Dizem
que não existe mais o selvagem em nós, que estamos no último
estágio da civilização, que tudo já foi dito e que é tarde
demais para ter alguma ambição. Mas é de se presumir que esses
filósofos tenham esquecido o cinema. Eles nunca viram os selvagens
do século XX num cinema, assistindo a filmes. Eles nunca se sentaram
à frente da tela para poderem refletir que, apesar de todas as
roupas que carregam no corpo e de todos os tapetes aos seus pés, não
há uma grande distância a separá-los daqueles homens nus e de
olhos arregalados que batiam uma barra de ferro na outra e
experimentavam nesse clangor um gostinho da música de Mozart.
As
barras nesse caso estão, é claro, tão altamente lavradas e tão
cobertas de detritos de matéria estranha que é muito difícil ouvir
qualquer coisa distintamente. Tudo são bolhas e borbulhas,
fervilhamento e caos. Estamos examinando a borda de um caldeirão no
qual fragmentos parecem ferver e de vez em quando algum enorme vulto
parece se erguer e se alçar do meio do caos, e o selvagem em nós se
joga, com prazer, para a frente. Contudo, para começo de conversa, a
arte do cinema parece uma arte simples e até mesmo estúpida. Este é
o rei apertando as mãos dos jogadores de um time de futebol; aquele
é o iate de Sir Thomas Lipton; aquele outro é Jack Horner ganhando
o Grande Prêmio Nacional de Turfe. O olho devora tudo
instantaneamente, e o cérebro, agradavelmente provocado, se acomoda
para ver coisas acontecendo sem se preocupar em pensar. Pois o olho
comum, o olho inglês sem qualquer inclinação estética, é um
mecanismo simples, que garante que o corpo não caia num buraco,
provê o cérebro de distrações e guloseimas e pode assumir a
tarefa de agir como uma babá competente até que o cérebro chegue à
conclusão de que é hora de despertar. Por que ele se surpreende,
então, por se acordar de repente no meio de sua doce sonolência e
gritar por socorro? O olho está em dificuldades. O olho diz para o
cérebro: “está acontecendo algo que eu absolutamente não
compreendo. Preciso de você”. Juntos, eles olham para o rei, para
o barco, para o cavalo, e o cérebro logo vê que eles adquiriram uma
qualidade que não pertence ao simples fotógrafo da vida real. Eles
se tornaram não mais bonitos, no sentido em que as pinturas são
bonitas, mas, como dizê-lo? (nosso vocabulário é desgraçadamente
insuficiente) mais reais, ou adquiriram uma realidade diferente
daquela que percebemos na vida cotidiana. Nós os vemos tais como
eles são quando nós não estamos ali. Nós vemos a vida tal como
ela é quando nós não temos nela nenhuma participação. Enquanto
contemplamos, parecemos distanciados da insignificância da
existência real, suas preocupações, suas convenções. O cavalo
não nos jogará ao chão. O rei não apertará nossa mão. A onda
não molhará nossos pés. Observar dessa posição privilegiada os
bufões de nossa espécie nos deixa tempo para ter piedade e
diversão, para generalizar, para dotar um único homem com os
atributos de uma raça; observar os barcos velejarem e as ondas
quebrarem nos deixa tempo para abrir toda a nossa mente para a beleza
e registrar, por cima disso, a estranha sensação de que a beleza
continuará a ser bela quer a vejamos quer não. Além disso, tudo
isso aconteceu, ficamos sabendo, há dez anos. Estamos vendo um mundo
que foi tragado pelas ondas. As noivas estão emergindo da Abadia; os
recepcionistas estão animados; as mães estão chorosas; os
convidados estão alegres; e tudo está feito e acabado. A guerra
abriu seu abismo aos pés de toda essa inocência e desconhecimento.
Mas foi então que nós dançamos e giramos, foi então que o sol
brilhou e as nuvens deslizaram, até o derradeiro fim. O cérebro
acrescenta tudo isso ao que o olho vê na tela.
Mas
os produtores cinematográficos parecem descontentes com essas óbvias
fontes de interesse – as maravilhas do mundo real, voos de gaivotas
ou navios no Tâmisa; a fascinação da vida contemporânea – a
Mile End Road; o Piccadilly Circus. Eles querem melhorar, alterar,
fazer uma arte própria, o que é natural, pois tanta coisa está
dentro de sua esfera de ação. Muitas artes se mostravam, no início,
prontas a dar sua contribuição. Por exemplo, havia a literatura.
Todos os romances famosos do mundo com seus próprios personagens e
suas cenas famosas estavam pedindo para serem levados à tela. O que
poderia ser mais fácil, o que poderia ser mais simples? O cinema
caiu sobre sua presa com uma enorme rapacidade e, até este momento,
permanece, em grande parte, sobre o corpo de sua desgraçada vítima.
