quarta-feira, 5 de abril de 2023

O cinema


Dizem que não existe mais o selvagem em nós, que estamos no último estágio da civilização, que tudo já foi dito e que é tarde demais para ter alguma ambição. Mas é de se presumir que esses filósofos tenham esquecido o cinema. Eles nunca viram os selvagens do século XX num cinema, assistindo a filmes. Eles nunca se sentaram à frente da tela para poderem refletir que, apesar de todas as roupas que carregam no corpo e de todos os tapetes aos seus pés, não há uma grande distância a separá-los daqueles homens nus e de olhos arregalados que batiam uma barra de ferro na outra e experimentavam nesse clangor um gostinho da música de Mozart.
As barras nesse caso estão, é claro, tão altamente lavradas e tão cobertas de detritos de matéria estranha que é muito difícil ouvir qualquer coisa distintamente. Tudo são bolhas e borbulhas, fervilhamento e caos. Estamos examinando a borda de um caldeirão no qual fragmentos parecem ferver e de vez em quando algum enorme vulto parece se erguer e se alçar do meio do caos, e o selvagem em nós se joga, com prazer, para a frente. Contudo, para começo de conversa, a arte do cinema parece uma arte simples e até mesmo estúpida. Este é o rei apertando as mãos dos jogadores de um time de futebol; aquele é o iate de Sir Thomas Lipton; aquele outro é Jack Horner ganhando o Grande Prêmio Nacional de Turfe. O olho devora tudo instantaneamente, e o cérebro, agradavelmente provocado, se acomoda para ver coisas acontecendo sem se preocupar em pensar. Pois o olho comum, o olho inglês sem qualquer inclinação estética, é um mecanismo simples, que garante que o corpo não caia num buraco, provê o cérebro de distrações e guloseimas e pode assumir a tarefa de agir como uma babá competente até que o cérebro chegue à conclusão de que é hora de despertar. Por que ele se surpreende, então, por se acordar de repente no meio de sua doce sonolência e gritar por socorro? O olho está em dificuldades. O olho diz para o cérebro: “está acontecendo algo que eu absolutamente não compreendo. Preciso de você”. Juntos, eles olham para o rei, para o barco, para o cavalo, e o cérebro logo vê que eles adquiriram uma qualidade que não pertence ao simples fotógrafo da vida real. Eles se tornaram não mais bonitos, no sentido em que as pinturas são bonitas, mas, como dizê-lo? (nosso vocabulário é desgraçadamente insuficiente) mais reais, ou adquiriram uma realidade diferente daquela que percebemos na vida cotidiana. Nós os vemos tais como eles são quando nós não estamos ali. Nós vemos a vida tal como ela é quando nós não temos nela nenhuma participação. Enquanto contemplamos, parecemos distanciados da insignificância da existência real, suas preocupações, suas convenções. O cavalo não nos jogará ao chão. O rei não apertará nossa mão. A onda não molhará nossos pés. Observar dessa posição privilegiada os bufões de nossa espécie nos deixa tempo para ter piedade e diversão, para generalizar, para dotar um único homem com os atributos de uma raça; observar os barcos velejarem e as ondas quebrarem nos deixa tempo para abrir toda a nossa mente para a beleza e registrar, por cima disso, a estranha sensação de que a beleza continuará a ser bela quer a vejamos quer não. Além disso, tudo isso aconteceu, ficamos sabendo, há dez anos. Estamos vendo um mundo que foi tragado pelas ondas. As noivas estão emergindo da Abadia; os recepcionistas estão animados; as mães estão chorosas; os convidados estão alegres; e tudo está feito e acabado. A guerra abriu seu abismo aos pés de toda essa inocência e desconhecimento. Mas foi então que nós dançamos e giramos, foi então que o sol brilhou e as nuvens deslizaram, até o derradeiro fim. O cérebro acrescenta tudo isso ao que o olho vê na tela.
