domingo, 16 de abril de 2023

O Lobo do Mar | Capítulo 39

Chegou o dia da nossa partida. Nada mais nos detia em Endeavour Island. Os mastros atarracados do Ghost estavam afixados e suas velas doidas estavam cordoadas. Minha obra não tinha nada de belo mas era sólida. Eu sabia que iria funcionar, e ao contemplá-la me sentia um homem poderoso.
Consegui! Consegui! Fiz isso com minhas próprias mãos!”, eu queria gritar alto.
Mas eu e Maud tínhamos uma tendência a enunciar o que o outro estava pensando, e quando nos preparamos para estender a vela mestra ela disse:
E pensar que você fez tudo isso com as próprias mãos, Humphrey!
Mas tive a ajuda de duas outras mãos — salientei. — Duas mãos pequenas, e não venha me dizer que isso era uma expressão que seu pai dizia.
Ela riu, balançou a cabeça e levantou as mãos para mostrá-las.
Nunca mais conseguirei limpá-las — lamentou —, nem amaciá-las depois de tanta exposição ao clima.
Então a sujeira e o ressecamento serão sua recompensa de honra — falei tomando suas mãos entre as minhas, e eu as teria beijado, contrariando minhas resoluções, caso ela mesma não as tivesse recolhido.
Nossa camaradagem começava a estremecer. Eu tinha conseguido dominar meu amor por um bom tempo, mas agora ele começava a me dominar. Ele tinha agido por conta própria, me desobedecido e feito o meu olhar me trair, e agora também minha língua começava a me trair, e também meus lábios, pois no momento eles estavam loucos para beijar aquelas duas mãos pequenas que tinham trabalhado com tanta fé e empenho. Eu estava louco.
Havia um grito em meu íntimo que era como o toque de um clarim me convocando para perto dela. E um vento irresistível me empurrava, inclinando meu corpo inconscientemente em sua direção. E ela sabia. Era impossível que não soubesse, e, apesar de ter recolhido as mãos, não conseguiu evitar um breve olhar investigativo antes de virar o rosto.
Usando as talhas do convés, consegui carregar as adriças na direção da popa até o cabrestante, o que me permitiu içar a vela mestra inteira de uma só vez. Era um método improvisado, mas funcionou rápido, e em pouco tempo a vela de proa também estava tremulando.
Nunca vamos conseguir levantar a âncora nesse ponto estreito, depois que ela tiver saído do fundo — falei. — Bateríamos nas pedras antes de conseguir.
O que podemos fazer? — ela perguntou.
Arrastá-la. E quando eu o fizer você precisará operar o cabrestante. Vou ter que ir correndo para o timão, e você deverá içar a bujarrona ao mesmo tempo.
Eu tinha planejado e estudado essa manobra de partida uma porção de vezes, e sabia que Maud seria capaz de içar a bujarrona se a adriça dessa vela tão essencial estivesse presa ao cabrestante. Um vento enérgico soprava na enseada, e mesmo com águas calmas teríamos de trabalhar rápido para zarpar em segurança.
Quando soltei a manilha, a corrente saiu rugindo pelo escovém e caiu no mar. Corri em direção à popa e levantei o timão. O Ghost pareceu ganhar vida quando as velas colheram as primeiras lufadas. A bujarrona estava subindo. Enquanto subia, a proa do Ghost saiu de rumo e precisei ajustar o timão até estabilizar o navio.
Eu havia criado uma escota de bujarrona automática que passava atravessando a vela, de modo que Maud não precisava se ocupar disso, mas ela continuava içando a bujarrona quando baixei o timão com força. Foi um momento de ansiedade, pois o Ghost estava avançando diretamente para a praia, que se encontrava a poucas dezenas de metros. Mas a escuna obedeceu direitinho e virou, adernando na direção do vento. As velas e rizes estalaram e bateram com um alarde que soou como música aos meus ouvidos, e então ela se alinhou na outra retranca.
Depois de concluir sua tarefa, Maud veio para a popa e ficou a meu lado com um pequeno boné empoleirado em seus cabelos castanhos esvoaçantes, as faces vermelhas de esforço, os olhos arregalados e brilhantes de empolgação e as narinas tremendo ao açoite do vento frio e salgado. Seus olhos eram como os de uma gazela alarmada. Havia neles um aspecto selvagem e aguçado que eu nunca tinha visto antes, seus lábios se abriram e sua respiração ficou suspensa quando o Ghost, avançando ao longo do paredão rochoso na entrada da enseada interna, pegou o vento certo e adentrou águas seguras.
Meu aprendizado como imediato em águas de caça à foca era posto à prova agora. Saí da enseada interna e percorri um curso aberto ao longo da margem da enseada externa. Após contornar a outra ponta, o Ghost entrou em mar aberto. A escuna alcançou o peito arfante do oceano e singrou no mesmo ritmo de sua respiração, galgando e escorregando suavemente na crista das ondas alongadas. O dia estivera pálido e nublado, mas o sol irrompeu entre as nuvens como um bom presságio e brilhou sobre a praia curva onde juntos havíamos desafiado os lordes do harém e imolado os “holluschickies”. Endeavour Island resplandeceu inteira sob o sol. Até o promontório a sudoeste parecia menos ameaçador, e em alguns lugares, onde a espuma molhava sua superfície, luzes intensas piscavam e tremulavam.