Mas os resultados têm sido desastrosos para ambos. A aliança é
pouco natural. Olho e cérebro são brutalmente desmembrados quando
tentam, inutilmente, trabalhar em dupla. O olho diz: “Eis aqui Ana
Karenina”, e a voluptuosa dama trajando veludo negro e portando
pérolas surge diante de nós. O cérebro exclama: “Isso tanto pode
ser Ana Karenina quanto a rainha Vitória”. Pois o cérebro conhece
Ana quase inteiramente pelo interior de sua mente – seu charme, sua
paixão, seu desespero, enquanto toda a ênfase está agora posta em
seus dentes, suas pérolas e seus veludos. O cinema prossegue: “Ana
se apaixona por Vronski” – quer dizer, a dama em veludo negro cai
nos braços de um cavalheiro em uniforme e eles se beijam com enorme
gosto, grande deliberação e infinita gesticulação num sofá, numa
biblioteca extremamente bem mobiliada. Nós caminhamos, assim, aos
trancos e barrancos, pelos romances mais famosos do mundo. Nós os
grafamos, assim, em palavras ou em uma única sílaba escritas como a
garatuja de um estudante analfabeto. Um beijo é amor. Uma cadeira
quebrada com violência é ciúme. Um sorriso é felicidade. A morte
é um carro fúnebre. Nenhuma dessas coisas tem a mínima conexão
com o romance que Tolstói escreveu e é apenas quando desistimos de
ligar as imagens com o livro que adivinhamos – por alguma cena,
pelo jeito como um jardineiro apara a grama lá fora, por exemplo, ou
como uma árvore balança seus galhos ao sol – o que o cinema
conseguiria fazer se tivesse que se haver apenas com seus próprios
recursos.
Mas
quais são, então, os seus próprios recursos? Se deixasse de ser um
parasita, de que maneira ele caminharia ereto? Na atualidade, é
apenas a partir de pistas e acidentes que se pode formular qualquer
conjectura. Por exemplo, numa exibição de Dr. Caligari outro dia,
uma sombra com a forma de um girino apareceu de repente num canto da
tela. Ela dilatou-se até chegar a um tamanho imenso, tremeu, inchou
um pouco mais e voltou à sua insignificância. Por um momento, foi
como se ela corporificasse alguma imaginação monstruosa e doentia
do cérebro do lunático. Por um momento, foi como se o pensamento
pudesse ser transmitido com mais eficácia por uma forma do que por
palavras. O medo do girino parecia expressar-se por sua
monstruosidade e tremulação, e não pela frase “Estou com medo”.
Na verdade, a sombra era acidental, e o efeito não era intencional.
Mas se uma sombra, num certo momento, pode sugerir muito mais que os
gestos e as palavras reais de homens e mulheres num estado de medo,
parece evidente que o cinema tem ao seu alcance inumeráveis símbolos
para emoções que não conseguiram até agora encontrar expressão.
O terror tem, além das suas modalidades comuns, a forma de um
girino; ele se expande, incha, tremula, desaparece. A raiva pode se
contorcer como um verme enfurecido fazendo zigue-zagues negros ao
longo de uma tela branca. Ana e Vronski não precisam mais franzir a
testa e fazer esgares. Eles têm à sua disposição... mas aqui a
imaginação se atrapalha e mostra-se relutante. Pois que
características possui o pensamento que podem se tornar visíveis ao
olho sem a ajuda de palavras? Ele tem rapidez e lentidão; é reto
como uma flecha e nebuloso como um circunlóquio. Mas tem também uma
inveterada tendência, especialmente em momentos de emoção, a fazer
as imagens correrem lado a lado com ele, a criar um símile da coisa
pensada, como se assim fazendo ele removesse seu ferrão, ou a
tornasse bela e compreensível. Em Shakespeare, como todo mundo sabe,
as ideias mais complexas, as emoções mais intensas formam cadeias
de imagens pelas quais passamos, por mais que mudem rápida e
completamente, como que subindo as voltas e espirais de uma escada
tortuosa. Mas obviamente as imagens do poeta não são esculpidas em
bronze ou traçadas com lápis e tinta. Elas consistem de mil
sugestões, das quais a visual é apenas a mais óbvia ou prevalente.
Até mesmo a mais simples das imagens, como a do verso de Burns (“Meu
amor é como uma rubra, rubra rosa, que acaba de brotar em junho”),
nos presenteia com a umidade e o calor e o brilho do carmesim e a
maciez das pétalas inextricavelmente misturadas e encadeadas no
balanço de um ritmo que sugere a ternura emocional do amor. Tudo
isso, que é acessível às palavras e apenas às palavras, o cinema
deve evitar.