Mas os produtores cinematográficos parecem descontentes com essas óbvias fontes de interesse – as maravilhas do mundo real, voos de gaivotas ou navios no Tâmisa; a fascinação da vida contemporânea – a Mile End Road; o Piccadilly Circus. Eles querem melhorar, alterar, fazer uma arte própria, o que é natural, pois tanta coisa está dentro de sua esfera de ação. Muitas artes se mostravam, no início, prontas a dar sua contribuição. Por exemplo, havia a literatura. Todos os romances famosos do mundo com seus próprios personagens e suas cenas famosas estavam pedindo para serem levados à tela. O que poderia ser mais fácil, o que poderia ser mais simples? O cinema caiu sobre sua presa com uma enorme rapacidade e, até este momento, permanece, em grande parte, sobre o corpo de sua desgraçada vítima. Mas os resultados têm sido desastrosos para ambos. A aliança é pouco natural. Olho e cérebro são brutalmente desmembrados quando tentam, inutilmente, trabalhar em dupla. O olho diz: “Eis aqui Ana Karenina”, e a voluptuosa dama trajando veludo negro e portando pérolas surge diante de nós. O cérebro exclama: “Isso tanto pode ser Ana Karenina quanto a rainha Vitória”. Pois o cérebro conhece Ana quase inteiramente pelo interior de sua mente – seu charme, sua paixão, seu desespero, enquanto toda a ênfase está agora posta em seus dentes, suas pérolas e seus veludos. O cinema prossegue: “Ana se apaixona por Vronski” – quer dizer, a dama em veludo negro cai nos braços de um cavalheiro em uniforme e eles se beijam com enorme gosto, grande deliberação e infinita gesticulação num sofá, numa biblioteca extremamente bem mobiliada. Nós caminhamos, assim, aos trancos e barrancos, pelos romances mais famosos do mundo. Nós os grafamos, assim, em palavras ou em uma única sílaba escritas como a garatuja de um estudante analfabeto. Um beijo é amor. Uma cadeira quebrada com violência é ciúme. Um sorriso é felicidade. A morte é um carro fúnebre. Nenhuma dessas coisas tem a mínima conexão com o romance que Tolstói escreveu e é apenas quando desistimos de ligar as imagens com o livro que adivinhamos – por alguma cena, pelo jeito como um jardineiro apara a grama lá fora, por exemplo, ou como uma árvore balança seus galhos ao sol – o que o cinema conseguiria fazer se tivesse que se haver apenas com seus próprios recursos.
Mas quais são, então, os seus próprios recursos? Se deixasse de ser um parasita, de que maneira ele caminharia ereto? Na atualidade, é apenas a partir de pistas e acidentes que se pode formular qualquer conjectura. Por exemplo, numa exibição de Dr. Caligari outro dia, uma sombra com a forma de um girino apareceu de repente num canto da tela. Ela dilatou-se até chegar a um tamanho imenso, tremeu, inchou um pouco mais e voltou à sua insignificância. Por um momento, foi como se ela corporificasse alguma imaginação monstruosa e doentia do cérebro do lunático. Por um momento, foi como se o pensamento pudesse ser transmitido com mais eficácia por uma forma do que por palavras. O medo do girino parecia expressar-se por sua monstruosidade e tremulação, e não pela frase “Estou com medo”. Na verdade, a sombra era acidental, e o efeito não era intencional. Mas se uma sombra, num certo momento, pode sugerir muito mais que os gestos e as palavras reais de homens e mulheres num estado de medo, parece evidente que o cinema tem ao seu alcance inumeráveis símbolos para emoções que não conseguiram até agora encontrar expressão. O terror tem, além das suas modalidades comuns, a forma de um girino; ele se expande, incha, tremula, desaparece. A raiva pode se contorcer como um verme enfurecido fazendo zigue-zagues negros ao longo de uma tela branca. Ana e Vronski não precisam mais franzir a testa e fazer esgares. Eles têm à sua disposição... mas aqui a imaginação se atrapalha e mostra-se relutante. Pois que características possui o pensamento que podem se tornar visíveis ao olho sem a ajuda de palavras? Ele tem rapidez e lentidão; é reto como uma flecha e nebuloso como um circunlóquio. Mas tem também uma inveterada tendência, especialmente em momentos de emoção, a fazer as imagens correrem lado a lado com ele, a criar um símile da coisa pensada, como se assim fazendo ele removesse seu ferrão, ou a tornasse bela e compreensível. Em Shakespeare, como todo mundo sabe, as ideias mais complexas, as emoções mais intensas formam cadeias de imagens pelas quais passamos, por mais que mudem rápida e completamente, como que subindo as voltas e espirais de uma escada tortuosa. Mas obviamente as imagens do poeta não são esculpidas em bronze ou traçadas com lápis e tinta. Elas consistem de mil sugestões, das quais a visual é apenas a mais óbvia ou prevalente. Até mesmo a mais simples das imagens, como a do verso de Burns (“Meu amor é como uma rubra, rubra rosa, que acaba de brotar em junho”), nos presenteia com a umidade e o calor e o brilho do carmesim e a maciez das pétalas inextricavelmente misturadas e encadeadas no balanço de um ritmo que sugere a ternura emocional do amor. Tudo isso, que é acessível às palavras e apenas às palavras, o cinema deve evitar.