Sempre lembrarei desse lugar com orgulho — falei para Maud.
Ela atirou a cabeça para trás como uma rainha, mas disse:
Minha querida Endeavour Island! Sempre amarei você.
E a mim — falei no ato.
Nossos olhos deviam se encontrar em mútuo sentimento, mas, lastimavelmente, eles relutaram e se afastaram.
Sobreveio um silêncio que eu quase poderia definir como constrangedor, até que eu o quebrei:
Veja aquelas nuvens negras a barlavento. Lembre que eu disse, ontem à noite, que o barômetro estava descendo.
E o sol se foi — ela disse com os olhos fixos na nossa ilha, onde tínhamos provado nossa superioridade sobre a matéria e desenvolvido o maior companheirismo que pode haver entre um homem e uma mulher.
E podemos soltar as velas rumo ao Japão! — gritei com alegria. — Bons ventos e velas à solta, ou seja lá como se diz.
Prendi o timão, corri até a proa, soltei as velas de proa e mestra, acionei as talhas dos mastaréus e preparei tudo para aproveitar a brisa de amura com a qual éramos brindados. Era uma brisa forte, bastante forte, mas decidi aproveitá-la pelo tempo que fosse possível. Infelizmente, navegando livre é impossível fixar o timão, portanto tive de passar a noite de vigia. Maud insistiu em assumir meu lugar, mas demonstrou não ter força suficiente para pilotar no mar agitado, mesmo que pudesse aprender a técnica ali na hora. Ela pareceu ficar bastante decepcionada com essa descoberta, mas recobrou o ânimo recolhendo as talhas, adriças e cordas à solta. Além disso, era preciso cozinhar, preparar as camas e cuidar de Wolf Larsen, e ela encerrou o dia com uma grande faxina na cabine e na baiuca.
Pilotei a noite inteira sem trégua, enquanto o vento aumentava aos poucos e o mar se agitava cada vez mais. Às cinco da manhã, Maud me trouxe café fumegante e biscoitos que tinha acabado de assar, e às sete minha disposição foi renovada com um café da manhã bem quente e substancioso.
Ao longo do dia, o vento foi aumentando com a mesma lentidão e constância. Era impressionante sua determinação cega de soprar e continuar soprando cada vez mais forte. E o Ghost ia deixando um rastro de espuma, devorando os quilômetros até que eu tivesse certeza de que estava fazendo pelo menos onze nós. Aquilo era bom demais para ser desperdiçado, mas ao cair da noite eu estava exausto. Por mais que estivesse em forma física esplêndida, um turno de trinta e seis horas no timão era o meu limite de resistência. Além disso, Maud implorou para que eu parasse, e eu sabia que logo seria impossível fazer isso caso o vento e as ondas continuassem aumentando durante a noite. Portanto, ao escurecer do crepúsculo, ao mesmo tempo aliviado e relutante, virei o Ghost contra o vento.
Todavia, eu não calculara o esforço colossal de rizar as três velas sozinho. Não podia perceber toda a força do vento enquanto ia a seu favor, mas ao parar fui capaz de avaliar, tanto para minha tristeza quanto para meu desespero, a sua real intensidade. O vento sabotava todos os meus esforços, arrancando a lona de minhas mãos e desfazendo em um instante o que eu havia batalhado dez minutos para fazer. Às oito da noite eu só tinha conseguido enfiar o segundo riz da vela de proa. Às onze a situação não tinha mudado muito. O sangue pingava da ponta dos meus dedos e as unhas estavam quebradas até a raiz. Chorei de dor e exaustão no escuro, mas em segredo, para que Maud não ficasse sabendo.
Depois, em desespero, abandonei a tentativa de rizar a vela mestra e resolvi arriscar o experimento de arribar com a vela de proa bem rizada. Levei mais três horas para gaxetar a vela mestra e a bujarrona, e às três da manhã, quase morto, com a vida esbofeteada e quase arrancada de mim pelo trabalho, eu mal tinha consciência para avaliar se o experimento fora bem-sucedido. A vela de proa rizada funcionou. O Ghost parou contra o vento e não deu sinais de que iria virar de costado para a ondulação.
Eu estava faminto, mas Maud tentou me alimentar em vão. Eu adormecia com a boca cheia de comida. Caía no sono enquanto levava comida à boca e acordava com o gesto ainda suspenso. Eu estava tão incapacitado pelo sono que ela foi obrigada a me segurar na cadeira para que eu não fosse arremessado ao chão pelo balanço violento da escuna.
Não sei como fui da cozinha até a cabine. Eu era um sonâmbulo guiado e carregado por Maud. Na verdade, não fiquei ciente de mais nada até acordar na cama, sem as botas, sei lá quanto tempo depois. Estava escuro. Eu estava todo contraído e desconjuntado, e gritei de dor quando os lençóis me roçaram as pontas dos dedos.