Mas
se uma parte tão grande de nosso pensamento e nosso sentimento está
ligada à visão, deve haver algum resíduo de emoção visual não
captado pelo artista ou pelo poeta-pintor que pode estar à espera do
cinema. Que esses símbolos serão bastante diferentes dos objetos
reais que vemos diante de nós parece altamente provável. Algo
abstrato, algo móvel, algo que exija apenas a mínima ajuda das
palavras ou da música para se tornar inteligível – os filmes
podem, no futuro, ser compostos desses movimentos, dessas abstrações.
E uma vez que essa dificuldade primeira tenha sido resolvida, uma vez
que algum novo símbolo para expressar o pensamento seja encontrado,
o cineasta tem uma enorme riqueza à sua disposição. As realidades
físicas, os próprios seixos da praia, os próprios tremores dos
lábios, são dele; é só querer. Seu Vronski e sua Ana estão ali,
em carne e osso. Se a essa realidade ele pudesse acrescentar emoção
e pensamento, então ele logo começaria a colher sua recompensa.
Então, tal como se pode ver a fumaça saindo do Vesúvio, seríamos
capazes de ver pensamentos selvagens e adoráveis e grotescos saindo
de homens de terno e de mulheres com cabelos à la garçonne.
Deveríamos ver essas emoções se misturando e afetando umas às
outras. Deveríamos ver mudanças violentas de emoção produzidas
por sua colisão. Os mais fantásticos contrastes poderiam cintilar à
nossa frente com uma velocidade que o escritor em vão se esforçaria
por obter. O passado poderia ser revisto, as distâncias poderiam ser
reduzidas a nada. E aqueles terríveis deslocamentos que são
inevitáveis quando Tolstói tem que passar da história de Ana à
história de Levin poderiam ser ligados por algum truque de cenário.
A continuidade da vida humana deveria ser mantida à nossa frente
pela repetição de algum objeto comum a ambas as vidas.
Todo
esse jogo de adivinhação e de rude filosofar sobre forças
desconhecidas aponta, de qualquer maneira, não na direção de
qualquer arte que conhecemos, mas na direção de uma arte sobre a
qual podemos apenas conjecturar. Aponta para uma longa estrada cheia
de obstáculos de todo tipo. Pois o cineasta deve se tornar dono de
sua convenção, tal como os pintores e os escritores e os músicos
fizeram antes dele. Ele deve nos fazer acreditar que aquilo que ele
nos mostra, por fantástico que pareça, tem alguma relação com as
grandes veias e artérias de nossa existência. Ele deve conectá-lo
com o que gostamos de chamar de realidade. Ele deve nos fazer
acreditar que nossos amores e ódios também estão nesse caminho.
Pode-se facilmente adivinhar como um processo desses está destinado
a ser lento e tratado com aflição e ridículo e indiferença quando
lembramos quanto qualquer novidade nos aflige, quanto até o menor
broto na mais velha das árvores ofende nossa compreensão do que é
adequado. E aqui não se trata de um broto, mas de um novo tronco e
de novas raízes saltando da terra.
Contudo,
por remotas que sejam, não há falta de indicações de que as
emoções estão se acumulando, de que o tempo é chegado, e a arte
do cinema está prestes a vir à luz. Comtemplar multidões,
contemplar o caos das ruas da maneira relaxada pela qual as
faculdades desligadas do hábito contemplam e esperam é, às vezes,
como se os movimentos e as cores, as formas e os sons tivessem se
juntado e tivessem ficado esperando por alguém que se apoderasse
deles e convertesse sua energia em arte; então, sem terem sido
captados, eles se dispersam e fogem de novo, separados. No cinema,
por um momento, através das névoas das emoções irrelevantes,
através da grossa coberta de imensa habilidade e enorme eficiência,
têm-se vislumbres de algo vital no seu interior. Mas o pique da vida
é instantaneamente coberto por mais habilidade e maior eficiência.
Pois
o cinema veio à luz com o lado errado na frente. A habilidade
mecânica está muito mais adiantada que a arte a ser expressada. É
como se os membros da tribo selvagem, em vez de encontrar duas barras
de ferro com que brincar, tivessem encontrado, espalhados pela praia,
violinos, flautas, saxofones, pianos de cauda feitos por Érard e
Bechstein, e tivessem começado, com incrível energia, mas sem saber
uma nota de música, a martelar e a batucar em todos eles ao mesmo
tempo.
Virginia Woolf, in O sol e o peixe
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