Mas se uma parte tão grande de nosso pensamento e nosso sentimento está ligada à visão, deve haver algum resíduo de emoção visual não captado pelo artista ou pelo poeta-pintor que pode estar à espera do cinema. Que esses símbolos serão bastante diferentes dos objetos reais que vemos diante de nós parece altamente provável. Algo abstrato, algo móvel, algo que exija apenas a mínima ajuda das palavras ou da música para se tornar inteligível – os filmes podem, no futuro, ser compostos desses movimentos, dessas abstrações. E uma vez que essa dificuldade primeira tenha sido resolvida, uma vez que algum novo símbolo para expressar o pensamento seja encontrado, o cineasta tem uma enorme riqueza à sua disposição. As realidades físicas, os próprios seixos da praia, os próprios tremores dos lábios, são dele; é só querer. Seu Vronski e sua Ana estão ali, em carne e osso. Se a essa realidade ele pudesse acrescentar emoção e pensamento, então ele logo começaria a colher sua recompensa. Então, tal como se pode ver a fumaça saindo do Vesúvio, seríamos capazes de ver pensamentos selvagens e adoráveis e grotescos saindo de homens de terno e de mulheres com cabelos à la garçonne. Deveríamos ver essas emoções se misturando e afetando umas às outras. Deveríamos ver mudanças violentas de emoção produzidas por sua colisão. Os mais fantásticos contrastes poderiam cintilar à nossa frente com uma velocidade que o escritor em vão se esforçaria por obter. O passado poderia ser revisto, as distâncias poderiam ser reduzidas a nada. E aqueles terríveis deslocamentos que são inevitáveis quando Tolstói tem que passar da história de Ana à história de Levin poderiam ser ligados por algum truque de cenário. A continuidade da vida humana deveria ser mantida à nossa frente pela repetição de algum objeto comum a ambas as vidas.
Todo esse jogo de adivinhação e de rude filosofar sobre forças desconhecidas aponta, de qualquer maneira, não na direção de qualquer arte que conhecemos, mas na direção de uma arte sobre a qual podemos apenas conjecturar. Aponta para uma longa estrada cheia de obstáculos de todo tipo. Pois o cineasta deve se tornar dono de sua convenção, tal como os pintores e os escritores e os músicos fizeram antes dele. Ele deve nos fazer acreditar que aquilo que ele nos mostra, por fantástico que pareça, tem alguma relação com as grandes veias e artérias de nossa existência. Ele deve conectá-lo com o que gostamos de chamar de realidade. Ele deve nos fazer acreditar que nossos amores e ódios também estão nesse caminho. Pode-se facilmente adivinhar como um processo desses está destinado a ser lento e tratado com aflição e ridículo e indiferença quando lembramos quanto qualquer novidade nos aflige, quanto até o menor broto na mais velha das árvores ofende nossa compreensão do que é adequado. E aqui não se trata de um broto, mas de um novo tronco e de novas raízes saltando da terra.
Contudo, por remotas que sejam, não há falta de indicações de que as emoções estão se acumulando, de que o tempo é chegado, e a arte do cinema está prestes a vir à luz. Comtemplar multidões, contemplar o caos das ruas da maneira relaxada pela qual as faculdades desligadas do hábito contemplam e esperam é, às vezes, como se os movimentos e as cores, as formas e os sons tivessem se juntado e tivessem ficado esperando por alguém que se apoderasse deles e convertesse sua energia em arte; então, sem terem sido captados, eles se dispersam e fogem de novo, separados. No cinema, por um momento, através das névoas das emoções irrelevantes, através da grossa coberta de imensa habilidade e enorme eficiência, têm-se vislumbres de algo vital no seu interior. Mas o pique da vida é instantaneamente coberto por mais habilidade e maior eficiência.
Pois o cinema veio à luz com o lado errado na frente. A habilidade mecânica está muito mais adiantada que a arte a ser expressada. É como se os membros da tribo selvagem, em vez de encontrar duas barras de ferro com que brincar, tivessem encontrado, espalhados pela praia, violinos, flautas, saxofones, pianos de cauda feitos por Érard e Bechstein, e tivessem começado, com incrível energia, mas sem saber uma nota de música, a martelar e a batucar em todos eles ao mesmo tempo.

Virginia Woolf, in O sol e o peixe

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