Era evidente que a manhã ainda não tinha chegado, então fechei os olhos e dormi de novo. Eu não sabia, mas tinha dormido o dia todo e já era noite novamente.
Acordei outra vez, aflito porque não conseguia mais dormir bem. Risquei um fósforo e consultei o relógio. Marcava meia-noite. Mas quando deixei o convés eram três da manhã! Eu teria ficado perplexo, se não houvesse encontrado logo a solução. Meu sono não estava leve por acaso. Eu tinha dormido vinte e uma horas. Passei um tempo escutando o comportamento do Ghost, os golpes das ondas e o rugido abafado do vento sobre o convés, então dei meia-volta e dormi em paz até o amanhecer.
Às sete, quando levantei, não vi sinal de Maud e presumi que ela estava na cozinha preparando o café. Chegando ao convés, encontrei o Ghost em ótimo estado com seus retalhos de vela. Na cozinha, porém, embora a água estivesse fervendo sobre o fogo aceso, não encontrei Maud.
Ela estava na baiuca, ao lado do beliche de Wolf Larsen. Olhei para ele, um homem que tinha sido derrubado do pináculo da vida para ser enterrado vivo e enfrentar algo pior do que a morte. Em seu rosto inexpressivo havia um relaxamento que era novo. Maud olhou para mim e compreendi.
Sua vida se esvaiu durante a tempestade — falei.
Mas ele continua vivo — ela respondeu com uma fé infinita na voz.
Sua força era grande demais.
Sim — ela disse —, mas já não pode acorrentá-lo. Ele é um espírito livre.
Ele é um espírito livre, com toda a certeza — respondi, e então peguei-a pela mão e a trouxe para o convés.
A tempestade foi embora aquela noite, isto é, diminuiu com a mesma falta de pressa com que havia chegado. Após o café da manhã do dia seguinte, quando eu já tinha carregado o corpo de Wolf Larsen para o convés e preparado tudo para o funeral, ela continuava soprando forte e erguendo ondas enormes. O convés era invadido o tempo todo pelas águas que se infiltravam pela amurada e pelos embornais. Um golpe de vento atingiu a escuna de repente e ela adernou até mergulhar a amurada de sotavento, enquanto o rugido nos mastros se elevava a um guincho medonho. Estávamos com a água nos joelhos quando tirei o chapéu.
Só me lembro de uma parte do serviço fúnebre — falei —, e é a seguinte: “E o corpo será jogado ao mar.”
Maud me encarou, surpresa e chocada, mas o espírito de algo que eu tinha visto anteriormente continuava vivo em mim, me compelindo a fazer o serviço fúnebre de Wolf Larsen da mesma forma que ele o fizera para outro homem. Ergui a extremidade da tampa da escotilha e o corpo envolto em lona caiu de pé no mar. O peso dos ferros o levou para o fundo. Ele sumiu.
Adeus, Lúcifer, espírito orgulhoso — Maud sussurrou com uma voz tão baixa que a frase foi abafada pelos urros do vento. Mas eu li seus lábios.
Quando estávamos agarrados à amurada de sotavento, retornando com dificuldade em direção à popa, olhei por acaso para sotavento. Naquele instante, o Ghost estava elevado acima de uma onda e enxerguei claramente um pequeno barco a vapor a quatro ou cinco quilômetros de distância, arfando e balançando contra as ondas, soltando fumaça e vindo em nossa direção. Era pintado de preto e, lembrando das conversas dos caçadores a respeito de caças ilegais, eu o reconheci como uma lancha aduaneira dos Estados Unidos. Apontei o vapor para Maud e a levei correndo até a popa para acomodá-la em segurança no tombadilho.
Fui correndo buscar a bandeira, mas depois lembrei que ao mastrear o Ghost eu havia esquecido de providenciar uma adriça de bandeira.
Não precisamos de sinalização de socorro — disse Maud. — Bastará que nos vejam.
Estamos salvos — falei em tom sério e solene. Em seguida, num surto de alegria, acrescentei: — Nem sei dizer se estou feliz com isso.
Olhei para ela. Nossos olhos não evitaram o encontro. Nos aproximamos, e quando me dei conta ela estava em meus braços.
Preciso pedir? — perguntei.
E ela respondeu:
Não precisa, mas teria sido delicioso ouvir.
Seus lábios receberam os meus e, por algum capricho desconhecido da imaginação, me veio à mente a cena na cabine do Ghost, quando ela pôs os dedos em meus lábios e disse “Quieto!”.
Minha mulher, minha única e pequena mulher — falei acariciando seu ombro como fazem todos os amantes, sem nunca o terem aprendido em escola alguma.
Meu homem — ela disse me olhando um instante com pálpebras trêmulas que subiam e desciam, ocultando seus olhos, antes de aninhar a cabeça em meu peito e dar um pequeno suspiro de felicidade.
Olhei na direção da lancha. Estava bem próxima. Um bote estava sendo baixado.
Um beijo, minha amada — sussurrei. — Mais um beijo antes que cheguem.
E nos salvem de nós mesmos — ela completou com um sorriso adorável, mais caprichoso que nunca, pois era o capricho do amor.

Jack London, in O Lobo do Mar

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