gravemente doente, doente para morrer. Recebi em três meses de
agonia três visitas, uma por mês. Note-se que minha doença foi
promovida em primeiras páginas de jornais. Aí eu sofri na carne e
na alma esta verdade intolerável: o amigo não existe.
– Existe
sim, Nelson, foi falta de sorte sua. Eu passei quase três meses no
hospital e recebia visitas até de estranhos, e eu não sou o que se
chama de simpática. Pergunto-me até o que é que eu dei aos outros
para que viessem me fazer companhia. Não, não acredito que não se
tenha amigos. É que são raros.
– Ou
eu dou muito pouco ou os outros não aceitam o que eu tenho para dar.
– Mas
você tem sucesso real – e sucesso vem quando se dá alguma coisa
aos outros. Você dá.
– Eu
tenho o que chamaria de amigos desconhecidos. São sujeitos que eu
nunca vi, que cruzam comigo numa esquina, numa retreta, num velório.
Certa vez fui a uma capelinha ver um colega morto. Eram duas horas da
manhã. Uma mocinha saiu do velório com um caderninho na mão: quero
ter a honra de apertar a mão do autor de A vida como ela é,
e me pediu o autógrafo. Senti que estava vivendo um momento de pobre
ternura humana. Eis o que eu queria dizer: o amigo possível e certo
é o desconhecido com quem cruzamos por um instante e nunca mais. A
esse podemos amar e por esses podemos ser amados. O trágico na
amizade é o dilacerado abismo da convivência.
– Mas
Hélio Pellegrino é seu amigo, e Otto Lara Resende é seu amigo.
– Não.
Eu é que sou amigo de ambos. É possível que um de nós ame alguém.
O difícil (não quero dizer impossível) é que esse alguém nos ame
de volta. Hoje mesmo almocei com Hélio Pellegrino. Por causa de uma
opinião minha, ele, com a sua cálida e bela voz de barítono de
igreja, dizia para mim: é mentira, é mentira! Nunca me ocorrera
nesta encarnação ou em vidas passadas, chamar Hélio Pellegrino de
mentiroso. Naquele momento ele pôs entre nós a mais desesperada e
radical solidão da terra. Tal agressividade não devia existir na
história da amizade. E o Otto nunca me deu um telefonema! Estou
dizendo isso com a maior, a mais honrada, a mais inconsolável
amargura.
– Isso
não quer dizer nada: Otto é meu amigo, e já o provou várias
vezes, no entanto é raríssimo um telefonema seu. Nelson, você fala
em encarnação e em vidas passadas. Você é esotérico? Ou
teosofista? Acredita na reencarnação?
– Sou
apenas cristão, se é que eu o sou. A única coisa que me mantém de
pé é a certeza da alma imortal. Recuso-me a reduzir o ser humano à
melancolia do cachorro atropelado. Que pulhas seríamos se
morrêssemos com a morte.
– Mas
aonde vai nossa alma, depois de mortos?
– Aí
está o mistério e o mistério não impede evidentemente que a alma
seja imortal. Você antes me perguntou em quantos empregos eu estava
escrevendo. Tenho três colunas diárias, obrigatórias
(escrevo muito mais para atender a pedidos insuportáveis): num faço
duas crônicas e no outro também faço uma crônica de futebol.
Quando vou escrever um romance ou uma peça de teatro estou em plena
estafa e tenho que fazer um superesforço. Acho que minhas condições
de trabalho são desumanas. Eu me considero um fracassado. Não me
realizei nem acho que alguém se realize. Mas a coisa mais importante
do mundo é o amor, e, para uma pessoa como indivíduo, é a solidão.
Sou um romântico num sentido quase caricatural. Acho que todo amor é
eterno e, se acaba, não era amor. Para mim, o amor continua além da
vida e além da morte. Digo isso a você e sinto que se insinua nas
minhas palavras um ridículo irresistível, mas vivo a confessar que
o ridículo é uma das minhas dimensões mais válidas.
– Nelson,
você tem conversado, como todo mundo, com muitas pessoas. Todas as
conversas se parecem com essa nossa?
– Não,
eu estou fazendo um esforço, um abnegado esforço, para não
trapacear com você.
É
preciso dizer que, durante os minutos que demorou nossa conversa, ele
não sorriu nenhuma vez: com a verdade grave não se sorri, parecia
dizer.
– Você
é um homem de sucesso. Até que ponto o sucesso interfere na sua
vida pessoal?
– Não
interfere justamente porque eu e Lúcia fundamos a nossa solidão.
– Você
está gostando de conversar comigo?
– Profundamente.
O que conta na vida são os momentos confessionais.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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